A Restauração do Mundo Romano

O grande mérito do novo eleito dos soldados, o dálmata Diocles, que veio a mudar o nome para Diocletianus, denotando ser de origem bastante humilde, consistiu em ter posto de lado toda a ficção. Desde há vários séculos que o «povo romano» não era mais do que um fantasma. Mas o Senado mantinha ainda uns restos do seu antigo prestígio. A ilusão de uma república romana por si dirigida viera a renascer no século III. Mas a história dos imperadores caros ao Senado, como Alexandre Severo, os Gordianos, ou Tácito, pusera a nu toda a impotência deste corpo decrépito. Diocleciano pô-lo deliberadamente de lado: mesmo em relação à elaboração das leis e dos regulamentos administrativos, este não mais voltou a ser consultado. Mas aonde buscar então um apoio?

No dia seguinte ao da sua vitória sobre Carino (284), Diocle­ciano compreendeu que, tal como vinha sucedendo aos seus pre­decessores desde há quase meio século, não lhe seria possível conservar só para si a totalidade do poder; sabia perfeitamente que doravante o Império já não poderia continuar a ser dirigido por um só senhor. A sabedoria recomendava-lhe, pois, que se adian­tasse ao inevitável, associando-se a um companheiro e escolhendo-o de modo a que mais tarde não corresse o risco de este se vir a tornar num seu rival e inimigo. Diocleciano optou por escolher um com­panheiro de armas, Maximiano, ao qual o uniam laços de amizade. Este, homem rude e sem instrução, possuía pelo menos os talentos militares que parecem ter faltado ao imperador, e respeitava em Diocleciano a superioridade intelectual: consentiu, assim, em ser a força ao serviço da inteligência. Os cognomes de Iovius e de Her­culius oficialmente adaptados pelos dois amigos, foram uma ostensiva manifestação da existência deste conceito. E a escolha foi feliz: Hércules nunca traiu Júpiter. Nomeado César e, mais tarde, pouco tempo decorrido (a partir de 286), “Augusto”, Maximiano foi realmente o braço direito de Diocleciano.

Mas mesmo esta medida foi insuficiente. Os ataques dos Persas na Ásia e dos Germanos na Europa, a par das constantes pertur­bações e revoltas na Bretanba, no Egipto e na Mauritânia, acabaram por exceder as forças dos dois «augustos». Em 293, Diocleciano deu mais um passo no sentido do desmembramento do poder. Ambos os imperadores passaram a ter um lugar-tenente, o qual recebeu o imperium o poder tribunicio, o diadema, logo, o exercicio efectivo do poder, mas apenas o título de «César», facto que o mantinha numa posição de subordinação relativamente ao respectivo «Augusto». Diocleciano tomou por colaborador Galério, um dácio inculto, mas bom soldado; Maximiano um ilirico de origem dis­tinta e de trato agradável, Constâncio Cloro. Cada um dos Césares proporcionava assim ao seu «Augusto» as qualidades que a este faltavam. Por outro lado, as alianças familiares vieram a estreitar os laços politicos: os dois Césares, já casados, tiveram de repudiar as respectivas mulheres a fim de desposarem, um deles, Galério, a filha de Diocleciano, e o outro, Constâncio, a enteada de Maxi­miano. Finalmente, estes genros tornaram-se artificialmente, por «adopção», nos filhos dos seus sogros. Diocleciano reservou para si o Oriente, encarregando Galério da vigilância das provincias danubianas; ao outro César couberam os dominios da Gália e da Bretanha. Se de facto houve partilha do poder, não chegou a haver desmembramento do Império: cada «Augusto» dispunha do direito de vistoriar todo o território confiado ao seu “César”. A unidade de legislação e de administração subsistiu, teoricamente indivisa, entre os dois «Augustos», ainda que, na prática, tal tivesse sido atributo exclusivo do qual Diocleciano permaneceu sempre como a mola impulsionadora de toda a máquina.

A partir de 293, segundo consta, Diocleciano fixou a data limite no termo da qual, considerando ter cumprido a sua missão, renunciaria voluntariamente ao poder. Para prevenir qualquer conflito futuro, exigiu de Maximiano, no templo de Júpiter Capi­tolino, o juramento de que abdicaria ao mesmo tempo que ele.

Pela força das coisas, o “império” viera a tornar-se de uma magistratura num poder monárquico. E tentou-se rodeá-lo de um brilho, de um prestigio ficticio.

De origem humilde, tal como todos os seus predecessores (depois de Galieno), Diocleciano julgou poder patentear uma tal transformação rodeando a pessoa do imperador com todo um cerimonial à moda oriental. Retomou o uso do diadema mistico, símbolo de eternidade, que Aureliano fora buscar aos Sassânidas. Permitiu que o qualificassem de senhor (dominus), mas urna tal qualificação nunca foi oficial. Sob o seu principado, os cargos de cortesão continuam a ser reputados como inferiores aos cargos públicos. Foi apenas na segunda metade do século IV que os pri­meiros vieram a subir na hierarquia em detrimento dos segundos, à medida que se ia obscurecendo a ideia de serviço público.

A organização do exército, centro nervoso do poder, foi cer­tamente objecto de preocupações muito especiais da parte do imperador. Infelizmente, no respeitante a este período, a história do exército romano é das mais obscuras. Eis aquilo que parece ser mais ou menos certo:

Os «pretorianos», tão perigosos um século antes, assistem a uma diminuição progressiva e continua das suas prerrogativas. Já Séptimo Severo expulsara das suas coortes os itálicos, homens turbulentos e enfatuados, vaidosos da sua origem, para nelas dar lugar aos soldados mais distintos das legiões pr07inciais. Diocle­ciano reformula-as essencialmente à base dos seus compatriotas iliricos, homens rudes e dedicados. Sob o seu sucessor Constantino, o próprio nome de pretoriano, mal afamado, vem a desaparecer. As «coortes urbanas», da responsabilidade do prefeito da cidade, são reduzidas a um número limite.

O chefe do pretório, o prefeito do pretório, que já foi comparado com o grão-vizir dos Estados muçulmanos, fora uma personagem temivel nos séculos II e III: por mais de uma vez, mandara mas­sacrar o imperador para tomar o seu lugar. O desdobramento da prefeitura irá diminuir a área geográfica do seu poder. Posterior­mente, antes do termo do reinado de Constantino, o Império será dividido em quatro prefeituras. Mas a medida de principal eficácia consistirá em reduzir o prefeito do pretório a funções quase exclu­sivamente civis, confiando o comando efectivo a «senhores da milicia», transformação essa que será levada a cabo por Constantino. Um certo número de legiões, deslocadas da província para a Itália e qualificadas de «palatinas», constituem uma segunda guarda, rival e contrapeso da primeira.

Uma importante medida, o fraccionamento da legião em seis destacamentos, tantos como o número de tribunos existentes, e provavelmente iniciado antes de Diocleciano, vem a ter continui­dade sob o seu reinado. Cada um destes destacamentos tem vida autónoma, estando aquartelados, já não apenas nas fronteiras, mas também nas praças fortes em que, por volta dos anos 260-270, as cidades vieram a transformar-se.

A distinção entre «legiões» e «auxiliares» tende a esbater-se. A cavalaria, indispensável para lutar contra os Godos, os Persas, etc., vem a adquirir uma importância crescente, particularmente no seio da guarda imperial, a Schola.

No respeitante ao comando, Diocleciano prossegue igualmente uma prática anterior. Assim, já em 261 Galieno (morto em 268) afastara a ordem senatorial do comando das legiões. Por inveja, por receio, sem dúvida, mas também por necessidade. Para os homens desta classe, o exército não era uma carreira, mas antes um estágio pre­paratório de futuras funções civis. Ora, este tipo de vagabundagem já não era compativel com as necessidades do século. Os seis filhos­-familia no comando de cada uma das legiões não passavam fatalmente de simples amaci0res; quanto aos jovens pertencentes à ordem, muitas vezes bem modesta, dos senados provinciais, os decuriões, careciam de experiência e prestigio. Deste modo, Diocleciano veio também a afastá-los do exército. Os tempos eram duros. Para lutar contra os Bárbaros e os Persas eram precisos
profissionais. A decisão de atribuir o alto comando a oficiais oriun­dos da ordem equestre ou, pior ainda, saidos das próprias fileiras, foi bem mais uma imperiosa necessidade do que um simples capricho de tirano. Após Galieno, todos os imperadores pertencem a esta última categoria: foram subindo lentamente, grau após grau, par­tindo do mais baixo, até alcançarem o trono imperial, que surge como sendo o termo normal de uma carreira militar.

A tendência mais corrente consiste em confiar os grandes comandos fronteiriços, ou até mesmo internos, a cortesãos que ao seu novo titulo de duques acrescentam a qualificação de comes} isto é, de amigo do príncipe. O comitatus que durante longo tempo não passou de um simples elemento decorativo, virá, mais tarde, a tornar-se numa função.

Se é verdade que os homens de elevada e de média origem se encontram afastados do exército, facto que trará graves conseqüências, pelo menos sob o reinado de Diocleciano, também é verdade que o comando não parece ter sido entregue a bárbaros recentemente naturalizados, o que, pouco tempo volvido, virá a tornar-se num hábito.

Seria temerário pretender precisar qual o alcance das alterações introduzidas no armamento e na táctica. Contudo, é inegável haver uma certa influência oriental iraniana. Tendo de lutar contra cava­leiros, a infantaria passa a usar um armamento mais leve e maleável. O archeiro, um asiático, adquire uma importância como até então nunca conhecera no mundo romano. Uma parte da cavalaria, bastante aumentada numericamente, passa a ser couraçada, reves­tindo-se de uma cota de malha da cabeça aos pés: o «cavaleiro» medieval surge, assim, a partir dos fins do século ITI. Quanto ao moral do exército, a única coisa realmente importante, parece ter voltado a ser, mais uma vez, bastante bom. O Império, não só não correu nenhum perigo sério, como também pareceu retomar uma maior unidade no estreitamento dos laços territoriais de domi­nação; os Bárbaros da Europa e da África foram contidos e a Pérsia recuou: viu-se obrigada a ceder cinco provincias no alto vale do Tigre e a permitir o restabelecimento do reino da Arménia sob o protectorado de Roma (297) Estes sucessos são ind1cio de um restabelecimento social não negligenciável: «o exército, em muitos aspectos, resume em si a civilização de um povo», observou Victor Duruy.

Depois da força, o exército, vem o seu alimento, o imposto. O imperador deu-o clara e energicamente a entender. Necessitava de dinheiro para aumentar o fausto imperial, talvez não tanto por gosto pessoal como por necessidade politica, a fim de deslumbrar as populações. Atribui-se a este reinado uma célebre inovação fiscal, a avaliação da contribuição fundiária em caput ou jugum. Na sequên­cia de cada operação cadastral (revista, em principio, de quinze em quinze anos), as forças contributivas de cada circunscrição financeira são contadas relativamente a um número determinado de caput. Este caput ou jugum não é uma unidade real, geométrica, mas sim uma unidade fiscal, estabelecida mediante grosseiras apro­ximações: na Siria, cada caput é constituido por cinco arpents de vinhas (Arpent: antiga medida agrária francesa que valia 50 a 51 ares conforme as regiões), ou então por vinte arpents de boa terra de cultivo ou por quarenta de terras de média valia ou ainda por sessenta de terras de qualidade inferior; pode ainda ser constituído por duzentos e vinte e cinco pés de oliveiras em pleno rendimento ou por quatrocentos e cinquenta de oliveiras de segunda categoria. Noutros lados, o jugum parece ser a «charruada» de terra, a quanti­dade necessária à subsistência de uma familia de camponeses.

A repartição operava-se seguidamente por «cidades» e em cada cidade por dominios; cada proprietário devia um certo número de caput ou de fracções de caput consoante a importância da sua fortuna territorial.

Uma tal reforma patenteava inúmeras vantagens. Durante muito tempo, as provincias tinham pago o seu «tributo» ora em espécies amoedáveis, ora em géneros, ora de ambas as maneiras, em virtude de antigas convenções que, se eram vantajosas para deter­minadas parcelas do Império pouco sobrecarregadas, já eram bas­tante onerosas para outras. Doravante, cada circunscrição passou a pagar em função da sua riqueza fundiária; a própria Itália passou a estar também submetida ao imposto fundiário em géneros.

Sobretaxas e reduções de impostos passaram a ser facilitadas. O indice de cada caput parece ter sido de uma real estabilidade: o número de sete soldos de ouro, digamos vinte francos de 1913, valor intrinseco, como principal caput, parece ser de regra nos sécu­los IV e V. Os contribuintes das civitates, conhecendo o número dos juga do seu pequeno Estado e o número de impostos que este era regularmente obrigado a suportar, encontraram neste sistema certas garantias, ainda que relativas, ao mesmo tempo que o poder, podendo conhecer com bastante exactidão qual a vastidão dos seus recursos, estava, do mesmo modo, em melhores condições de estabelecer o seu orçamento.

Como complemento às medidas fiscais, devemos assinalar uma tentativa no intuito de dar remédio à grande crise economica que assolava o mundo romano. Diocleciano veio a ser bem sucedido precisamente aonde Aureliano fracassara. Em 296, restabelece uma moeda forte. Volta a pôr em circulação o verdadeiro denário de prata, moldado à razão de 96 por libra e com 3.41 g. de peso, tal como no reinado de Nero, sob o nome de argenteus minutulus ou argenteolus; o antoninianus, depreciado em último grau, desaparece ou só continua a circular enquanto moeda de bilhão. A moeda de ouro, o aureus, foi moldada à razão de 60 por libra e passou, por consequência, a pesar 5.45 g. Em 301, no intuito de fazer baixar os preços, o imperador lembrou-se de criar uma moeda câmbio corrente em bronze argentado, o denarius communis, repre­sentando 1/50000 da libra de ouro, e passando assim a libra de ouro de 327 gramas a valer 240.000 gramas de bronze.

Neste mesmo ano, a fim de pôr cobro às desastrosas especula­ções originadas pelas perturbações monetárias, o imperador, num Edictum de pretiis rerum venalium, julgou possível fixar, não o preço dos géneros alirnenticios, do vestuário, dos objectos de uso corrente, dos salários, das compensações, etc., mas sim o limite máximo a poder ser exigido. O édito parece ter de facto visado, muito em particular, a Pars Orientis. O insucesso foi total: os mercadores esconderam os seus produtos, os preços subiram e houve tumultos. O édito teve, mais tarde, de vir a ser revogado.

Não será decerto inútil assinalar que o número das provincias foi elevado para uma centena. As vantagens decorrentes de uma tal medida eram de dupla ordem: sendo menos alargadas - algumas delas desmesuradamente vastas- as provincias passaram a poder ser melhor administradas e o poder passou a não ter tanto a temer dos governadores, já que os seus recursos tinham sido, assim, razoavelmente diminuidos. De resto, houve uma tendência para exagerar as inovações de Diocleciano neste campo: ele só aumentou em catorze unidades o número de províncias, e doze delas no Oriente. Facto infinitamente mais importante, o Senado foi des­pojado da administração das provincias que, durante vários séculos, lhe tinham sido reservadas: todas passaram a estar doravante à disposição do imperador.

Por outro lado, surge um novo agrupamento, a diocese, englo­bando em si diversas provincias. A cabeça de cada uma delas (che­garam a haver doze) está um vigário, intermediário entre o praeses, governador da provinda, e o prefeito do pretório; com esta medida, a autoridade deste último vem a ser ainda mais circunscrita.

Na capital, Diocleciano prossegue muito mais na senda das transformações anteriormente iniciadas e inova muito menos. Desde o inicio do século III que os escravos libertos tinham sido afastados. Os funcionários administrativos, mesmo os subalternos, tinham sido militarizados; estes empregados, ditos officiales, pos­suem titulos que lembram os diversos graus do exército: centuriões, corniculários, optiões, etc. Tornam-se em ajudantes dos altos funcionários, tais como os Caesariani, que têm por missão executar as decisões dos agentes do fisco. O serviço de escritório é quali­ficado de «milicia».

O corpo que impulsiona toda a vida politica e administrativa é o conselho do principe, o Consistório. Este vem, assim, a com­pletar a lenta evolução que, em três séculos, transformou o círculo de amigos do pr1ncipe num órgão de Estado, num «Conselho de Estado». O imperador exige dele um árduo trabalho.

A atividade legislativa de Diocleciano foi, com efeito, consi­derável. Nenhum outro imperador nos legou um tão grande número de rescritos ou de éditos: duzentos ao todo. A intenção que lhe preside é das mais louváveis. O príncipe procura reprimir as fraudes, proteger os fracos, o escravo, a mulher, o devedor, o homem livre pobre contra o rico, o colono contra o seu «dominus», o pai contra a ingratidão dos filhos.

A reforma do foro judicial prossegue e completa-se. No foro civil, a dupla instância, in jure perante o pretor, in judicio perante o jurado designado pelo primeiro, vem a simplificar-se: é apenas ao magistrado, detentor do conhecimento de fundo, que compete decidir. É certo que o magistrado não passa de um funcionário, mas também a extrema complexidade do sistema antigo podia vir a acarretar inconvenientes. No foro criminal, a cognitio extraor­dinaria vem a substituir-se ao procedimento formalista: quem toma em mão o inquisitio é o magistrado e não o acusador. O imperador é desfavorável ao emprego da tortura. Desconfia da policia mili­tarizada e licencia os «frumentários», espiões e agentes provoca­dores que infestam a capital e as províncias.

Mas não nos devemos deixar enganar pelas aparências. Esta abundante legislação, cheia de boas intenções, não tem, contudo, qualquer originalidade. O conselho, que fala em nome do principe, limita-se a repetir decisões já antigas. Quando Lactâncio, um seu malevolente contemporâneo, declara que neste reinado a ciência juridica deixara de existir, não deixa de ter uma certa razão. Na opinião de um bom juiz, e tendo em conta a simplicidade das questões relativamente às quais o imperador é consultado, parece já não haver advocacia forense, já não haver magistratura. A ignorância é tal que o príncipe vê-se constantemente obrigado a intervir para indicar quais as regras de direito que os governadores de províncias devem aplicar. Mas, pelo menos, deve reconhecer-se a este filho de escravos dálmatas o mérito de ter favorecido os estudos de direito (nomeadamente em Beirute) e de ter sentido a necessidade da formação de um grande corpo, o Conselho do príncipe, onde viriam a concentrar-se os parcos conhecimentos jurídicos da época.

«E depois, deve dizer-se, em defesa dos magistrados desse tempo, que a sua ignorância era, por vezes, desculpável e que a sua tarefa, nessa época, era bem mais difícil do que no passado. Tinham de aplicar leis romanas a povos que até então tinham usufruído de uma quase total autonomia. Já vimos que os predeces­sores de Diocleciano trabalharam no sentido da romanização do Império do ponto de vista legislativo. Muito estava ainda por fazer, e Diocleciano foi um dos que mais eficazmente contribuíram para generalizar o uso do direito romano. É certo que a unidade legis­lativa ainda não é uma realidade. Diocleciano permite que se invo­quem os regulamentos municipais e os costumes locais, ainda que só em casos de menor importância ... É sob o reinado de Diocle­ciano que começam a surgir as expressões jus romanorum, leges romanae em vez de jus civile Romanorum, jus nostrom, jus gentium. O direito romano conservara até então, em certa medida, um caráter de direito municipal. Criado para suprir as necessidades de uma cidade, não tinham sabido, pelo menos no' respeitante aos actos que apresenta­vam um caráeter religioso, dar-lhe a necessária maleabilidade que permitisse torná-lo num direito nacional.»

A bem dizer, a Cidade antiga era um cadinho bastante aca­nhado para nele refundir o mundo. Sem qualquer tipo de atividade, de ordem material ou espiritual, Roma tornara-se num obstáculo à expansão da Romania. Enquanto Aureliano a tinha feito rodear de uma nova muralha, bem mais espaçosa, como se visse nela o palladium do Império, como se lhe desejasse uma nova vida, Diocleciano abandonou-a deliberadamente e de seguida. A partir de 284, Roma cessa de ser realmente a capital do Império. É antes um santuário onde têm lugar certas cerimónias rituais, os vicennalia, os «triunfos» - e estes vão tornar-se extremamente raros; é um museu incomparável; é uma cidade morta. O imperador reside no Oriente, de preferência em Nicomédia, nos confins da Europa e da Asia. O seu colega estabelece-se em Milão, para melhor poder vigiar os Bárbaros que ameaçam os Alpes. Os seus lugar-tenentes, os «Césares», acampam em Treves e em Sírmio, espiando o ataque dos Germanos ou dos Iranianos europeus (Sármatas, Roxolanos, Iáziges). Doravante, o principe só em raras ocasiões virá a Roma e sempre por pouco tempo; sente-se aí deslocado, como um pro­vinciano e, por outro lado, os assuntos do Império bem depressa dela o afastam. É flagrante o contraste entre a existência dos impera­dores dos fins do século TIl e IV e a dos seus predecessores que nunca deixavam a «Cidade» e nela dissipavam a saúde, a razão e a vida em orgias estúpidas ou dementes.

Em resumo, a acção de Diocleciano, tanto quanto nos é pos­sível julgar, dada a extrema escassez das fontes disponíveis, surge­-nos como bem sucedida e de grande alcance. Conseguiu voltar e dar ao Império, se não a prosperidade, pelo menos uma sua ima­gem. E é Lactâncio, um cristão, seu inimigo, quem no-lo atesta. E o mesmo no caso dos monumentos: termas das mais famosas, o palácio de Salona (Split) na Dalmácia, basllicas, pórticos, e inú­meras construções civis e militares, em Roma, em Milão, em Antioquia, em Edessa. Sem ser propriamente um letrado, o imperador favorece os estudos: cria a escola de Nicomédia, enquanto Constância Cloro reconstrói as escolas de Autun. As artes e as letras também tiveram, pois, a sua parte nesta restauração do mundo romano.

Vinte anos passaram após a morte de Caros, sendo os mais felizes que o mundo romano conheceu desde Séptimo Severo. Depois de ter ido a Roma celebrar os seus vicennalia e «triunfado» em companhia do seu colega (Novembro de 304), Diocleciano julgou ser chegado o momento de dar lugar aos novos. A sua obra parecia-lhe já suficientemente sólida e sentia chegar a velhice - estava perto dos sessenta anos - e os efeitos da doença. Abdicou solenemente perto de Nicomédia, diante do templo de Júpiter, a I de Maio de 305. No mesmo dia, no Ocidente, o Hercúlio, obrigado pelo seu juramento, renunciava, tremendo, ao manto púrpura. Sem dúvida que o sistema da tetrarquia virá a desagre­gar-se um dia após esta dupla cerimónia. Mas, na realidade, tal era mais um expediente do que um sistema propriamente dito. E quanto a ser cura para os males de que o Império enfermava, isso, de modo algum. Já não era pouco ter sabido inventar um remé­dio de acaso que permitisse ao paciente retomar forças contra os futuros assaltos do destino.


Diocleciano e o Cristianismo

O fim do reinado de Diocleciano vem a ser marcado por uma medida que deixou uma mancha indelével na memória do grande político: o retomar da perseguição contra os cristãos. Mas convém que nos detenhamos um pouco em tal facto.

Há já cerca de dois séculos e meio que o Império sofria de um mal interno. o cristianismo. O antagonismo entre o Estado romano e a Nova Lei. letargicamente adormecido durante inter­valos mais ou menos longos, renascia periodicamente com incon­cebível furor. O poder pretendia exterminar a seita; os cristãos não lhe opunham mais do que a força da inércia, mas uma tal força era invencível.

É necessário esforçarmo-nos por manter um certo distan­ciamento a fim de podermos compreender quais os motivos da violência deste antagonismo, ou até mesmo qual a sua razão de ser. A tolerância de Roma para com as religiões estrangeiras é um facto bem conhecido. A única religião que, a par do cristia­nismo foi objecto de perseguições. O judaísmo, deve-o às impru­dências e às fanáticas provocações dos seus adeptos. Mais ainda, após a destruição de Jerusalém, instalou-se um modus vivendi que deu aos judeus toda a liberdade de consciência e até mesmo de práticas, ainda que estas (tal como a circuncisão) fossem interditas aos res­tantes habitantes do Império.

É digno de nota assinalar que as perseguições são retomadas em momentos críticos da história do Império, tal como no caso dos trágicos reinados de Décio e de Valéria, em alturas em que a opinião popular, inquieta, procura uma causa para as desgraças públicas. Os cristãos, reputados como maus cidadãos, sendo ini­migos dos deuses cujas iras desencadeiam, eram os “traidores” predestinados para servirem de bodes expiatórios.

Mas nada de semelhante consegue discernir-se no termo do principado de Diocleciano, o qual, pelo contrário, vem a findar num ambiente de prosperidade. O imperador só se decidiu a reto­mar as perseguições após longas hesitações que duraram vários anos (de 299 a 303). A razão que o terá levado a decidir-se por uma política de repressão permanece envolta em mistério. Houve quem se interrogasse sobre se tal não teria sido fruto dos lamentáveis incidentes ocorridos no seio do exército. Os cristãos eram tidos por pouco dotados para carreiras militares. Certas seitas, como por exemplo os montanistas, declaravam o serviço militar incom­pativel com o cristianismo. Mas o montanismo fora condenado e a Igreja «católica» não era tão pragmática. A pouco e pouco, o
cristianismo conseguira mesmo insinuar-se no exército, onde já dispunha de adeptos. Será que houve quebras de disciplina, recusas de cumprir ordens para efetuar sacrifícios? É possível. Mas tal não passa de simples suposição.

Deve assinalar-se que, nessa época, Diocleciano estava sob a influência de Galério, cuja mãe era uma fervorosa pagã, e que transmitira ao filho o seu ódio pelo cristianismo. A verdade é que entre a Igreja cristã e o Estado, mesmo nos periodos de acalmia, nunca houve mais do que uma trégua tácita, precária, à mercê do menor incidente. O pretexto para a ruptura parece ter sido o incêndio do palácio de Nicomédia. Tratava-se da cidade favorita de Diocleciano: em alguns anos, transformara-a na mais bela cidade do Oriente depois de Antioquia e de Alexandria.

Assim, tanto a última perseguição como a primeira, ordenada por Nero, foram desencadeadas pela crença na mania incendiária dos cristãos.

Esta última perseguição foi a mais longa: durou, pelo menos, cerca de oito anos (303-311). A despeito da tradição, não é seguro que tenha sido das mais cruéis, pelo menos durante o reinado de Diocleciano. Atacou-se mais as coisas do que as pessoas. As igrejas foram fechadas ou destruídas e os livros santos quei­mados. O número de vítimas não parece ter sido muito elevado. Os magistrados revelaram-se de uma extrema complacência, fatigados e entediados, tal como era seu hábito neste tipo de assuntos.

O próprio Lactâncio, o adversário cristão de Diocleciano, ao escarnecer das suas precauções, das suas longas hesitações. da facilidade com que os romanos se contentavam com uma retrata­ção simulada, dá-nos assim testemunho da relativa moderação da repressão.

Mesmo assim, é certo que os cristãos acusaram o golpe, sem que. contudo. nada permitisse pressagiar a sua longa resistência. e muito menos o seu triunfo final.

Foi precisamente no ano imediato ao início das perseguições que Diocleciano julgou chegado o momento de abdicar, consi­derando que a sua obra já fora levada a bom termo. No grandioso retiro que desde há muito mandara preparar nos confins do seu pais natal, em Salona, nunca foi perturbado, disso podemos estar certos. por quaisquer escrúpulos relativos à legitimidade do seu édito. ou por quaisquer inquietações quanto à sua eficácia. A abolição do cristianismo representava o coroamento da sua obra de restau­ração do Império, há tanto tempo disperso, dilacerado, fragmentado: doravante não haveria mais do que um rebanho sob a autoridade de um pastor de várias cabeças.


A sucessão de Diocleciano

Será que Diocleciano chegara a regulamentar detalhadamente o sistema daquilo a que se chamou a tetrarquia? Talvez não, e de qualquer modo não importa. Este sistema tinha a sua lógica interna. Determinava que os «Césares» se sucedessem aos «Augustos» e tomassem por seu turno, outros «Césares» como adjuntos. Era da tradição que um dos Augustos tivesse uma espécie de prepon­derância sobre o outro. Galério seguiu, pois, as vias traçadas pelo seu antecessor ao designar os dois novos Césares, Severo e Maxi­miano Daia. É certo que eram assim afastados do trono os filhos de Maximiano e de Constância, Maxêncio e Constantino; mas também isso era conforme ao espirito da tetrarquia, em que a esco­lha do senhor e o parentesco fictício se sobrepõem aos pretensos direitos do sangue. Só que aqui veio a esbarrar-se na força das circunstâncias. Os príncipes desapossados rebelaram-se e a con­fusão recomeçou. Após sete anos de lutas, o poder veio a tombar, a Ocidente, nas mãos de Constantino, vencedor de Maxêncio na Pons Milvius, perto de Roma (28 de Outubro de 312). Mas foram ainda precisos mais doze anos para que o filho de Constância Cloro (falecido em 306) conseguisse tornar-se senhor de todo o Império. Inicialmente, tentou-se prolongar o sistema de Diocleciano. Cons­tantino deu a sua irmã em casamento a Licinius, sucessor de Galério; vencedor do seu colega por várias vezes, decidiu poupá-la e dei­xou-lhe o Oriente. Foi apenas em 323 que Constantino se decidiu a assumir a sós o governo do Império e a suprimir o seu rival. A tetrarquia, tal como a diarquia, já não tinha futuro; o seu tempo passara. Quando chegar a altura de tomar as suas últimas disposi­ções (337), Constantino dividirá o Império pelos seus filhos e pelos seus netos, tal como se de um património se tratasse. Ora, isso é já uma partilha à carolingia ou à merovingia, unicamente funda­mentada nos direitos do sangue.

Restavam-lhe três filhos, todos sucessivamente proclamados Césares. O Império foi, assim, dividido em três partes. Constan­tino ficou com o Ocidente (Gália, Bretanha, Espanha) Constâncio com o Oriente, incluindo, o Egipto, e Constante com a Itália, incluindo o Illyricum e a Africa. Mas os netos também não foram esquecidos. Um deles, Dalmácio, devia ficar no seu lote com a Trácia, a Macedónia e a Acaia, e um outro, Anibaliano, com uma parte da Arménia e do Ponto, recebendo o titulo oriental de «rei dos reis».

A unidade do Império foi restabelecida em proveito de Cons­tância com a supressão dos sobrinhos, massacrados pelo exército (337), com a vitória de Constante sobre o seu irmão Constantino II em Aquileia, o qual foi morto (340), e com o assassinato do pri­meiro, do vencedor, vitima do «magister militum», Magnus Magnen­tius (350). Com efeito, a sucessão por filiação não pusera termo às revoltas dos generais e às suas tentativas de usurpação do Impé­rio. Contudo, deve reconhecer-se que a partir de Diocleciano pas­saram a ser mais raras e nunca foram bem sucedidas. Em 353 Cons­tâncio, tendo derrotado e morto Magnêncio, fica senhor de todo o Império. Mas, a partir de 361, vê-se a braços com a revolta do seu primo Juliano (filho de Júlio Constâncio, irmão de Constantino o Grande), que nomeara César com a missão de defender a Gália contra os Bárbaros. Depois dos curtos reinados de Juliano (+ 26 de Junho de 361) e de Joviano (+ 17 de Fevereiro de 364), uma nova dinastia instala-se no trono, na pessoa de um soldado intrépido e cruel, Valentiniano. Mas no próprio dia da sua eleição pelo exér­cito, reunido na planície de Dadastania, a 26 de Fevereiro de 364, os soldados, aclamando-o, exigiram que se associasse a um com­panheiro de armas. Valentiniano escolheu o seu irmão, Flavius Valens, e confiou-lhe o Oriente com a Peuinsula Balcânica. A efectiva separação do Império em dois grandes blocos tornara-se numa neces­sidade imperiosa. Desde esta época, estas duas metades não mais voltaram a unir-se, salvo por um lapso de tempo perfeitamente insignificante, sob o reinado de Teodósio (três meses: fins de Setembro de 394 a Janeiro de 395).


LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926).



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