A Crise política no Século 3

O poder do imperador romano, não obstante ser um dos mais absolutos que o mundo jamais conheceu, não era de essência monárquica. O príncipe não é todo-poderoso por ser tido como descendendo dos deuses, tal como sucede no caso dos monar­cas do Oriente e dos reis de certos povos germânicos. É todo­-poderoso porque encarna na sua pessoa a Respublica, a autoridade do povo romano, a qual é absoluta. O seu poder não é, pois, um poder de índole pessoal, e ainda menos de ordem hereditária, é, sim, uma delegação.

O poder baseia-se, antes de mais, nas forças armadas. O impe­rador é quem detém, por delegação, o comando do exército, comando esse de carácter absoluto como todo o verdadeiro comando. A este comando chama-se imperium. Durante o período republicano, inúmeros personagens vieram a deter o imperium, sendo então investidos no cargo de generais-em-chefe, de procônsules. Tais per­sonagens vieram a ser imperatores, nas só. durante o tempo de dura­ção de uma campanha; um dia apos o triunfo, esse poder absoluto expirava. A institucionalização do Império constituía em limitar a um só o número de pessoas ao qual era conferido o imperium, e em lhe conferir uma tal dignidade para toda a vida.

Na sua essência, o império não deixa de ser igualmente uma magistratura. A idéia da soberania do Estado continua teoricamente a planar sobre o imperador, encarnação da Respublica. E se este recebe o título de Augusto, isto é, de santo, de sagrado, tal é, sem dúvida, por ele ser o símbolo vivo da Dea Roma. Aquando da sua morte, decide-se se deve ou não ser deificado, ou, diríamos nós, santificado, se o seu numen ou génio irá ou não receber as honras divinas.

Será que o imperium proconsular não possui mais do que este aspecto militar? Ou será que também reveste uma faceta civil, judicial? Tal aspecto é ainda, hoje em dia, objecto de discussão. Parece evidente que o imperium, ainda que constituindo o elemento estável, sólido, do poder do príncipe, não bastava para conferir à sua autoridade uma real plenitude jurídica, pela boa razão de que o poder proconsular só pode exercer-se fora de Roma (até Séptimo Severo) e da Itália. Assim, o imperador auto-investe-se do poder tribUnicio em vida, o qual lhe confere o direito de intercersio ou de protecção global do povo romano, tornando a sua pessoa sagrada, inviolável. Mas só vem a tomá-lo após o precedente, pois este é, verosimilmente, fundamental.

Em torno deste núcleo, foi possível virem a congregar-se outras funções: o imperador é pontifex maximus, censor, princeps senatus; e detém ainda, de quando em quando, o consulado, se bem que tais títulos não lhe proporcionem qualquer aumento considerável de poder. Talvez a partir de Vespasiano, o conjunto dos direitos, de que o fasces representava o poder imperial, passa a ser concedido em bloco por um senatusconsulto, que é, ao mesmo tempo, uma lei (a lex regia) proclamada no campo de Marte. Esta lei confere o imperium, mas de modo algum o poder tribunicio.

A magistratura imperial não tem por objecto substituir a república pela realeza. Inicialmente, o império apresenta-se como um expediente. Um poder ditatorial permanente, a fim de poder solucionar as convulsões sociais e politicas que ameaçam a exis­tência da república romana, é confiado ao primeiro cidadão do Estado: tal é o significado de princeps. Mas os órgãos legais do Estado, o Senado e os comidos, subsistem nos primeiros tempos do Império. O poder legislativo não constitui um atributo exclu­sivo do imperador: ele detém a iniciativa das leis, mas tal como qualquer outro magistrado, e assim que as suas constituições, as suas acta, passarem a ter força de lei, a sua base jurídica residirá provavelmente no poder tribunicio de que está investido.

Por outro lado, na capital, o imperador também não dispõe, nos inicios do principado, de verdadeiros funcionários de admi­nistração central; até Adriano, vai ter de ir buscar ao seu núcleo de «amigos» os elementos conscltutivos do conselho indispensável a qualquer chefe de Estado.

Mas a antiga máquina subsiste. Tendo os comícios morrido de velhice, a administração e as finanças, assim como a legislação, vieram a concentrar-se nas mãos do Senado.

Se o conjunto do território tivesse continuado a ser governado por este, o Império teria vindo a ser uma aristocracia, encabeçada por um ditador militar. Na realidade, tal nunca veio a suceder. a papel do imperador nunca cessou de aumentar a expensas do papel do Senado. Na prática real dos factos, o imperador não só chamou a si o comando do exército e o poder de decisão quanto à guerra e à paz, como também veio a apoderar-se de todo o poder do Estado, criando inclusive uma administração própria. De facto, logo desde o inicio, o principe e o Senado repartiram entre si as diferentes provincias. A fim de administrar aquelas que a si mesmo reservara, o imperador teve necessariamente de arranjar os seus governadores, as suas finanças-(o seu fiscus oposição ao aerarium); e como era ele quem dispunha da força, os seus abusos relativamente a todos os dominios possuídos pelo Senado foram cons­tantes.

Não iremos aqui voltar a traçar um esboço da evolução, lenta mas continua, que veio a transformar o principado num regime monárquico ou quase. No século III, uma tal evolução estava ainda longe de ter terminado. Sob o principado de um jovem bas­tante novo, Alexandre Severo (12 de Março de 222 - Fevereiro­-Março de 235), o Senado parece estar em vias de retomar um papel de primeiro plano adentro do Estado romano:

«Ele fornece o conselho de regência e secunda a imperatriz (mãe) Mammora. Atingida a maioridade, Alexandre não toma qualquer decisão sem ouvir a opinião do Senado; remete para este a escolha dos seus principais funcionários, dos prefeitos do pretório e da cidade, assim como dos governadores a destacar para as províncias proconsulares; e pede-lhe ainda frequentemente que escolha candidatos para as restantes provindas. Em Roma, põe à disposição do prefeito uma comissão de catorze personagens consulares encar­regadas de o ajudarem a prestar justiça e de repartirem entre si a tarefa de vigiar cada um dos quarteirões da cidade. Concede aos prefeitos do pretória a dignidade senatorial, a fim de que um senador romano só possa ser julgado por um outro senador. Não envia qualquer rescrito, não emite qualquer constituição sem antes ter ouvido o seu conselho, onde predominam os senadores. É ele próprio quem nomeia os cônsules, mas encarrega o Senado da sua designação. Restringe a autoridade dos procuradores imperiais e submete a sua eleição à aprovação popular; restabelece o aerarium a par do fisco ... Nada vem perturbar este acordo entre os dois poderes, reunidos no âmbito dessa nova forma de governo a que Herodiano chama aristocracia (VI, I). “A idéia do império senatorial é já quase uma realidade; alguns há que sonham mesmo em restabelecer a República, e tais esperanças podem detecetar-se inclusive nos discursos feitos por Dione Cássio a Mecenas e a Augusto”.

E é precisamente no termo deste reinado, com o assassinio de Alexandre Severo e de sua mãe, que rebenta a tremenda crise que esteve a ponto de levar à total desagregação do mundo romano e a pôr, assim, termo à sua dvilização, a qual, nos principios do século lil, era ainda tão notavelmente brilhante.

Vem, então, à luz do dia, sem quaisquer dissimulações, o vicio fundamental do Império. a Império Romano, a despeito das apa­rências, não possui uma constituição. Baseia-se apenas na força, numa força bruta desencadeada pelos mais baixos desejos.

Este poder absoluto do primeiro cidadão, concentrando e resumindo em si a majutas do povo romano, quem é que o confere? Não assenta em qualquer base sólida, legal. Quem designava o ditador militar, o imperador? O Senado, e sobretudo o exército, força guerreira do povo romano, ao sabor das circunstâncias, na persecução de um objectivo de interesse geral. Mas, mesmo após se ter dissociado do povo romano, o exército continua a exercer uma acção preponderante na escolha do senhor do Estado. Parece que o poder do imperador só passa a usufruir de uma total plenitude legal quando o princeps pôde obter ao mesmo tempo a concor­dância do exército e a concordância do Senado. Mas a qual dos dois poderes cabe a iniciativa legal? Ninguém o sabe. A desi­gnação pelo Senado seria mais tranquilizadora, mas não é a mais legitima. Na realidade, é o exército quem designa o imperador, pois é ele quem detém a força. Por vezes, chegou a acontecer ter tomado a iniciativa de pedir ao Senado para ser este a escolher, mas um tal pedido ocultou sempre uma ordem ou uma armadilha.

Na época antiga da história de Roma, o exército é pouco numeroso, formando um só corpo: pode acontecer que venha a designar espontaneamente o homem de quem espera a salvação. Mas desde o século I antes da nossa era, desde o nascimento da instituição do exército permanente remunerado, já não há um exército, mas sim exércitos. O imperador é o chefe a quem obe­decem e de quem esperam a vitória e o saque. Quando há só um chefe, um só imperador, o exército dispersa-se, passando as legiões (24, 30, 32, etc.) a acampar nas diversas fronteiras do Império, junto ao Reno, ao Danúbio ou ao Eufrates. Este afastamento de Roma e da Itália começa por beneficiar a guarda imperial, inicial­mente constituída por nove e mais tarde por dez das coortes pre­torianas aquarteladas em Roma. Não obstante, a partir da segunda metade do século I é já patente a participação das legiões frontei­riças na eleição do imperador; e, desde os fins do século II, tal vem mesmo a ser de regra, já que o predomínio dos pretorianos fora quebrado por Séptimo Severo (I93-ZII).

Os motivos de intervenção do exército, ou melhor, dos exér­citos, não são dos mais altruístas: põem-se e depõem-se impera­dores por dinheiro ou por razões de amor-próprio. As legiões chegam, por vezes, a apoiar um personagem militarmente incapaz quando este é rico (Didius Julianus). Mais tarde; cansam-se dele e acabam por o matar. E matam-no também no caso de o imperador ser demasiado rígido com a disciplina. Matam por capricho, matam por prazer, ou até mesmo, por vezes, por motivos já relativamente plausíveis, tal como no caso de o eleito se revelar incapaz de vencer os Bárbaros. Como é natural, estes exércitos lutam entre si, já que cada um deles pretende impor o eleito da sua escolha. No século li, estes exércitos já nem sequer precisam de ser excitados por ambi­ciosos. A sua agitação parece ser espontânea; repentinamente. de um dia para o outro, um dado exército decide dar o poder a pessoas que tremem de medo em aceitá-la. No período de cerca de meio século posterior à. morte de Alexandre Severo, ser eleito imperador é um trágico destino. Os eleitos (tais como Gordiano, Decius, Satuminus, Tetticus) aceitam o principado como quem aceita uma sentença de morte. A doença que não cessou de acometer o mundo romano durante os dois primeiros séculos do Império, e até mesmo após Macius e Sylla, vem a eclodir num acesso de febre convulsiva. Já não há povo romano. O Senado não passa de uma sombra; o representante da Respublica, o chefe do Estado, déspota todo-poderoso e temível, torna-se no escravo submisso de um monstro de cem cabeças, qual Calibão sem ideal, sem fé e sem lei: o exército dito «romano». E a história do Império passa a ser, e sê-lo-á para todo o sempre, apenas uma série ininterrupta de pro­nunciamentos militares.

O homem que atrasou em meio século a catástrofe, Séptimo Severo, pôs de lado toda a hipocrisia; não se prestou a comédias, tal como os seus predecessores. Consta que teria dado aos seus filhos, no seu leito de morte, na Bretanha, o seguinte conselho: «Enriqueçam a soldadesca e marimbem-se para o resto». Caracala veio a agir conformemente a este conselho cínico.

Não nos seria possível voltar a traçar aqui um esboço da his­tória do período dito dos Trinta Tiranos. Eis apenas um quadro genérico do Império na altura em que alguns soldados simples e rudes conseguiram pôr um travão à anarquia reinante.

A indisciplina dos exércitos coincide com um aumento de actividade dos Bárbaros junto às fronteiras do Reno e do Danúbio. Na Mésia, os Gados franqueiam o Danúbio. O imperador Decius é vencido e morto (Nov. de 251); e nem sequer foi possível encon­trar o seu corpo. No Oriente, o perigo é ainda mais grave. A velha monarquia dos Partos. que por muito tempo fora funesta aos Gregos e aos Romanos, acabava de se desmoronar. Um novo império persa veio a ser instituído por Arquedir em ZZ6-227. Os Arsácidas tinham conservado algo do helenismo; em matéria de religião, eram indiferentes. Com o persa, vem a triunfar uma nova religião, o masdeismo, a qual é sustentada e propagada por uma poderosa organização sacerdotal, a dos magos.

Os Persas são autênticos fanáticos. Nos países conquistados, deitam por terra todos os templos e impõem o masdeismo: assim aconteceu na Arménia quando Sapor (Shapour) a subjugou. O par­sismo é incompativel com a cultura greco-latina. São duas civili­zações em confronto. O choque foi extremamente violento e desas­troso para os Romanos. O imperador Valeriano foi feito prisioneiro (260) pelo rei dos Persas, Sapor, o qual lhe teria infligido tratamen­tos dos mais humilhantes, tal como servir-se do seu cativo como estribo para montar a cavalo.Um baixo-relevo gigantesco, o de Nakesh-i-Roustem, perto de Persépolis, mostra Valeriano de joelhos diante do rei persa, a cavalo. Segundo afirma a lenda, aquando da morte do cativo, a sua pele, depois de curtida, tingida de verme­lho e empalhada, esteve durante vários séculos dependurada num templo persa.

Galieno, filho e sucessor de Valeriano, foi incapaz de resgatar ou de libertar o pai. Tudo o que pôde fazer foi entregar o comando das forças militares, dando-lhe o titulo de dux e, mais tarde, de imperator (mas não de Augusto), a Septimius Odenath, o qual, de origem árabe, reinava como senhor todo-poderoso no oásis de Palmira, a meio caminho entre a Siria e o Eufrates. Odenath conseguiu vir a conter o inimigo com tropas sirias e árabes, equi­padas à romana.

Este Galieno, sob cujo reinado trinta tiranos - na realidade, dezoito competidores - vieram a dilacerar o Império, tem uma muito má reputação. Mas não nos devemos esquecer de que só o conhecemos através de um testemunho tardio e hostil, o do pre­tenso Trebonius Pollion. Sucede que foi sob o seu principado que rebentaram as revoltas que acabaram por vir a dividir o Império em vinte parcelas distintas. Como estas foram simultâneas, Galieno só conseguiu conservar a Itália. A Panónia elegeu sucessivamente Ingenuus, Regalianus, Aureolus; o Egipto, Macrianus, Aemilianus; a Grécia, Valens; a Tessália, Pison; a Isáuria, Trebolliamus; a Africa, Celsus. Os Gálios obedeceram, durante cerca de vinte anos (257-274) a imperadores privados, tais como Posthumus, Victorinus, Tetricus.

Existem em tal facto indícios de um particularismo, senão nacional, pelo menos regional. Nenhum destes imperadores deseja realmente separar-se de Roma, constituir um Estado à parte. Não se trata de separatismo (excepto em Pai mira, sob o reinado de Zenóbia). Todos ou quase todos combatem os Bárbaros, tal como no caso de Posthumus, o qual, tendo derrotado os Francos, manda cunhar moedas com a inscrição: salus provinciarum. Mas, se uma tal situação se tivesse mantido por longo tempo, o Império ter-se-ia fragmentado em seis, oito ou dez parcelas. A cabeça de cada pro­vincia ou grupo de provincias teria reinado um imperador demasiado fraco para triunfar sobre os outros. Com o tempo, o particularismo provincial teria acabado por vir a engendrar as nacionalidades. A situação na segunda metade do século liI teria vindo a ser a dos séculos V e VI. Só que, em vez dos reinos romano-germânicos dos Ostrogodos na Itália, dos Visigodos na Espanha, dos Francos e dos Burgúndios na Gália, ou dos Vândalos em Africa, teríamos tido Estados de cultura romana, facto que talvez tivesse tido o seu interesse, na condição de tais parcelas do Império terem estado à altura de resistir à pressão das forças bárbaras. O aumento de uma tal pressão, a partir do século III, é tão forte que as perdas da Romania em prol do germanismo ter-se-iam revelado ainda mais graves. Fosse como fosse, é a uma série de imperadores iliricos que ficou a dever-se, em 274, a partir de Aureliano, o restabeleci­mento da unidade imperial, a expulsão dos Bárbaros, o esma­gamento do particularismo oriental, gaulês, etc., assim como a ruína definitiva do poder do Senado.

Infelizmente, este restabelecimento quase milagroso da uni­dade imperial em nada alterou o vicio fundamental do Império. Pelo contrário, o frenesi febril do exército vem a exasperar-se. Os imperadores acabam todos por perecer às mãos dos seus pró­prios soldados. Galieno, o qual tinha, contudo, conseguido pro­teger a Itália contra os Alamanos, após ter derrubado diversos usur­padores e reconquistado a Panónia, vem a ser morto por ser tido como demasiado brando (268). Tácito, velho senador aceite pelo exército apenas por ser rico, é morto ao fim de seis meses sob a acusação de fraqueza: mas, na realidade, a verdade é que, como já não tem nada, visto ter distribuído toda a sua fortuna pelos soldados, estes optam por suprimi-la (275). Homens dos mais notáveis, velhos soldados saldos das fieiras, tais como Aureliano e Probus, vêm a ser assassinados pelos seus companheiros de armas a pretexto de serem demasiado exigentes com a disciplina. Por maiores que tenham sido os serviços prestados ao Estado, ou ao próprio exército, isso em nada conta. No dia seguinte, após o crime, é possível que os soldados lamentem a loucura cometida, mas tal não os impede de recomeçar na primeira ocasião.

É preciso descobrir qualquer coisa, seja o que for, desde que seja diferente.


LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926)



voltar para O Fim do Império Romano