Conclusões

Quando a unidade romana se desfez no Ocidente, havia duas fórmulas politicas possíveis caso se quisesse evitar que o mundo soçobrasse na barbárie: a reconstituição do Império ou o estabelecimento de um modus vivendi entre os Romanos e os Bárbaros insta­lados no seu território.

Justiniano julgou-se à altura de reconstituir a unidade romana. Pôde recuperar a Africa e, ainda que a muito custo, a Itália, seguin­do-se-lhe algumas parcelas da Espanha. A Gália, contudo, encontrava-se fora do seu alcance e sem esta não era viável qualquer reconstrução no Ocidente. A reconquista não correspondia, de modo algum, a um desejo expresso dos romanos do Ocidente. As popu­lações não chamaram os romanos do Oriente, que, tanto pelo espírito como pela lingua e pelos costumes, lhes eram já estranhos. A situação de Constantinopla era demasiado excêntrica para lhe permitir dominar o conjunto do Mediterrâneo. Bem feitas as contas, a obra de Justiniano revela-se arcaica, artificial, malfazeja, pois veio a ter por resultado deixar a Itália sem defesa contra os Germa­nos do Danúbio e acabar por entregar a África nas mãos dos semi­-selvagens berberes.

Mas uma outra via fora já traçada pelos próprios acontecimen­tos. Desde os anos de 378 e 407 que se tornara evidente que Roma, não só já não podia continuar a repelir o mundo bárbaro das suas fronteiras, como também que já não tinha meios para conseguir assimilar, romanizar, as inúmeras hordas que se iam instalando no seu solo. Não obstante, até era possível chegar a um acordo com os Germanos, particularmente com os Godos. Esses povos não pensavam, de modo algum, em destruir o mundo romano, mas sim apenas em porem-se ao seu serviço, ou então em viver às suas custas. De facto, a despeito de inúmeros sofrimentos de ordem individual, não houve qualquer alteração de ordem social, qualquer golpe mortal desferido na cultura antiga, resultante da instalação dos Ostrogodos na Ilíria, e, mais tarde, na Itália, dos Visigodos na Gália e em Espanha, dos Borguinhões no vale do Ródano ou até mesmo dos Vândalos na África do Norte.

O mundo romano só conseguira até então subsistir à custa de uma impiedosa repressão, e esta repressão, quebrando toda a energia das populações, toda a sua capacidade de resistência, tornara o Império numa presa fácil para os Bárbaros, que, por si sós, não eram nem muito numerosos, nem muito perigosos. Quando os laços que uniam entre si as diversas populações teoricamente romanizadas, mas separadas na prática pela geografia, pela raça, pelos usos e costumes, pelas aspirações, se vieram a romper, não teria sido possível tirar partido do facto consumado? Ao porem fim a uma forma politica caduca, o Império, será que os Bárbaros não teriam podido vir a libertar os povos, e assim, sem o saberem nem o quererem, lhes virem a ser indirectamente benfazejos?

A Itália, a Gália, a Grã-Bretanha, até mesmo a África do Norte, são individualidades geográficas. Cada uma destas regiões podia e devia ser a sede de uma civilização autônoma. A grande crise do século III, ao despedaçar em mil e um fragmentos o mundo romano, parecera por instantes passível de vir a favorecer a cons­tituição de nacionalidades à base da cultura latina. Mas as popu­lações tinham perdido todo o sentimento nacional ou até mesmo particularista. No seu conjunto, não passavam de simples fragmen­tos que aspiravam voltar a unir-se a fim de que pudesse ter lugar a reconstituição do imponente conjunto do Império. Dois séculos mais tarde, as populações já não passam de uma simples massa amorfa sem qualquer espontaneidade, radicalmente incapaz de dirigir os seus próprios destinos. Cristalizando aquilo que ainda pudesse subsistir de energias latentes entre os indígenas em torno de uma dinastia bárbara, teria sido possível voltar a dar a estes paises, esmagados sob a uniformidade romana, uma figura pessoal e uma vida original.

Na verdade, foi isto o que se passou em Espanha, mesmo a despeito do obstáculo constituído pelo arianismo da raça. domi­nante. Em fins do século VII, a fusão entre Godos e Hispano­-Romanos era já bastante avançada, e, de todos os pontos de vista, a Espanha tendia para a unidade. E teria sido isto que certamente acabaria por suceder na Africa Menor e na Itália com os Vândalos e os Ostrogodos, se não fosse a inconsiderada empresa de Justiniano, assim como na Gália, se não tivesse havido um acidente chamado
Clóvis.

Infelizmente, estes Estados romano-germânicos bem depressa vieram a revelar-se como Estados de uma grande fragilidade. A cul­tura romana não foi favorável aos Bárbaros. Estes limitaram-se a macaqueá-la, sem nunca conseguirem vir a assimilá-la. O clima meridional contribuiu certamente para os debilitar. Eram pouco numerosos e os seus exércitos sempre permaneceram onde, tal como na África ou na Itália, persistiram em constituir um grupo à parte. Quanto aos Visigodos da Gália e da Espanha, que se mis­turaram com os indígenas, tendo-os inclusive alistado no exército, acabaram indubitavelmente por vir a ser esmagados pela enorme mole destes últimos. Finalmente, estes povos desenraizados não traziam qualquer nova instituição política para além da realeza. A sua coesão era unicamente devida ao ascendente de um chefe ilustre, ao prestígio de uma dinastia. Quando as velhas famílias, tidas como de ascendência divina, dos Amales e dos Baltos vieram a desapa­recer, isto entre os Godos, o trono passou a estar daí em diante à mercê de incessantes lutas pelo poder. O Estado vândalo de África, o Estado gótico de Toulouse, o Estado gótico de Toledo, sucumbiram numa só batalha. E se os Ostrogodos ofereceram uma prolongada e tenaz resistência, isso advém em boa parte do facto de Justiniano só lhes ter podido opor forças bastante irrisórias.

Os Estados fundados pelos Francos e pelos Lombardos não tiveram - pelo menos de início - esse carácter misto, anfíbio, dos Estados góticos. Os Lombardos são conquistadores rudes e implacáveis, mas, entre eles, e quase de seguida, a aristocracia vem a abater a monarquia. Os reis não conseguem unir toda a Itália sob a sua autoridade, não só devido à oposição de Bizâncio e do papado, mas também porque o seu Estado só compreende praticamente o vale do PÓ e uma parte da Toscânia, já que os prin­cipados lombardos do Centro e do Sul são, na realidade, inde­pendentes. A nação lombarda nunca fora, numericamente falando, um grande povo, nem na Germânia, nem na Panónia. Integralmente transferi da para a Itália, bem depressa deve ter vindo a ser absorvida pela população indígena. No século VIII, um lombardo é um homem que vive sob a autoridade de um príncipe de origem bárbara e conformemente ao direito germânico, mas que pela língua e pelo sangue já é, muito provavelmente, um italiano. E bastarão duas campanhas para pôr fim ao reino de Pavia.

Já vimos qual o carácter específico do Estado franco. A sua constituição nasceu da ambição de um homem. A população galo­-romana aceitou de imediato o domínio, ou, mais exactamente, a preponderância dos Francos. O centro do poder bem depressa vem a ser transferido para território romano. Contudo, possui na sua rectaguarda, e é precisamente isso que falta ao Estado lom­bardo, fortes reservas germânicas, no Escaut, no baixo Mosa, no Mosela, no Rena. Os Francos conservarão a sua individuali­dade no meio da população indígena. Virão mesmo a impor-se­-lhe pelo seu prestígio. A partir de inícios do século VI, eles cons­tituem a mais temível potência da Europa Ocidental, vindo a dominar a Gália, quase toda a Germânia, e, ainda que só momen­taneamente, o Norte da Itália. Mas também entre eles a única ins­tituição existente é a realeza. E esta vem a entrar em decadência em fins do século VI. No século VII, a. aristocracia sobrepõe-se-lhe. Apenas a instituição do mordomo-mor do palácio, autêntico vice­-rei, impede o Estado de entrar em total desagregação. Uma família hábil e ambiciosa da Austrásia consegue mesmo vir a reconstituir a unidade do Regnum Francorum, afastando os seus rivais da Nêustria e da Borgonha e passando, depois, a reinar sob o nome do Mero­víngio degenerado. Mas, no princípio do século VII, parece que esta casa irá, por seu turno, desaparecer. E se não fosse o apareci­mento de um novo Clóvis, Charles Martel, o Estado franco acabaria por perecer sob os golpes dos germanos pagãos, por um lado, e dos muçulmanos da Espanha, por outro.

No século VIII, a derrocada é, portanto, geral. Os Estados mais germânicos, dos Francos e dos Lombardos parecem ser tão ruinosos como os Estados romano-germânicos dos Godos.

A entrada dos Bárbaros no mundo romano, seja qual a forma sob que tenha tido lugar, não conseguiu, pois, nem regenerar o mundo antigo, nem vir a substituir-lhe novas e melhores formas políticas.

A regeneração pelos Bárbaros é uma tese a priori sedutora. Mas, após termos tido ocasião de entrever, pelos textos de então, a medonha corrupção desses tempos, é impossível ver numa tal tese outra coisa para além de um simples tema retórica de decla­mação. As monarquias franca, visigótica, ostrogótica, lombarda, são outras tantas Bizâncio germânicas, aliança da decrepitude com a barbárie. Semelhantes Estados, sem frescura, sem quaisquer vir­tudes purificadoras, não eram viáveis ou mais não podiam do que limitar-se a arrastar uma existência miserável. Nenhuma força vital contribuiu para os reanimar, uma vez passado o período guerreiro da sua constituição. Quanto à Igreja católica, veio a reve­lar-se impotente para melhorar, por pouco que fosse, as novas sociedades. Também neste caso a falência foi total.

À margem destes Estados, os Germanos vieram a fundar alguns outros totalmente bárbaros, em territórios que outrora foram romanos, entre o curso superior do Danúbio e os Alpes, assim como na Grã-Bretanha. Não há tempo nem motivo para neles nos determos: os ducados da Alamânia e da Baviera sofreram a influência dos Francos, acabando por serem quase que um anexo do seu Regnum. Na grande ilha, Anglos, Jutas e Saxões procederam à mais impiedosa das conquistas, fazendo desaparecer, tanto quanto lhes foi possível, toda e qualquer lembrança da passagem de Roma. A história dos seus pequenos reinos e das suas inúmeras fragmen­tações não tem nada que seja digno do nosso interesse. Tal como os Estados mistos romano-germânicos, também os Estados intei­ramente germânicos não denotam, neste período histórico, quaisquer progressos apreciáveis na marcha da humanidade.

Contudo, novas forças tinham nascido ou estavam em vias de nascer, sendo a elas que o futuro estava reservado: o Islão, cujo prodigioso sucesso tem algo de milagroso; o papado, que iria tomar nas mãos a direcção da Igreja e tentar dominar a sociedade civil; e, finalmente, a vassalidade, gérmen orgânico do regime feudal, que virá a encarnar a vida da Europa Ocidental durante longos e longos séculos.

E é com estas forças que tem realmente início a Idade Média.


LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926).


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