Os Escritores da Gália

Já vimos que a Gália foi, durante o século V, o país do Ocidente que mais bem conservou a tradição cultural clássica, visível até mesmo no âmbito da literatura cristã, e pôde contar com uma produção de bom nível, mesmo desprovida de elementos de destaque. Mas as condições sociais e políticas mudam no século VI. Na Gália, tinham sido famosas, e continuaram a sê-Io durante todo o século V, as escolas de retórica, que tinham permitido cultivar com assiduidade a poesia, a homilética, a cronografia. Mas com a fixação na Gália dos invasores francos, de uma população bem menos civilizada de burgúndios e dos godos, que no passado já havia estado em contato com os romanos, a situação mudou radicalmente e a decadência começou a se fazer sentir, sobretudo, havia na segunda metade do século VI. A escola sofreu um declínio incontro­lável: quase completamente em mãos dos eclesiásticos, ela não cultivou as letras como no século anterior; até mesmo os escritores cristãos não tiveram nenhum contato com outras regiões do Mediterrâneo. Tendo­se convertido rapidamente ao catolicismo (o rei dos francos, Cordoveu, foi posteriormente celebrado por causa de sua fé), os francos envolve­ram até a Igreja na administração do poder. Por isso, ela teve de passar por um processo de barbarismo e uma decadência notável nos próprios costumes.

Cesário de Arles dá testemunho do fato de que boa parte do clero de seu tempo era absolutamente ignorante. Mesmo tendo tentado opor-se a essa situação, ele teve de se adaptar, como no-lo mostram suas homi­lias, ao nível de seus fiéis e de seus subalternos. Um historiador como Gregório de Tours seria impensável na Itália, e sua concepção historio­gráfica está nos antípodas da de um Cassiodoro ou de um Jordão. Não sem razão o maior poeta da Gália, da segunda metade do século VI, Venâncio Fortunato, era originário da Itália, onde recebera uma acurada educação literária em Ravena.

AVITO DE VIENNE
Percebe-se claramente em Alcimo Ecdício Avito prosseguimento da tradição literária na cultura cristã, sem que intervenha nenhuma inter­rupção na passagem da sociedade romana à sociedade dos reinos roma­no-bárbaros. Avito soube conciliar a atividade prática do episcopado na importante cidade de Vienne ao cuidado com uma poesia refinada e de bom nível artístico. Em muitos aspectos, ele manteve os traços de um literato do século V e nada teve a ver com a decadência que se apossou da Gálía no século VI.

Originário de uma família senatoria de Vienne, nasceu por volta do ano 450. Avito tornou-se o bispo de maior autoridade no reino dos burgúndios, que ainda eram arianos; manteve um dissenso contínuo com o rei Gundobaldo e conseguiu converter ao catolicismo o herdeiro do trono, Sigismundo, mantendo sempre estreitas relações com o papado. Presidiu um concílio local na Gália, que sancio­nou, no ano de 517, a conversão dos burgúndios. Morreu pouco tempo depois, no ano de 518.

Avito dedicou-se, como era o costume também nos tempos que o precederam, ao gênero literário da epístola, tendo escrito 86 cartas, en­viadas a ilustres personagens da Gália, aos principais no bres dos francos e ao próprio rei Clodoveu, que exatamente naquele período estavam convertendo-se ao catolícismo. Escreveu ainda a senadores romanos e ao imperador Anastácio. O modelo que Avito tinha em mente em sua atividade líterária foi Sidônio Apolinário, que gozava de grande fama na Gália e era considerado, em seu papel de escritor e bispo, o tipo ideal do literato cristão.

O estilo do epistolário de Avito é declamatório, muito sofisticado e retórico, assim como o estilo de suas homilias, três das quais chegaram até nós na íntegra, quando da maioria nos chegaram apenas fragmentos.

Mas, é mais famosa sua obra poética: em versos bem trabalhados, es­creveu os cinco Libelli de spiritalis historiae (Livros que ilustram os acon­tecimentos da história espiritua!). Este não era o título do poema, mas a indicação com a qual o autor designou, em uma carta que escrevera, a sua obra poética. Dá para perceber que se tratava de uma interpretação tipológica de dois dentre os mais famosos episódios da história bíblíca, um livro para cada um deles: o início do mundo e do homem, o pecado original, o julgamento de Deus (primeiro episódio); o dilúvio e a passa­gem do mar Vermelho (segundo episódio).

Alcimo Avito alinha-se, portanto, à categoria dos poetas da epopéia bíblica e é um versificador de bom nível, dono de uma língua pura e de um estilo que sabe imitar os modelos clássicos e cristãos. Ele é possuidor de grande capacidade descritiva, confirmada por freqüentes digressões narrativas, como a da transformação da mulher de Ló em estátua de sal (uma "metamorfose" que é descrita à maneira de Ovidio) e a da inunda­ção do Nilo. Muitos outros episódios mostram uma acentuada imitação dos grandes poetas e dos mitos clássicos.

CESÁRIO DE ARLES
Se Avito estava situado a meio caminho entre duas épocas, a época tão fortemente letrada do século V e a época já percorrida pelos proble­mas e perturbações que infestavam os reinos bárbaros, que eram política e socialmente tão instáveis, Cesário de Arles viveu em um ambiente com­pletamente diferente.

Nascido por volta do ano de 470 nas proximidades de Châlons, no país dos burgúndios, aos 20 anos, Cesário entrou no claustro de Lérins, de modo que sua formação cultural foi de tipo retórico e literário, como era costume no século V. Mas sua concepção pessoal da ascese cristã, que queria pôr em prática, levou Cesário de Aries a fundar no ano de 499 e a dirigir pessoalmente um mosteiro. No ano de 502, tornou-se bispo de Arles e ali permaneceu, a despeito de toda a hostilidade que teve de suportar nos primeiros anos da parte de Alarico II, o rei dos visigodos. Depois de alguns acontecimentos alternados (Aries foi primeira­mente conquistada pelos francos e depois pelos ostrogodos), no ano de 514 o papa Símaco nomeou Cesário primaz das Gálias e da Espanha. Eie morreu em Aries, no mosteiro por ele fundado, em 542 ou 543.

Suas duas mais importantes obras são as Homilias (Sermones), às quais foram acrescentadas muitas que eram espúrias, como normalmente acontecia com os pregadores famosos (por exemplo, Agostinho de Hi­pona, Máximo de Turim e outros), até ser alcançado o número de 238 homilias. Elas foram agrupadas por temas: Homilias de exortação ao povo (Admonitiones ad populum), Homilias sobre as Sagradas Escrituras (De Scriptura), Homilias sobre as festas (De tempore), Homilias sobre os santos (De sanctis), Homilias aos monges (Ad monachos).

Como pregador, reconhecem-se em Cesário vivacidade e disponibi­lidade para a comunicação, atenção às exigências materiais e espirituais dos fiéis, aos quais falava abandonando toda a sofisticação literária. Ele se valia da linguagem popular de todos os dias, adaptando-se à capacidade de compreensão dos ouvintes, evitando por todos os meios os artificiosidades da retórica. Esses princípios, segundo os quais era necessário ex­primir-se do modo mais escorreito e simples, a fim de ser compreendido até pelos iletrados, são repetidamente reafirmados por Cesário de Arles e constituem a essência mais característica de sua homilética. Essa é a razão de uma perceptível importância das homilias de Cesário de Arles também no plano lingüístico.

Quanto ao mais, Cesário de Arles lança mão dos motivos tradicio­nais da exegese e da espiritualidade monástica; não faz nenhuma espécie de referência aos acontecimentos políticos de seu país, nos quais, não obstante, esteve envolvido de tantos modos, mas se apóia apenas na rea­lidade social dos cristãos. Portanto, resulta da pregação de Cesário de Arles um quadro certamente negativo, mas interessante para o conheci­mento do cristianismo popular no mundo antigo, facilmente presa das piores superstições e, substancialmente, no mesmo nível do paganismo.

VENÂNCIO FORTUNATO
A poesia na Gália foi cultivada por Venâncio Fortunato, que pode ser seguramente considerado como o maior poeta cristão do século VI, não apenas de um ponto de vista formal, mas ainda pela variedade dos interesses e dos motivos espirituais que o animaram.

Mesmo tendo sido originário da Itália (nascera em Valdobbiadene, nas proximidades de Treviso, por volta do ano 530) e tendo completado seus es­tudos em Ravena, Venâncio é geralmente considerado como um poeta do am­biente gálico, porque, tendo empreendido com a idade de 35 anos uma pere­grinação a Tours por motivo de gratidão para com S. Martinho, que o curara miraculosamente, desde então não mais regressou para a Itália. Naqueles anos, a Itália estava devastada pelas guerras e pelas invasões dos lombardos, ao passo que o reino dos francos estava entre os mais poderosos e prósperos da época. Venâncio, então, estabeleceu-se primeiro em Metz e depois em Paris, dedicando-se à atividade poética, especialmente apreciada na corte dos reis francos. Sua atenção se dividia entre a poesia profana e a poesia religiosa. Contudo, o poeta não permaneceu na corte dos reis francos, mas se estabeleceu em Poitiers. Ali fez amizade com os mais importantes literatos da época, como Gregório de Tours, e com seus carmes conferiu força renovada ao ideal ascético. Foi ordenado sacerdote e, em 597, foi nomeado bispo de Poitiers. Morreu poucos anos depois.

Venâncio foi um poeta fecundo e tentou vários gêneros poéticos, que foram recolhidos em um conjunto de 11 livros que têm como título Obras compostas (Miscellanea). Alguns carmes do primeiro livro remon­tam ainda a quando ele vivia em Ravena. Trata-se de poesia variada e de ocasião. Tudo é tratado com semelhante facilidade, com versos fluentes e agradáveis, fato que dificulta perceber uma linha precisa e homogênea na produção poética de Venâncio. Considerados em seu conjunto, os Mis­cellanea são úteis ainda para conhecer o ambiente histórico, não só cultu­ral, da França do século VI, não obstante seja redutor considerar a poesia de Venâncio apenas como um testemunho da história dos francos. Dize­mos sobretudo que, nele, a versificação fluente e acurada, disponível para qualquer ocasião, é preeminente sobre a profundidade dos sentimentos e sobre o compromisso poético em sentido pleno. Entre suas qualidades, está a capacidade descritiva por meio da qual Venâncio se destaca de uma difusa monotonía que caracteriza a maior parte de sua poesia.

São muito famosos dois Hinos de caráter litúrgico, compostos quan­do Justino II, o imperador de Bizâncio, enviou à rainha Radegunda, viú­va do rei Clodoveu, uma relíquia da cruz de Cristo, que foi recebida em Paris com grande solenidade. O primeiro hino é (seguindo a nomeação do primeiro verso) o Pange) lingua) gloriosi proelium certaminis (Canta língua minha) a luta do glorioso certame), inspirado no nono dentre os Hinos da jornada de Prudêncio. O "certame" ao qual Venâncio se refere é o da luta entre Adão e Cristo, entre o pecado e a redenção, entre o lenho da árvore do paraíso e o lenho da cruz. O segundo se inicia com as palavras Vexilla regis prodeunt (Eis que as insígnias do Rei avançam) e é composto sobre o esquema do hino ambrosiano. São hinos que depois entraram no uso habitual da Igreja.

Venâncio ainda escreveu, em prosa, sete breves Vidas de santos locais, como Hilário de Poitiers, Marcelo, Germano e outros. Dentre elas, a mais im­portante é a biografia de sua protetora, Santa Radegunda, na qual se percebe a ausência de todo motivo pessoal, de gratidão, de afeto, visto que o interesse predominante é o hagiográfico. Da santa se destacam apenas os milagres e as virtudes. A obra pertence aos últimos anos da atividade do poeta, dado que Radegunda morreu em 587.

GREGÓRIO DE TOURS
Gregório de Tours foi contemporâneo de Venâncio Fortunato. Sua obra mostra o outro lado da realidade da época, ou seja, as míseras con­dições da plebe e a ignorância das classes médias na Gália do século Vi. Com Gregório de Tours, não percebemos mais a atmosfera refinada, mesmo que abstrata, da poesia maneirista, das composições para efemé­rides importantes, que Venâncio Fortunato nos oferecera, mas o atento exame das coisas e dos acontecimentos, mesmo daqueles de pouco peso político, que também têm peso na história.

Nascido no ano de 538 em Arverna, sofreu o forte impacto de uma peregrinação a Tours, em 563, para onde se mudara por conta de uma doença. Tornou-se devoto de Martinho de Tours e posteriormente foi eleito bispo de Tours, em 573. Sua eleição foi celebrada por Venâncio Fortunato. Gregório foi um bispo que governou com energia e piedade cristã em um período de graves perturbações, que eram comuns nos reinos romano-bárbaros. Ele teve também de se opor às prepotências dos reis francos e de tomar consciência de que a fe­rocidade bárbara era o que prevalecia em seu tempo, com tudo aquilo que isso comportava também no plano da doutrina da Igreja (por exemplo, uma forte retomada das superstições e da idolatria). Morreu em 594.

Gregório de Tours foi um representante da aristocracia galo-ro­mana, que, na Gália totalmente entregue à dominação dos francos, continuava a subsistir, dado que ainda detinha a posse de uma parte representativa das posses antigas. Desse modo, ela podia dar sua contribuição à sobrevivência da cultura antiga e fornecer à Igreja quadros para os mais altos postos da hierarquia. A educação de Gregório de Tours foi bastante aprofundada, mas unilateral. Estudou as Escrituras, mas conheceu bem pouco os escritores cristãos: Orósio, Sulpício Seve­ro e Prudêncio eram mais familiares a ele que Jerônimo ou Agostinho de Hipona. Posteriormente tentou preencher suas lacunas, recorrendo à cultura clássica, mas seus conhecimentos são sobretudo de segunda mão e se limitam aos escritores mais conhecidos, como Horácio, Vir­gílio e Salústio.

Sua obra de maior importância é a História dos francos (Historia Francorum), em dez livros, na qual o autor parte de Adão e percorre de modo extremamente sintético a história anterior a ele, até a morte de Martinho de Tours, seu herói, que se dá no ano de 397. Os acon­tecimentos, ele os retira do Antigo Testamento e, quanto ao mais, da Crônica de Jerônimo. Na realidade, o escritor quer dar a conhecer sua própria época. A partir do quinto livro concentra-se em narrar de modo mais pormenorizado, ao passo que os quatro primeiros podem servir de introdução. Gregório de Tours não está interessado na realidade profa­na, e sim nos acontecimentos de caráter religioso, e sua narração chega até o ano de 591, pouco antes de sua morte.

Mas isso não faz com que sua história seja privada de interesse. Ela se tornou objeto de uma renovada atenção nesses últimos 20 anos, como conseqüência de uma renovação das teorias historiográficas. Enquanto os estudiosos do passado falavam de "ingenuidade" e de "simplicidade" de Gregório de Tours, dando a esses termos um significado negativo, agora os historiadores estão mais atentos aos fatos da história local, à vida dos humildes, às crenças, assim como às superstições dos iletrados. Estão interessados na "cultura" do povo, nas invenções e no imaginário irracional, que dominavam e ainda dominam (não menos que a realida­de concreta) a vida humana. Portanto, a história de Gregório de Tours não deve ser entendida como história na acepção clássica. Nisso consis­tem, simultaneamente, sua novidade e seu limite, segundo o ângulo de análise. Talvez ele não tenha lido nem mesmo os historiadores latinos; certamente não leu os gregos, para deles extrair o modelo a seguir em sua narração.

Gregório de Tours acentua a teologia da história, a concepção de uma justiça de Deus imanente nos fatos humanos, que aprendera de Orósio, a quem cita muitas vezes. Segundo Gregório, a mais significativa manifestação da intervenção de Deus no mundo é constituída pelo mila­gre. Pode-se dizer que sua história é constituída de uma série de relatos hagiográficos, nos quais o escritor se esforçou, de um modo por vezes até ingênuo, para recolher os milagres. Os mártires são os verdadeiros heróis dessa história cristã, e nela se enfatiza o interesse pela ascese e pe­las provações que os monges enfrentam. De resto, essa atitude está em conformidade com a "cultura" da época de Gregório de Tours, mais que uma especulação descomprometida e teórica.

AS mesmas características, talvez até mais acentuadas por causa do tema tra­tado, podem ser percebidas nos oito Livros dos milagres (Miraculorum libri), nos quais se narram, com uma credulidade que beira as raias do inverossímil, os milagres operados por vários santos, ou até mesmo por suas relíquias. De todo modo, até mesmo essa obra, não obstante a atitude irracional do escritor (ou talvez justamente por isso), é uma mina de noticias preciosas, relativas à cultura religiosa, de alto e de baixo nível, da França do século VI, que pode servir de exemplo e de paradigma para toda a cristandade da época bárbara.

Como escritor, Gregório de Tours está situado no fim da época clássi­ca. Ele não tem a consciência, que em seu tempo ainda possuíam homens como Cassiodoro e Isidoro de Sevilha, de que tinha de salvar o salvável da cultura antiga, em uma época de violência e de barbáries. Suas obras parecem notavelmente corretas no plano gramatical, mesmo com o autor tendo declarado (certamente exagerando) que não conhecia a gramática.


Por MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005.


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