A Literatura dos Reinos Romano-Bárbaros do Ocidente

O século VI é classificado como o século dos "reinos romano-­bárbaros", mesmo que este título careça de alguns esclarecimentos, porque, a rigor, os bárbaros que invadiram o Império Romano tinham constituído seus reinos desde o século V. Mas enquanto no século V a situação se manteve fluida, com sucessivas ondas de invasão, o século VI vê uma divisão mais clara de territórios. A Espanha está nas mãos irremovíveis dos visigodos, a Gália, nas dos francos. Os vândalos na África e os ostrogodos na Itália são derrotados pelo avanço dos bizan­tinos, comandado por Justiniano. Em qualquer ex-região do império, a literatura não é mais "greco-romana", mas, por causa da fragmentação e da ausência de relações recíprocas e de relações com o Oriente, tor­na-se "nacional". Não porque exprima conscientemente a pertinência a determinado lugar, mas porque peculiar àquele reino e intimamente ligada a suas circunstâncias. Além disso, figuras como a de Gregório Magno pertencem doravante à Idade Média: termina com Gregório o conhecimento da língua e da literatura grega e o passado começa a ser sempre mais percebido como herança a recolher, a resumir e a trans­mitir à posteridade.

Na África, os vândalos foram derrotados em 533-534 pelos bizan­tinos que se apresentavam como romanos (e a conquista era anunciada como "reconquista"). Mesmo sendo opressora e deplorável, a domi­nação bizantina teve o mérito de forçar os escritores cristãos da África a participar dos debates teológicos suscitados pelos intelectuais de Bi­zâncio, ao passo que, sob a dominação vândala, eles tinham se isolado na idéia de refutar o arianismo dos invasores, questão que já não tinha sentido em todas as outras ex-províncias do império.

FULGÊNCIO DE RUSPE
Nascido em Telepte, na Bizacena, no ano de 467 (segundo outros, em 462), Fulgêncio de Ruspe recebeu uma educação clássica na qual ainda teve certo peso o estudo do grego. Seu biógrafo, Ferrando de Cartago, informa-nos que ele falava um grego fluente e conhecia Homero. Tendo-se dedicado inicialmente à carreira administrativa, converteu-se logo depois. Obrigado a constantes exílios em sua própria pátria por causa das perseguições do rei Trasamundo (496-523), Fulgêncio, que se tornara monge, projetou ir para o Egito, onde se refugiaria em algum mosteiro. Uma vez em Siracusa, foi informado de que o Egito estava em desordem por causa da heresia monofisita, diante do que ele se dirigiu a Roma, lá chegando no ano de 500. Em 507, Fulgêncio de Ruspe estava de volta à África e, mais uma vez, não pôde dedicar-se à vida monástica, que tanto amava, porque lhe chegou a notícia de sua nomeação como bispo de Ruspe (cidadezinha da Bizacena). Mas Trasamundo, rei de fé ariana, proibira as ordenações episcopais e obrigou Fulgêncio e outros 60 bispos católicos a irem para o exílio na Sardenha. Em Cagliari, por fim, Fulgêncio de Ruspe pôde fundar um mosteiro, junto com alguns amigos seus, e evangelizou a região. Por outro lado, ele permanecia como ponto de referência para os bispos da África, que o solicitavam como árbitro de controvérsias dogmáticas. No ano de 515, Trasamundo o chamou a Cartago para que ele discutisse publicamente com os teólogos do lado ariano. A vitória lhe valeu um novo exílio na Sardenha, em 517. A morte de Trasamundo e a sucessão ao trono do tolerante Ilderico (523) permitiram a Fulgêncio o retorno à pátria, onde morreu em 532.

As primeiras obras de Fulgêncio de Ruspe são todas vinculadas à controvér­sia com os arianos. O Contra arianos liber unus (Contra os arianos, em um livro) responde a algumas das objeções movidas contra ele pelo próprio Trasamundo e é datável do ano de 515, depois do primeiro retorno da Sardenha. Os Ad Thrasa­mundun regem Vandalorum libri tres (Três livros a Trasamundo, rei dos vândalos) constituem uma resposta ao rei sobre o problema das duas naturezas, humana e divina, na única pessoa de Cristo. A obra foi escrita às pressas e sem que ele tivesse diante de si o texto das perguntas feitas a ele pelo soberano. Parece que se pode datar do segundo exílio na Sardenha (517-523) a obra De remissione peccatorum ad Euthymium libri duo (Sobre a remissão dos pecados, a Eutímio, em dois livros), que reafirma como o perdão dos pecados só é possível no seio da Igreja. Por sua vez, foram escritos depois do exílio, isto é, depois do ano 523 o Contra sermonem Fastidiosi arriani ad Victorem liber unus (Livro a Vítor, contra a heresia do aria­no Fastidioso) e Contra Fabianum libri decem (Contra Fabiano, em dez livros), que só chegaram até nós na forma de fragmentos. Fastidioso era um católico, monge e sacerdote, que passou para o arianismo. Fabiano, por sua vez, publicara de modo não fidedigno o texto de uma discussão que tivera com Fulgêncio de Ruspe. De datação incerta são outros breves tratados endereçados a arianos ou a catecúmenos para lhes ensinar a reta fé.

É tradicionalmente atribuído a Fulgêncio de Ruspe o Psalmus contra Vanda­los Arrianos (Salmo contra os vândalos arianos), que parece bem colado ao Psal­mus contra pa;tem Donati, de Sto. Agostinho. Com efeito, o bispo de Hipona é o mestre indiscutido de Fulgêncio de Ruspe, o modelo que ele quer seguir.

Por seus escritos antipelagianos, Fulgêncio de Ruspe passou a ser conhecido na Idade Média como Augustinus breviatus. Estes escritos pertencem todos ao período que vai do ano 518 a 523. Os três livros Ad Monimum (A Mônimo) enfrentam o problema da predestinação divina e do "chamado" de Paulo. O De veritate praedestinationis et gratiae Dei ad Ioannem et Venerium libri tres (Sobre a verdadeira doutrina da predestinação e da graça de Deus a João e a Venério, em três livros) tenta reavaliar o livre-arbítrio, mas não se afasta substancialmente da doutrina da graça de Agostinho. O Contra Faustum Reiensem libri septem (Con­tra Fausto de Riez, em sete livros) infelizmente se perdeu. O Epistolário é compos­to de 19 cartas, todas datáveis da época do exílio na Sardenha. Na última fase de sua vida, isto é, depois do retorno definitivo para a pátria, Fulgêncio se dedicou à atividade homilética. Nas homilias, percebe-se uma forte semelhança entre seu estilo (baseado na rima e na antítese) e o de Agostinho.

Fulgêncio de Ruspe não deve ser confundido com um outro Fulgêncio, afri­cano também, autor de um Mitologiarum liber (Tratado de mitologia) e de uma Expositio Vergilianae continentiae (Exposição da estrutura das obras de Virgilio). O neoplatonismo que perpassa essas obras faz de seu autor um Fulgêncio diferen­te do de Ruspe, que alguns estudiosos pretendem, por sua vez, identificar.

FERNANDO DE CARTAGO
É um personagem que geralmente é analisado à sombra de Fulgêncio de Ruspe, de quem escreveu uma biografia. Contudo, ele talvez mereça uma maior atenção, por causa de sua personalidade, que não se esgota no fato de ser um simples biógrafo. A Vida de Fulgêncio foi atribuída a Ferrando de Cartago nas primeiras edições, mas nos foi transmitida como anônima pelos manuscritos, rac zão pela qual essa atribuição foi posta recentemente em dúvida. Contudo, mes­mo que essa vida não seja autêntica, realmente existiu um Ferrando, diácono de Cartago, que manteve contatos com Fulgêncio de Ruspe. Por volta do ano 545, Ferrando de Cartago teria sido envolvido na controvérsia dos Três Capítulos, que abordaremos ao falar de Facundo de Ermiana.

Ferrando de Cartago escreveu uma Breve coletânea de cânones (Breviatio canonum), ou seja, uma exposição sistemática de direito eclesiástico com base em numerosos concílios gregos e africanos, dos quais reuniu uma série de extratos e resumos.

Também chegaram até nós sete cartas, que são claramente breves tratados em forma de carta. As duas primeiras têm Fulgêncio de Ruspe como destinatário e lhe apresentam algumas perguntas e dificuldades de caráter dogmático. Nas três cartas posteriores, Ferrando de Cartago trata pessoalmente de alguns problemas de con­teúdo análogo ao dos escritos de Fulgêncio de Ruspe (sobre as duas naturezas de Cristo, contra as posições dos arianos, sobre o fato de que Cristo pertence à santa e indivisível Trindade). Mais significativas são as duas últimas. A sexta carta expõe o parecer de Ferrando de Cartago, que lhe fora solicitado pelos diáconos romanos Pelágio e Anatólio, que vem em defesa da doutrina dos Três Capítulos; mas ele refuta o monofisismo. A sétima carta é continuação de uma carta anterior, enviada por Fulgêncio de Ruspe a um pouco conhecido conde Regino, e expõe como se deve comportar em guerra o comandante respeitoso da fé cristã.

FACUNDO DE ERMIANA
Facundo, bispo de Ermiana na civilizada província da Bizacena, também se envolveu com a questão dos Três Capítulos, mas com uma autoridade bem maior que a de Ferrando de Cartago. Contudo, só conhecemos de sua vida os acontecimentos que estão em relação justamen­te com aquela controvérsia. Ele começara a participar da discussão do problema, que estava suscitando muito interesse em Cartago, quando foi convencido por confrades a ir pessoalmente a Constantinopla para maiores informações.

No fim do ano 553, ou em princípios do ano 554, o imperador Justiniano, para acalmar a posição dos monofisitas, apresentara uma exposição da reta fé, ao termo da qual se impunha o anátema à pessoa e aos escritos de Teodoro de Mopsuéstia, de Teodoreto de Cira e a seus escritos contra Cirílo de Alexandria e o símbolo de Éfeso, e à carta, igualmente voltada contra Cirílo e o símbolo efésio, enviada pelo bispo Hiba de Edessa ao persa Mari. Dado que comumente os anátemas de um edito eram chamados "capítulos", são indicados, nesse caso, com o termo "Três Capítulos" as pessoas e os escritos punidos com o anátema. Ainda uma carta imperial, datada do dia 5 de maio de 553, enviada ao quinto concílio ecumênico de Constantinopla, que foi inaugurado justamente naqueles dias, pedia a atenção dos Padres para as figuras de Teodora de Mopsuéstia, Teo­doreto de Ciro e Hiba de Edessa.

Pois bem! Chegado a Constantinopla, Facundo de Ermiana aplica-­se a escrever um livro Em defesa dos Três Capítulos, que ainda não estava concluído quando chegou à capital do Império o papa Vigílio, em janeiro de 547. A obra foi concluída, atingindo um total de 12 livros dedicados a Justiniano, poucos meses depois. De todo modo, a conclusão se deu antes de 11 de abril de 548, quando Vigílio, ainda em Constantinopla, refutou a condenação com a carta Iudicatum. Facundo, que era deci­didamente favorável aos três Padres, nunca ataca Vigílio naquele livro, algo que fará em obras posteriores, porque Vigílio foi depois forçado por Justiniano a confirmar a condenação.

Depois que, em 553, o concílio que se reunira em Constantinopla anatematizou a doutrina dos Três Capítulos, Facundo, juntamente com a maioria dos bispos da África, separou-se da comunidade dos bispos orientais e do papa. Para justificar-se, escreveu outros tratados, entre os quais um que se intitulava Contra o escolástico Mociano, no qual Susten­tava que não era a Igreja africana que se tornara cismática, e sim os ini­migos da doutrina dos Três Capítulos. Recordemos, depois desse rápido panorama da doutrina de Facundo de Errniana, o que Simonetti nos diz:

"Facundo não é muito popular entre os estudiosos modernos, que em seus manuais lhe dedicam poucas e apressadas linhas: ele foi prejudicado pelo fato de ter vivido no fim de um ciclo histórico, o ciclo do cristianis­mo africano, e de ter defendido uma causa que produziu um grave cisma no Ocidente. Na realidade, ele foi uma personalidade de primeira gran­deza, tanto como teólogo quanto como polemista ... Com efeito, ele se nos apresenta como o último grande teólogo da era patrística e parece até emblemático que também ele tenha sido filho da mesma África que já dera à cristandade o primeiro grande teólogo com Tertuliano e o maior teólogo com Agostinho".

VERECUNDO DE JUNCA
A posição de Verecundo de Junca é análoga à de Facundo de Ermiana, na defesa da doutrina dos Três Capítulos. Tampouco de sua vida conhecemos muita coisa. Temos bem poucas notícias fomecidas por um contemporâneo dele, Vítor de Tunnuna. No momento do confronto mais aceso sobre a doutrina dos Três Capítulos, Verecundo era bispo de Junca, outra cidade da Bizacena. Ele também se rebelou contra a condenação dos Três Capítulos em 551 e por esse motivo foi convocado a Constantinopla para justificar-se, juntamente com alguns bispos africanos. Verecundo de Junca livrou-se da condenação refugiando-se na Calce­dônia, onde morreu.

Isidoro de Sevilha recorda de Verecundo de Junca, além de um Comentário em nove livros aos cânticos da Igreja, "dois carmes, o primeiro dos quais versa so­bre a ressurreição e sobre o julgamento de Deus, o segundo, sobre a penitência, no qual chora com tom de lamento seus próprios pecados". Só chegou até nós o segundo desses carmes, intitulado A satisfação a Deus fornecida pela penitência, uma composição de 212 hexâmetros. Ele não é desguarnecido de certa comoção e sentimentalidade. Contudo, mostra que, avaliado pela perspectiva da métrica clássica, como ainda se podia fazer em certa medida 60 anos antes para Dracôn­cio, ele é muito defeituoso.
Mencionemos apenas outros três personagens ligados aos acontecimentos dos Três Capítulos. Trata-se de Liberato de Cartago, Vitor de Tunnuna e Primá­sio de Hadrumeto. Liberato de Cartago tentou enfrentar o problema buscando suas origens nos conflitos que, 100 anos antes, haviam oposto nestorianos e eutiquianos. Escreveu, portanto, entre os anos 555 (ano em que morreu o papa Vigílio) e 556 (ano em que morreu Teodósio, o patriarca de Alexandria), um Compêndio da causa dos nestorianos e da causa dos eutiquianos. Vítor de Tunnuna foi um dos que se opuseram à condenação dos Três Capítulos e por essa razão foi exilado pela autoridade imperial ali pelo ano 555. Escreveu uma Crônica univer­sal, apesar de se tratar de um texto dedicado sobretudo à história da Igreja. Primásio de Hadtumeto, diferentemente de Vítor de Tunnuna, cedeu às pressões da autoridade imperial e renunciou à oposição que fizera ao decreto imperial sobre os Três Capítulos. Devemos a ele um Comentário ao Apocalipse, no qual se vêem muitas citações do comentário análogo do donatista Ticônio, que se perdeu. Primásio seleciona atentamente na obra de Ticônio aquilo que lhe parece imune à heresia donatista.

JUNÍLIO
Junílio foi um africano que Primásio encontrou durante sua breve estada em Constantinopla, do qual foi dito que era, mas não era, um eclesiástico. Ele era leigo e pertencia ao funcionalismo bizantino. De todo modo, ele se interessava pelos estudos bíblicos e pelos escritos da Igreja grega.

Ora, por sugestão de Primásio, Junilio rearranjou para o leitor latino um manual que lhe caíra nas mãos recentemente, entregue por certo Paulo, profes­sor da importante escola teológica de Nísibe, que fora fechada pelo imperador Zenão, porque seguia tendências nestorianas. Esse manual, traduzido para o la­tim, transformado em uma espécie de diálogo entre mestre e aluno e adaptado ao ambiente latino, foi obra de Junílio e dedicado a Primásio por volta do ano 551. Os motivos que levaram a escrever essa obra estão explicados no prefácio do próprio manual. Trata-se de As normas regulares da Lei divina, ou seja, de uma introdução metódica à Sagrada Escritura, também difundida sob o título As partes da Lei divina. O conteúdo da obra pode ser dividido em duas partes, uma para cada livro. A primeira diz respeito ao aspecto formal do estilo bíblico, ou seja, às formas literárias de cada livro, a suas fontes, aos autores, à estrutura. A segunda parte, por sua vez, refere-se aos conteúdos e está dividida em várias se­ções: "Sobre Deus", "sobre o século atual", "sobre o século futuro", a economia divina e sua realização etc. Esse manual foi muito lido na Idade Média.


ESCRITORES ITÁLICOS
Culturalmente, a Itália do século VI é muito próxima da África, graças às intensas relações que essas ex-províncias mantêm, ambas, com Constantinopla. Além disso, o rei Teodorico tentou, ao menos nos primeiros anos de seu reinado, instaurar relações de convivência pacífica entre os godos e os descendentes dos romanos. Muitos estu­diosos, entre os quais Courcelle, falam de "renascimento teodoricano" e enfatizam a importância de Roma, Ravena e Milão como centros culturais.


BOÉCIO
Anício Mânlio Severino Boécio deve ser considerado o mais insigne representante do renas cimento cultural da era de Teodorico, da qual acabamos de falar. Ele se destaca pela inteligência, pelo engajamento civil, pelas capacidades intelectuais das outras personalidades menores e substancialmente inconcludentes, como um Enódio, que veremos ter sido inutilmente prolífico nesses mesmos anos.

Nascido em Roma, por volta do ano 475, de família muito nobre, Boécio teve, graças aos desvelos do senador Quinto Aurélio Mêmio Símaco, uma acurada educação, que ele talvez tenha aperfeiçoado ain­da mais indo para Alexandria do Egito, para a escola do neoplatônico Amônio.

Eram os anos nos quais a Itália, já transferida para o domínio bárba­ro de Odoacro, no ano de 476 (fim do império romano do Ocidente), caiu depois em poder dos ostrogodos de Teodorico, a partir do ano 493. Contudo, para quem tivesse os meios (e os interesses), não era impossí­vel manter vínculos com o Oriente, onde o império bizantino era con­siderado por todos (mesmo pelos bárbaros) o império de Roma. Desse modo, no plano político, a função de Constantinopla foi ampliada, ago­ra que o império do Ocidente, cuja capital era Ravena, não mais existia. Permanecia apenas o império do Oriente, e a tradição cultural itálica não podia prescindir dessa realidade altamente idealizada. A aristocracia senatoria e a Igreja de Roma continuavam a se sentir estreitamente liga­das a Constantinopla, mesmo que freqüentemente em oposição ao que era decidido naquela sede. E esse fato podia constituir (como de fato constituiu depois) um elemento de ambigüidade, prenúncio de atritos e de confrontos com os dominadores godos. Mas quando Boécio, depois de ter aperfeiçoado a própria educação, começou a se dedicar à filosofia, o problema ainda não existia. Teodorico não via um elemento de hostilidade contra si mesmo na atitude tradicionalista e filo-imperiais de alguns ambientes romanos. Desse modo, Boécio pôde conquistar fama e seguir a carreira política, na medida do que era permitido a um romano sob a dominação dos ostrogodos, ou seja, com a aprovação do rei, e não como conseqüência de uma forma livre de vida civil (que, aliás, não existia mais desde os tempos de Augusto). Boécio foi cônsul em 510, mas a aprovação recebida de Teodorico para a obtenção desse cargo não significou para ele o abandono da tradição romana à qual pertencia e que ele acreditava poder reforçar com a atividade literária e filosófica à qual decidiu se dedicar. Depois de alguns anos de concórdia entre o elemen­to dominador, constituido pelos godos, e o elemento romano, entre os itálicos ortodoxos e os godos arianos, o equilíbrio se rompeu. Teodorico passou a temer uma aliança entre o elemento latino da Itália e o império do Oriente: abandonou, pois, sua tolerância de antes, mandou prender Boécio, o sogro de Boécio, Símaco, e outros intelectuais romanos. No ano de 522, Boécio foi justiçado.

Mesmo proclamando-se cristão, Boécio situa-se entre os intelec­tuais nos quais é mais evidente a persistência de sua formação pagã. Desse modo, ele apresenta uma produção filosófica de caráter exclusi­vamente "pagão", composta de comentários a Aristóteles e a Porfírio, de tratados de música e de matemática. E mais: sua obra mais signifi­cativa e mais conhecida, a Consolação da filosofia (Consolatio philoso­phiae), é, também ela, substancialmente profana, no sentido de que aborda de um ponto de vista exclusivamente filosófico os pro blemas centrais da vida do homem, e essa filosofia, com base na qual Boécio discute o problema do destino e do livre-arbítrio, da realidade material e do Uno do qual o mundo descende, da renúncia à realidade terrena e do retorno à pátria celeste, essa filosofia, dizíamos, é a filosofia ne­oplatônica. Ao lado dessa produção filosófica "profana" se situa uma outra, constituída de breves tratados dedicados à definição de alguns dogmas da fé cristã, como o dogma da Trindade e da relação entre natureza e pessoa em Cristo. De onde a aparente estranheza dos dois blocos de obras nas quais se pensou, a um tempo, ver uma substancial oposição entre as obras cristãs e as obras (era o que se dizia) pagãs ou, quando menos, profanas e neoplatônicas. Como se não fosse possível para um cristão escrever obras técnicas sem inserir a doutrina cristã na discussão de problemas de matemática ou de lógica, como se fosse necessário fazê-lo pelo simples fato de alguém ser cristão. Esse falso problema se apresentou não muito tempo depois da morte de Boécio: na era carolíngia, sua doutrina não aparecia perfeitamente ortodoxa e, em séculos mais próximos de nós, os estudiosos que persistiam na contraposição equivocada entre obras cristãs e obras profanas pensa­ram que o verdadeiro Boécio fosse o Boécio da filosofia neoplatônica e que as obras explicitamente cristãs fossem espúrias.

Esse método de pesquisa foi abandonado, há não muito tempo. Bo­écio é um leigo perfeitamente cristão, profundamente convicto de sua fé. O neoplatonismo fornecia, no século VI, de modo bastante funcional, os instrumentos para uma pesquisa teológica àquele que fosse cristão. Recordemos os exemplos de Mário Vitorino e de Agostinho.

Portanto, o problema que surge com Boécio não configura um pro­blema de fé cristã e de paganismo, porque se trata do problema da es­pecificidade e da tecnicidade dos tratados que ele vinha compondo gra­dualmente. Quanto ao fato de seus tratados teológicos examinarem de modo insólito o problema enfrentado, e isso do ponto de vista da lógica aristotélica, sem nenhum recurso à ciência bíblica, que geralmente era adotada pelos Padres conciliares e pelos escritores eclesiásticos em apoio de suas argumentações, devemos crer que Boécio pensava poder resol­ver o problema teológico recorrendo exclusivamente a instrumentos da lógica. Essa hipótese de trabalho não é absurda, como poderia parecer: alguns séculos depois, a escolástica considerou perfeitamente válida essa posição de princípio.

AS OBRAS CIENTÍFICAS DE BOÉCIO
O escritor começa sua atividade filosófica tendo já bastante clara a visão das problemáticas que enfrenta e, especialmente, dos fins que tem em mira. Já no primeiro tratado sobre Os fundamentos da aritmética (De institutione arithmetica), escrito por volta do ano 505, dirigindo-se ao sogro, Símaco, Boécio afirma "ter transportado no tesouro dos romanos obras extraídas da opulência das letras gregas", ou seja, ele pretende retomar o antigo costume romano de voltar-se para a literatura grega como fonte do saber e de torná­-la acessível a seus próprios concidadãos, mediante uma série de abordagens baseadas em obras gregas, ou por meio de traduções do grego de sua própria lavra. Para realizar esse propósito, ele se dedicará, portanto, a uma atividade de divulgação das ciências do quadrívio.

Nesse nível de pesquisa está incluída a obra sobre Os fundamentos da aritmética, baseada em um tratado do pagão Nicômaco de Gerasa (séculos I-II d.e.). A matemática, segundo Boécio, aliás, como Platão também, é um instrumento essencial de abstração intelectual. Serve para educar o homem a afastar-se das impressões sensíveis, de modo a poder proceder, posteriormen­te, à contemplação da verdadeira realidade.

Análogo é o propósito que anima o tratado posterior sobre Os funda­mentos da música (De institutione musical: até mesmo nesse nível, o interesse de Boécio devia-se ao fato de que, para Platão, a música era um dos produtos (se assim se pode dizer) da matemática, o resultado sensível da organização abstrata das relações matemáticas. O primeiro exemplo de perfeição matemá­tica era constituído pela música dulcíssima produzida pelos movimentos dos corpos celestes. Mas até mesmo no restante do mundo sensível e no interior da própria pessoa humana existem relações de tipo matemático. Estudar a música significa ver a mescla do elemento físico com o elemento intelectual. Para fazer esse tratado, Boécio teria buscado referências nos Elementos har­mônicos de Ptolomeu.

Posteriormente teria escrito (mas essas obras não chegaram até nós) um tra­tado de geometria, baseado nos Elementos de geometria de Euclides, e um tratado de astronomia, para o qual se teria servido do Almagesto, de Ptolomeu.

AS OBRAS LÓGICAS
Depois dessa primeira aproximação da tradição platônico-pitagórica, Bo­écio vai aproximar-se da tradição aristotélica. Aplica-se a traduzir para o latim a Introdução (Isagoge) à lógica aristotélica, escrita por PodIrio. De fato, ele achava que a tradução anterior, feita por Mário Vitorino, era pouco científi­ca. Essa tradução de Boécio integra o programa de trabalho do filósofo, um programa gigantesco, que teria desestimulado qualquer pessoa e que nem ele próprio conseguirá completar: traduzir para o latim e comentar as obras de Aristóteles e as de Platão.

Mencionemos apenas a tradução e o comentário das Categorias de Aris­tóteles (o comentário tem duas redações: a primeira, mais sucinta, do ano 510-511 e a segunda, mais ampla, do ano 515-516); a tradução e o comentá­rio dos Analíticos; a composição de um tratado Sobre os silogismos categóricos e de um Sobre os silogismos hipotéticos; a tradução dos Tópicos de Aristóteles, um comentário a eles e um comentário aos Tópicos de Cícero; a tradução dos Elencos sofísticos e a composição de um tratado Sobre diferenças tópicas. É, como se vê, um conjunto impressionante de tratados lógicos.

AS OBRAS TEOLÓGICAS
Além de tudo isso, Boécio também é o autor de obras de conte­údo estritamente cristão, que outrora eram tidas por espúrias pelos motivos que indicamos acima, mas que agora são atribuídas a ele de pleno direito e que constituem uma faceta bem interessante de sua personalidade.

A obra em que explica Como é possível que a Trindade seja um só Deus, e não três (Quomodo Trinitas unus Deus ac non tres dii) é dedicada a seu so­gro, Quinto Aurélio Mêmio Símaco (um destacadíssimo expoente do sena­do romano, também ele condenado à morte por Teodorico um ano depois da condenação de Boécio). O escritor se interroga Se o pai, o Filho e o Espí­rito Santo são predicados da Trindade segundo a substância ( Utrum Pater et Filius et Spiritus Sanctus de Trinitate substantialiter praedicentur), isto é, se aquelas palavras significam uma realidade ou apenas uma predicação da substância divina.

Fortemente filosófica, mas igualmente base de toda especulação cristã (e que essa fosse sua função é testemunhado pelo fato de Tomás de Aquino ter escrito com base nessa obra um agudo comentário), é a pergunta sobre Como é possível que as substâncias sejam boas pelo simples fato de existirem, mesmo que não sejam boas segundo a substância? (Quomodo substantiae in eo quod sint bonae sint cum non sint substantialia bona).

Ainda devemos recordar com grande consideração o tratado Contra Êu­tiques e Nestório (Contra Eutychen et Nestorium), que constitui uma das mais significativas (e seguramente uma dos mais originais) contribuições ocidentais à definição da cristologia. Mas nem mesmo aqui Boécio se vincula à tradição ecle­siástica em sentido estrito: ele pressupõe como ratificadas as decisões dos concí­lios do século V, que deliberaram sobre o problema, e não retoma as discussões daquelas assembléias. O que ele pretende é discutir a validade da solução da Igreja para a questão das duas naturezas e de uma só pessoa em Cristo do ponto de vista filosófico. Portanto, ele examina os conceitos de "natureza" e de "pes­soa", apresentando, portanto, as heresias de Nestório e de Êutiques, e por fim situa entre os dois erros, um contrário ao outro, as verdades da fé cristã.

Uma última obra, dedicada à exposição de Afé católica (De fide catholica), é mais simples e inteligível, de caráter expositivo, e por esse motivo foi durante muito tempo considerada como não sendo da lavra de Boécio, mas a dúvida não é bem fundamentada. A simplicidade de abordagem deriva do fato de que a pequena obra pretende ser uma espécie de exposição do símbolo da fé.

Com essas obras Boécio revelou ser um cristão informado e atento. Valeu-se da ciência filosófica em função da fé, e isso fez com que suas obras fossem lidas com muita atenção na Idade Média e se tornassem objeto de comentário por parte de João Scott Erígena, Remígio de Au­xerre, Gilbert de La Porrée e Tomás de Aquino.

A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA
É a última e a mais famosa das obras de Boécio, composta no mo­mento decisivo de sua vida, quando ele, preso por causa de intrigas mo­vidas por caluniadores da corte de Teodorico, aguardava o juízo defini­tivo do rei, que tanto podia ser de condenação quando de absolvição. Essa motivação confere à obra uma atmosfera particular: o leitor se dá conta de que aqui Boécio "não faz literatura" no pior sentido do termo, mas fala pelos outros e por si mesmo. Ele quer encontrar a consolação que a filosofia é capaz de prover, porque sobre ele pesa uma condenação à morte que está para ser ratificada. A pergunta que alguém se faz ime­diatamente é naturalmente esta: por que a consolação da filosofia e não a consolação da religião ou da fé?

Esse é o problema que se nos apresenta. Se ele não se apresentou a Boécio, devemos evidentemente seguir sua atitude fundamental e aceitar o fato de que também a filosofia, e não exclusivamente a fé, parecia a um cristão ser capaz de "consolá-lo", ou seja, de dar resposta a suas questões fundamentais: o porquê do mal no mundo, por que Deus permite que um inocente seja perseguido, qual seria a função ou até mesmo se existe o livre-arbítrio humano, se Deus intervinha (como depois veremos que realmente o faz) em defesa do bem aqui na terra. Evidentemente Boécio acreditava que a filosofia fosse capaz de dar uma resposta a todos esses problemas, e para ela se volta e dela a obtém. A pergunta de por que a filosofia e não a religião, podemos responder observando que a filosofia em que Boécio se inspira no decorrer da Consolatio é, substancialmente, a filosofia religiosa, síntese de neoplatonismo e de fé cristã, que desde al­guns séculos fora aceita pelos intelectuais cristãos. Foi dessa filosofia que Boécio se aproximou, trazendo sua contribuição pessoal. Em segundo lugar, ele se aproximou dela em sua posição de leigo, com a forma mentis do leigo e não do homem da Igreja. Por fim (e talvez seja este o pon­to mais importante), os problemas que Boécio teve de enfrentar eram problemas essencialmente filosóficos, para os quais não existiam obras de escritores cristãos, mas uma vasta literatura específica, cujos compo­nentes remontavam ao helenismo, melhor ainda, a Platão e a Aristóteles. Portanto, era lógico que Boécio examinasse todos esses problemas en­quanto filósofo, tanto mais que em suas obras anteriores, nos Opuscula Theologica, o escritor enfrentara enquanto filósofo, isto é, de um ponto de vista leigo e com instrumentos rigorosamente racionais, os problemas da cristologia e da teologia trinitária. Na Consola tio encontra-se, no fun­do, a mesma atitude que inspira os Opuscula Theologica.

A Consolatio divide-se em cinco livros. Estamos diante de um diálogo à maneira platônica, mas, em algumas partes, de conteúdo mais técnico e mais difícil, como no quinto livro, no qual o escritor abandona substancialmente aquela forma para passar à forma da exposição continuada, mais adaptada à abordagem do problema. A forma literária é aquela que se costuma chamar de "prosímetro", ou seja, um misto de prosa e verso, que, à parte em prosa, são confiados o diálogo e a demonstração propriamente dita e, à parte em versos, geralmente cantada pela filosofia, é reservado o dever de confirmar os resultados aos quais chegara a discussão imediatamente anterior. O uso do prosímetro era antigo na literatura romana, mas geralmente não era utilizado para abordagens filosóficas (encontrava-se nas Sátiras menipéias de Varrão e no Satyricon de Petrônio). Todavia, em tempos recentes, a ele recorrera Mar­ciano Capela, que escrevera As núpcias da Filologia com Mercúrio. Esta obra constitui o prosímetro mais aproximado do de Boécio. Mas Boécio ainda se inclina a um outro objetivo: o de propor uma nova forma de poesia, uma po­esia de caráter didascálico, que, mesmo buscando por meio do canto doçura para o moral do homem, não se limita unicamente à moção dos afetos, visto que escrever versos só para provocar o prazer é, em última análise, desedificativo. Eis de regresso a antiga polêmica entre filosofia e poesia, entre retórica e filosofia, que remontava aos tempos de Platão.

Por meio desses dois instrumentos, do diálogo em prosa e da par­te poética posterior, a Consolatio eleva-se progressivamente dos argu­mentos mais simples e mais conhecidos, como o da consolação dos infortúnios, aos de especulação mais exigente e sutil, que são todos e exclusivamente inspirados pela filosofia neoplatônica. Desse modo, inicialmente, a Filosofia tenta consolar Boécio fazendo-o ver que as misérias do presente não o impediram de gozar no passado grandes satisfações, para depois passar a uma consideração da instabilidade e da volubilidade da fortuna, que reina no mundo: o sábio não deve admi­rar-se com as repentinas viravoltas da sorte, nem deve confiar aos bens externos, nem mesmo aos mais nobres deles, como o desejo de glória, a própria felicidade, visto que exatamente a glória é a coisa mais caduca e a mais ilusória.

Depois que esses dois primeiros livros apresentaram esses argu­mentos consolatórios de tipo tradicional, derivados da filosofia estóica e da filosofia cínica, no terceiro livro, a Filosofia começa a explicar a Boécio que ele não tem motivos para lamentar a própria desventura, agora, porém, partindo de urna consideração global do universo. Tra­ta-se de distinguir o verdadeiro bem, que não coincide com os bens materiais, limitados e insuficientes, mas com Deus. Uma vez estabe­lecido que Deus é o sumo bem, deve-se avaliar a verdadeira natureza daquilo que os homens chamam bem e mal, para concluir que os maus que alcançam sucesso na vida, na realidade, não passam de infelizes, porque, mesmo querendo-o, não podem realizar o bem, dado que não o conhecem (livro quarto). E que tudo isso ocorra sob o governo providencial de Deus é um problema que exige discussão, com a in­trodução da abordagem da fortuna, do livre-arbítrio e da presciência e providência divinas: uma série de questões concatenadas entre si, que são tratadas no quinto livro.

Além de ser um momento fundamental para a história da filosofia antiga e medieval, a Consolatio de Boécio surge também como um dos mais significativos textos da literatura da antigüidade tardia. A limpidez da exposição, mesmo nas partes especulativas mais árduas, a pureza da língua, que retoma o classicismo ciceroniano e lhe introduz variações com movimentos extraídos de Sêneca e de outros escritores, a elegância das composições poéticas entremeadas às discussões, que se dobram a uma musicalidade insólita, com ecos dos líricos latinos, sobretudo de Horácio e de Estácio, são todas qualidades que fazem da última obra de Boécio sua melhor obra no plano artístico. Como filósofo e escritor, Boécio foi verdadeiramente o último dos romanos e o primeiro dos es­colásticos, como foi definido.

ENÓDIO
Enódio, bispo de Pavia (474-521), mesmo sendo figura de menor desta­que, tem relativa importância no panorama cultural italiano do século VI. É im­pressionante sua extraordinária fecundidade literária, mesmo que quase sempre a quantidade não signifique qualidade. Ele cultivou gêneros literários distintos e se dedicou a interesses variados, mas sempre superficialmente. Por didatis­mo, sua produção é subdividida em obras em prosa e em obras em versos. O Epistolârio conta com cerca de 37 epístolas, muitas das quais endereçadas a personagens de destaque, como Símaco, sogro de Boécio, os papas Símaco e Orsmida (depois de nomeado bispo de Pavia, em 513, Enódio foi encarregado de duas missões pontifkias por parte de Orsmida a Anastácio, imperador do Oriente). De sua autoria, subsistem duas biografias de santos (o tom retórico as torna bastante entediantes): a Vita Sancti Epiphanii episcopi Ticinensis (Vida de Santo EpifAnio, bispo de Pavia) e a Vita Sancti Antonii monachi Lerinensis (Vida de Santo Antão, monge de Lérins). Inspiram-se em acontecimentos re­ligiosos de seu tempo duas obras: o Adversus eos qui contra synodum scribere praesumpserunt, ou seja, contra aqueles que não reconheciam a validade do sínodo que elegera Símaco bispo de Roma (503). Há ainda o Panegyricus dic­tus clementissimo regi Theoderico (Panegirico pronunciado para o clementíssimo rei Teodorico), recitado durante uma festa oficial em Milão ou em Roma (em 507 ou 508). A Paraenesis didascalica (Exortação didascâlica), do ano 511, é dedicada a dois jovens que são convidados a "se converter", abandonando os prazeres do mundo, mas sobretudo a estudar e a cultivar as artes liberais, espe­cialmente a retórica. Deixando de lado um número impressionante de outras obras, recordem-se as 28 Dictiones (Orações), todas pronunciadas publicamente durante várias festividades, algumas das quais de argumento mitológico, segun­do o uso das escolas de retórica. Enódio compôs ainda cerca de 151 epigramas, numerosos epitalâmios e panegíricos e 11 hinos. Do ponto de vista da métrica, eles são dotados de correção e revelam grande habilidade, mas se percebe que foram escritos por um retor afetado e superficial demais.

ARATOR
Arator provavelmente pertence ao círculo dos amigos e dos inte­lectuais com os quais Enódio mantinha contatos. Uma carta das Variae de Cassiodoro contém o decreto de nomeação de Arator como procurador de Teodorico. Poucos anos depois, porém, Arator deixou a condição de leigo e foi ordenado subdiácono da Igreja de Roma sob o papa Vigílio. Nessa condição é que deve ter escrito seu poema épico, dedicado ao papa em 544 e lido em recitação pública, como era o cos­tume nas conferências nos tempos do império pagão, durante quatro dias consecutivos na igreja de San Pietro in Vincoli, obtendo grande sucesso. Não temos notícias dele depois disso.

Seu poema épico, Os Atos dos Apóstolos (De actibus apostolorum), é dividido em dois livros. Arator pretende seguir a antiga praxe da pa­ráfrase em versos do texto sagrado e ressaltar seu significado espiritual para seu tempo. Esse interesse pela interpretação espiritual é prepon­derante, porque só algumas poucas passagens são efetivamente parafra­seadas: outras são omitidas, resumidas ou mencionadas, ao passo que se detêm na alegoria. O poeta dividiu em perícopes o texto de Lucas e o resumiu erp. prosa; posteriormente fez uma paráfrase em versos desse resumo. Desse modo, a narração continuada dos Atos dos Apóstolos tornou-se uma série de episódios. O tom é abertamente triunfal, a narrativa da vida dos apóstolos implica naquela época a celebração da Roma papal.

A obra de Arator tem pontos de contato com o Carme sobre a Pás­coa de Sedúlio (p. 546), mesmo que não tenha atingido a elegância e a inspiração poética, mas pareça redundante e entediante, ao passo que o modo de expressão é voluntariamente hermético. Tanto preciosismo provém a Arator de seu aprendizado na escola de Enódio e de Sidô­nio. Em todo caso, sua educação retórica muito acurada vem à luz nas numerosas imitações dos poetas clássicos. Arator foi um poeta muito conhecido na Idade Média.

ELPÍDIO RÚSTICO
Talvez o poeta Elpídio Rústico pertença à corte de Ravena e à cultura do renascimento teodoricano. De sua vida sabemos quase nada e é difkil identificá-lo no plano histórico. Depois de ter escrito, na juventude, ver­sos de temática profana, que não chegaram até nós, compôs um carme em hexâmetros Sobre os benefícios de Jesus Cristo (Carmen de Christi Iesu beneficiis), no qual celebra a encarnação, os milagres e a obra redentora de Cristo, e as Histórias do Antigo e do Novo Testamento (Historiae Testamen­ti Véteris et Novi) , que é uma compilação de 24 epigramas de três hexâme­tros cada um (os tristicha: grupos de três versos). Numa síntese plena de conteúdo, os tristicha condensam episódios bíblicos, que posteriormente viriam a figurar como didascálias, provavelmente à maneira do Dittochae­on de Prudêncio. Elpídio não é um poeta desprezível e em seu artificioso excesso de conceitos merece a classificação de poeta douto. Percebe-se nele a influência de Prudêncio e de Sedúlio.

NOMES MENORES: EUGÍPIO E VÍTOR DE CÁPUA. CARTAS PAPAIS
Ao lado desses escritores de maior expressão cultural, como Boécio e Enódio e seus amigos, distingue-se Eugípio, por méritos completamen­te distintos. Nada se sabe de preciso sobre sua vida. Nos últimos anos do século V, ele se estabeleceu junto aos discípulos de São Severino no castellum de Lucullanum, que depois se tornou o mosteiro de São Seve­rino, localidade que hoje é chamada de Pizzofalcone, nas proximidades de Nápoles. Eugípio escreveu em 509 uma Vida de São Severino, que foi missionário no Nórico e que o próprio escritor conhecera. Eugípio narra na qualidade de testemunha ocular, como discípulo do santo.

Vítor, bispo de Cápua, é importante sobretudo para a história dos Evangelhos em tradução latina. Essa tradução foi executada por volta do ano 545 e parece ter consistido em uma espécie de "Harmonia dos Evangelhos", mais ou menos no mesmo modo do Diatessaron de Tacia­no (cE. p. 113-114).

Os papas do século VI (Símaco, Orsmida, Félix IV, João II etc.), como os dos séculos IV e V, fizeram ainda mais, deixaram-nos cartas de conteúdo dogmático que, em pormenor, certamente interessam mais à história do cristianismo do que à história da literatura cristã. Recordemos apenas as cartas do papa Vigílio (537-555) e as de seu sobrinho e diácono Rústico, referentes à controvérsia dos Três Capítulos. Inicialmente Rústi­co estava de acordo com Vigílio, mas depois, em conseqüência da atitude distinta que ele assumiu diante das decisões do imperador Justiniano, foi excomungado pelo papa. Deve-se a Rústico um Tratado contra os acéfalos (uma corrente dos monofisitas), no qual se ratificam as conclusões do con­cílio de Calcedônia, contra a atitude de Justiniano.

BENTO DA NÚRSIA
Bento não foi certamente um autor "menor", mas sua grandeza concerne a outros campos, mais que à história literária. Por isso nós o recordamos apenas com breve menção. Grande figura de santo e de importância fundamental para a civilização da Idade Média, para a história do monaquismo e, indiretamente, da cultura, Bento nasceu em Núrsia por volta do ano 480. Depois dos estudos iniciados em Roma, abandonou todo e qualquer interesse pela vida profana e se retirou para levar uma vida monástica, primeiro perto de Subiaco, onde findou um mosteiro, depois em Montecassino. Podemos recordar de Bento, em nosso contexto de história literária, a Regula monachorum (Regra dos monges), que constitui uma das primeiras re­gras ocidentais, fortemente inspirada na rica cultura monástica grega, particularmente em Basílio. A Regra de São Bento chegou até nós em duas redações. A primeira delas, mais popularizante, destina-se a ser imediatamente compreendida. A segunda, reelaborada, é mais correta no plano gramatical e literário.

CASSIODORO
No curso de sua longuíssima vida, Cassiodoro pôde assistir a mu­danças de grande importância: a paz e a prosperidade dos primeiros anos do império de Teodorico, a guerra grego-gótica, que fez a Itália cair sob o duro dominio bizantino e, por fim, a dominação longobarda, que provocou miséria e decadência.

Flávio Magno Aurélio Cassiodoro nasceu em Squillace, na Calábria atual, de família nobre, no ano 485. Em 507, pronunciou um panegírico a Teodorico com grande sucesso e isso aplainou seu caminho para a carreira administrativa. Em 533, quando o rei Alarico enviou ao Senado um rescrito em defesa dos re­rores, gramáticos e jurisconsultos, Cassiodoro escreveu nesse rescrito, de próprio punho, um elogio às letras. Em 551, em Constantinopla, concluiu a História dos godos. Terminada a guerra grego-gótica, Cassiodoro regressou para a Itália, onde fundou o mosteiro de Vivarium. O termo "mosteiro", aqui, não nos deve induzir a erro: Vivarium era um centro de estudos, um de tantos que, naquela época, surgiam nas terras dos grandes senhores. Ali Cassiodoro dedicou-se às ciências, à literatura, à gramática e, sobretudo, às Escrituras. A morte o colheu por volta do ano 580, em avançadíssima idade.

Apenas por didatismo, separaremos as obras do período "leigo" de Cassiodoro das obras posteriores, de caráter religioso. As Chronica foram escritas por encomenda de Eutarico, genro de Teodorico, que, em vista da sucessão ao trono (que depois nem aconteceu), queria uma síntese histórica com a qual pudesse aprender com facilidade. Os fatos narrados (o modelo seguido é o de Jerônimo e, por meio dele, o de Eusébio) vão de Adão a Teodorico. A partir do ano de 496, lêem­-se notícias de fatos dos quais Cassiodoro foi testemunha ocular. Não é de admirar, dado o motivo pelo qual foi escrita, a marca filo gótica da obra. Nela não se fala de arianismo, exatamente porque os godos eram arianos, liquida-se com poucas palavras o saque a Roma do ano 410, saque levado a cabo pelos próprios godos. Tem o mesmo propó­sito adulatório o famosíssimo De origine actibusque Getarum (Sobre a origem e as gestas dos godos), história dos godos em 12 livros. A obra chegou até nós graças a fragmentos recolhidos por Jordão (secretário do funcionário godo do Oriente, Guntige, que, ao que tudo indica, se converteu depois do ano 550). O relato se inicia com a descrição do território de origem desse povo, a Escandinávia, para chegar ao período de sua dominação sobre a Itália. Identificar os godos com os guedos, antigo povo da Trácia, era um expediente (adotado à época por muitos literatos) para enobrecê-los. De fato, até os gregos tinham narrado fa­tos fabulosos referentes ao misterioso povo nômade dos guedos, que se imaginava serem habitantes das amplas planícies da Rússia. Teodorico, por sua vez, é apresentado como o monarca ideal: naquele tempo, os bárbaros eram considerados em pé de igualdade com todos os outros povos da história. A fama de Cassiodoro deveu-se especialmente às Variae (ou seja, epistulae), uma coletânea em 12 livros de cerca de 468 rescritos enviados por decisão do rei Teodorico e, posteriormente, de seus sucessores Atalarico, Teodato e Vitígio. O estilo leva em conta o destinatário, passando de um tom burocrático-chanceleresco a um tom retórico e artificioso. É impressionante o grande número de excursus, umas vezes de argumento moral, outras de argumento político, que responde ao ideal enciclopédico, tão importante para o século VI. As Variae constituiriam uma fonte de primeira grandeza para se conhecer a realidade político-social sob Teodorico, mas Cassiodoro, no momen­to de publicá-Ias (537), eliminou dados e referências políticas e pesso­ais muito precisas. O De anima, composto entre os anos 537 e 540, é um manual, isto é, compila e resume tudo o que havia sido anterior­mente dito em favor da corporeidade ou da imaterialidade da alma por Tertuliano, por Claudiano Mamerto, pelas Escrituras. A contribuição pessoal de Cassiodoro é mínima: ele se limita a dar ênfase maior à dou­trina da incorporeidade, que depois se tornou a doutrina ortodoxa.

Vivariurn suscitou o interesse dos literatos dos séculos posteriores, tanto que seu papel foi freqüentemente exagerado: Vivarium não era um centro de cultura grega (a maior parte dos monges não sabia gre­go e se valia de traduções) e não possuía uma biblioteca propriamente dita, capaz de fornecer, na Idade Média, livros preciosos às grandes abadias de Bobbio, São Galo e Córbia. Na verdade, quando Cassiodo­ro morreu, o mosteiro entrou em ruína e os poucos códices restantes foram todos acabar na biblioteca de Latrão, em Roma. Até mesmo a atividade de cópia e de correção dos manuscritos, que se desenvolvia em Vivarium e da qual Cassiodoro demonstra ter cuidado pessoalmen­te, não deve ser superestimada. Era uma atividade comum a muitos cenóbios que hospedavam literatos eminentes como Jerônimo, Rufino, Agostinho. Talvez seja verdade que o autor das Variae procurou inten­sificar o trabalho "gramatical" nos textos, mas isso não faz de Vivarium uma schola, ou seja, um centro intelectual leigo. O esforço maior era sempre reservado ao estudo das Sagradas Escrituras. A lista das obras compostas por Cassiodoro em Vivarium encontra-se no prefácio a De orthographia, que ele escreveu em idade bem avançada. Na base da produção literária desse autor está um bom conhecimento das obras de Orígenes, provavelmente lidas na tradução de Rufino, das obras de João Crisóstomo, da Guerra Judaica de Flávio Josefo. Em Vivarium, copiavam-se manuscritos que continham as versões latinas desses gran­des autores e talvez se traduzisse algo diretamente do grego em caso de necessidade.

A Historia ecclesiastica tripertita (História eclesiástica) em três partes), em 12 livros, foi escrita em colaboração com o monge Epifânio. Exatamente nesses anos, Teodoro leitor havia composto uma obra seme­lhante, baseando-se na Historia da Igreja de Sócrates, Sozômeno e Teodoreto (cf. p. 678ss.). O plano de trabalho inicial contemplava apenas a tradução em latim das páginas de Teodoro leitor. Depois Cassiodoro encarregou Epifânio de pôr à disposição dele todos os três historiadores em versão latina e começou a compendiar pessoalmente tudo o que lia neles. O resultado pode parecer-nos insatisfatório, mas a Historia eccle­siastica tripertita está, junto a pouquíssimos outros textos, na base dos conhecimentos históricos sobre a Idade Média. No que diz respeito às culturas anteriores, até mesmo as grandes personalidades do século VI demonstram um complexo de quase inferioridade: resumir, compendiar, compilar manuais são, ao mesmo tempo, prova do temor de perder o que foi conquistado e até mesmo desejo de confrontar-se com os "gi­gantes" do passado (a Idade Média está para começar). Desse modo, também a Expositio Psalmorum (Comentário aos Salmos), composta em 554-555, remete às Enarrationes in Psalmos (Explicações dos Salmos) de Agostinho, mas não servilmente. Privilegia-se o aspecto messiânico desse livro da Bíblia por meio de uma exegese alegórica e espiritual (orige­niana), mas a atenção reservada aos problemas gramaticais responde a exigências escolásticas que, nos tempos de Cassiodoro, iam tornando-se cada vez mais prementes. Cassiodoro ocupou-se ainda de rever e de­purar um comentário de Pelágio às Epístolas paulinas. Ele dedicou-se pessoalmente à Carta aos Romanos, escrevendo a Expositio epistolae ad Romanos (Exposição da Epístola aos Romanos), ao passo que as outras cartas foram deixadas a cargo de seus colaboradores. A obra intitulada Complexiones in epistulis apostolorum et actibus eorum et apocalypsi (Resu­mo das epístolas apostolicas e de seus Atos e do Apocalipse) estabelece como meta dar ao texto anotações explicativas. O clima cultural de Vivarium é claramente percebido nas Institutiones (Instituições), em dois livros, que se propõem explicar como os textos sagrados e os textos profanos devem ser entendidos. Cassiodoro quis escrever um tratado de ciências teoló­gicas que pudesse servir para os monges de seu convento estudarem. O primeiro livro ocupa-se da Bíblia, das exegeses patrísticas, das obras teológicas, dos grandes escritores eclesiásticos; o segundo livro ocupa-se das sete artes liberais com grandes citações dos clássicos latinos e gregos. O De orthographia, última obra de Cassiodoro, ocupa-se da educação elementar, isto é, fornece noções gramaticais e retóricas fundamentais e demonstra que os monges da época, em meio à barbarização, recebiam um tipo de instrução muito falha.

JORDÃO
Jordão faz parte do círculo de Cassiodoro, de quem sintetizou, como já vimos, a História dos godos. Gado ou alano de nascimento, secretário do funcio­nário gado do império do Oriente, Guntige. Mas quando passou a se dedicar ao trabalho, J ordão já era conhecido como escritor e sua atividade se situa antes do ano 550. Depois dessa época, ele teria se "convertido" (de ariano que era, ou à vida monástica ou ao catolicismo: o fato correto permanece no desconhe­cimento).

Jordão começara a escrever uma Crônica resumida (Abbreviatio Chronico­rum), ou seja, um rápido resumo da história universal. Interrompe o trabalho para se dedicar ao resumo da História dos godos de Cassiodoro, resumo que levou o título de As origens e as gestas dos guedos (De origine actibusque Getarum), ou seja, dos godos, como já dissemos acima (a obra também é chamada História dos guedos ou Guédica). Depois voltou à Crônica que antes deixara interrompida e a completou, escrevendo o Compêndio cronológico, ou seja, a origem e as gestas do povo romano (De summa temporum vel origine actibusquegentis Romanae). Essa obra começa, segundo o projeto original, em Adão e consiste em uma história universal que vai até Augusto, com referências à histórica bíblica e à história do Oriente, baseando-se essencialmente na Crônica de Eusébio- Jerônimo. Desse modo, volta a percorrer, de modo um pouco mais pormenorizado, toda a história romana, das origens até os tempos do escritor, ou seja, até o ano 547, valendo-se de várias fontes profanas, como Floro, Eutrópio e outros.

DIONÍSIO, O PEQUENO
No contexto da vida e da obra de Cassiodoro, pode-se citar por fim Dionísio, o Pequeno (como ele quis ser chamado, por modéstia), originário da Cízia, mas presente em Roma no ano 500, falecido por volta do ano 545. Cassiodoro o chama de "monge" e louva seu conhecimento das Escrituras e o pleno domínio do grego e do latim. Graças justamente a seu conhecimento do grego, Dionísio traduziu, certamente por demanda dos ambientes roma­nos, onde o grego era cada vez menos conhecido, vários textos conciliares e de escritores do século V que tinham a ver com os concílios, como Cirilo de Alexandria. Também traduziu A criação do homem, de Gregório de Nissa; compilou, em latim, uma Coletânea de cânones (Codex Canonum Ecclesiasticorum), que é uma tradução dos cânones dos concílios mais importantes, de Nicéia a Calcedônia.

GREGÓRIO MAGNO
Nos últimos anos de vida de Cassiodoro, retirado em seu mosteiro num canto remoto da Itália, são também os anos da carreira eclesiástica daquele que, a partir do ano 590, tornou-se papa com o nome de Gre­gório, depois Magno, e morreu no ano 604.

Toda a decadência, todas as catástrofes que se abatiam sobre a Itália e transformavam em terrível o tempo em que Cassiodoro vivia, e que foi sentido por ele sobretudo como tempo da difusão da ignorância e da barbárie, também foi experienciado de modo vivo e dolo­roso por Gregório Magno, que teve de intervir concretamente, por assim dizer, para remediar as fraturas que se abriam continuamente. As invasões dos lombardos, que em determinado momento chega­ram a representar uma ameaça para a própria Roma; a dominação bizantina, incapaz de enfrentar os bárbaros e, ainda por cima, avara e tirânica, mas mesmo assim o único poder civil e legítimo para o qual se podia olhar; as províncias, muito distantes, também elas ameaçadas pelos bárbaros do lugar ou submetidas ao domínio, hostil e descon­fiado de tudo o que se referia a Roma, de Bizâncio. E era necessário intervir em todos os lugares para fazer respeitar a lei, para que os direitos da Igreja fossem respeitados, para que os fiéis não fossem ultrajados e até mesmo para que os eclesiásticos não prevaricassem. A miséria e as ruínas, até mesmo as pestes, estavam por todo lugar, de modo particular na Itália. O papa devia intervir de todas as maneiras possíveis para dar remédio a essas situações: por isso ele recebeu o cognome de "cônsul de Deus", visto que os cônsules terrenos haviam renunciado a seus deveres.

Nascido em Roma por volta do ano 540, Gregório seguiu a carreira polí­tica, como todos os que pertenciam a famílias nobres costumavam fazer sob o domínio dos bizantinos. Antes do ano 573, Gregório era prefeito de Roma, o cargo mais importante no âmbito civil. Pouco depois, contudo, ele renunciou à vida do mundo, distribuiu todos os seus bens aos pobres, fundou seis mosteiros em seus grandes domínios e se retirou para levar vida ascética em um mosteiro construído por ele mesmo, no próprio palácio no Célio, justamente em Roma. Naqueles tempos, o monaquismo ainda era mais um modo de vida que uma estrutura organizada. Só mais tarde a regula Benedicti se imporá.

O papa Bento I e Pelágio lI, contudo, decidiram fazer dele núncio apos­tólico em Constantinopla, de 579 a 585. De regresso a Roma, ele retomou a vida monástica. Contudo, tem de interrompê-la definitivamente no dia 3 de setembro de 590, por ter sido chamado, não obstante todas as suas resistên­cias, para substituir Pelágio na sé papal. Pelágio morrera de peste. Gregório dedicou-se imediatamente ao cuidado das vítimas da peste, mas sobretudo lutou obstinadamente para combater a prepotência dos reis bárbaros e a ru­ína moral que afligia até mesmo o clero. O patrimônio da Igreja, disse ele, é unicamente o patrimônio dos pobres. A vida de Gregório foi o percurso cansativo e doloroso de um místico forçado a encarar os problemas do século. Nele, os sofrimentos fisicos se juntaram às angústias morais. Gregório Magno morreu no dia 12 de março de 604.

Sua fama também está relacionada à evangelização da Inglaterra, por ele iniciada (os anglos ainda eram pagãos).

Dá testemunho da enérgica e preciosa atividade do papa, explicada de mil maneiras, não apenas no plano político, mas também na vida da Igreja, um rico Epistolârio (Registrum epistolarum), um documento de importância fundamental para a história daqueles tempos.

Por volta do ano 590, início de seu pontificado, Gregório Magno escreveu a Regra do pastor (Regula pastoralis), como uma norma para si mesmo e para qualquer outro que viesse a assumir responsabilidade tão pesada, mostrando como se deve ser pastor de almas, como conformar a própria vida ao Evangelho. É evidente nessa obra a influência da Homi­lia 2, de Gregório de Nazianzo, e do tratado Sobre o sacerdócio, de João Crisóstomo.

Como homem de Igreja, consciente da importância da liturgia, são atribuídos a seu nome dois outros textos: um Sacramentário gregoriano (Sacramentarium gregorianum), ou seja, um missal, e um Antifonário para a missa (Antiphonarius Missae), isto é, uma compilação de cantos corais, texto de base do futuro canto gregoriano. Contudo, pesquisas mais recentes estabeleceram que o conjunto dessas obras não deriva do próprio Gregório Magno.

A primeira obra exegética de Gregório Magno é representada pelos 35 livros dos Tratados morais sobre Jó (Moralia in 10b), escritos durante seu tempo de núncio apostólico em Constantinopla. Como o título o indica, o exegeta tem interesses predominantemente morais, mesmo que ele ainda se inspire no ensinamento de Orígenes, que, mesmo tão distante no tempo, chega até ele. São numerosas as digressões e im­pressionante a prolixidade. Gregório Magno achava que esses Tratados morais não eram apropriados para a pregação ao povo. Nos primeiros anos de seu pontificado, escreveu homilias bem mais simples. Restam delas 40 Homilias sobre os Evangelhos (Homiliae in Evangelia) e 22 Homilias sobre Ezequiel (Homiliae in Ezechielem). O tom é declarada­mente didascálico, mesmo que as Homilias sobre Ezequiel tenham sido posteriormente reelaboradas.

Menores e de menos importância são o Comentário sobre o Primeiro Livro dos Reis e o Comentário ao Cântico dos Cânticos.

Vêm atender à mesma intenção moral, dessa vez mais inclinada para o lado ascético, os quatro livros de Diálogos (Dialogi de vita et miraculis patrum italicorum), porque, ao recolher em um estilo bastante simples e com uma linguagem por vezes popularizante, adaptada à compreensão de pessoas de todo tipo, a vida de vários personagens conhecidos por sua virtude e santidade, querem mostrar aos devotos exemplos que devem ser seguidos. A obra foi redigida em forma de conversação entre Gregório e um jovem discípulo dele, o diácono Pe­dro, que, representado como pessoa de grande ingenuidade, fala em nome dos rudes, que devem ser instruídos. Os episódios se sucedem sem nenhuma ligação entre si e são narrados prodígios, visões, curas milagrosas. O segundo livro é totalmente dedicado a São Bento. Essa obra, longe de dever ser desprezada como símbolo de um cristianismo elementar, é um precioso documento de fé popular e interessante até mesmo para o estudioso de história das religiões.

Geralmente se costuma citar, a propósito do interesse que Gre­gório Magno nutria (ou não nutria) por um estilo literário, uma frase dele que se tornou célebre e que se encontra no prefácio aos Trata­dos morais sobre Já, dirigida a Leandro de Sevilha: "Acho uma coisa realmente indigna restringir as palavras do oráculo de Deus às regras de Donato" (Donato foi um famoso gramático do século IV). Uma afirmação dessas contrasta, por princípio, como geralmente acontece com os escritores cristãos, com a praxe efetivamente seguida depois por Gregório Magno. É necessário ler essa afirmação como rejeição dos tecnicismos na escrita, dos ínfimos pormenores das regras gramaticais. O estilo de Gregório Magno se pretende simples, mas justamente por isso pleno de dignidade e solenidade. Ele tem Leão Magno por modelo.


Por MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005.


voltar para Pensamento e Literatura