Os Escritores do Reino Visigodo

A Península Ibérica desfrutou, em comparação com as outras reli­giões do Ocidente romano, de uma condição de relativa prosperidade durante o século VI. A invasão goda do século V, certamente opressora e devastadora, não chegou a se transformar em uma atividade persecu­tória propriamente dita, como a dos vândalos, que veio em detrimento dos cristãos da África, e foi sendo gradativamente superada. Se no século V e na primeira metade do século VI, não houve no reino visigodo escritores de destaque, justamente por causa das devastações provocadas pela invasão, a partir da segunda metade do século VI, a Espanha passa a produzir personalidades de certo destaque, caracterizadas por motivos e idéias autônomas e originais. Tendo se iniciado depois da produção literária franca, a produção literária do reino visigodo prosseguirá ativa e exuberante par todo o século VII, ao passo que na Gália e na Itália haverá silêncio, e constituirá um dos elementos fundamentais da cultura medieval.

A literatura romano-visigoda do século VI nutre sobretudo interes­ses religiosos e morais, diferentemente de tudo o que se pôde constatar na África ou na Itália. A conversão ao catolicismo foi encarada como particularmente urgente, tanto dos próprios visigodos como das popula­ções pagãs que ainda existiam na Espanha, ou ainda, por fim, dos judeus, que eram numerosos no país e constituíam uma comunidade rica, ativa e influente.

MARTINHO DE BRAGA
A maior personalidade da Espanha, anterior a Isidoro de Sevilha, foi Marti­nho de Bracara (Braga atual). Ele nasceu na Panônia por volta do ano 515, levou uma vida monástica na Palestina, de onde depois se dirigiu para a Galícia, onde se tornou abade do mosteiro de Dumo, por volta de 550. Depois se tornou bispo de Bracara, de 556 a 580.

Seus escritos, de reduzido valor literário, referem-se principalmente aos pro­blemas da ascese e da moral. No que se refere à moral, é de se destacar o fato de que Martinho inspirava-se muito nos escritos de Sêneca, um escritor que era certamente valorizado pela cultura cristã, mas não a ponto de suas obras serem retomadas na forma de extratos. Mas foi isso o que fez Martinho em sua Regra da vida moral (Formula vitae honestae) e no opúsculo Sobre a ira (De ira). Este último retomava tal qual o título de uma famosa obra de Sêneca.

Um outro escrito, dedicado aos mesmos objetivos morais e práticos, é mais interessante, não tanto pelo pensamento, mas pelo ambiente social ao qual se des­tina e que é reconstruído na obra do próprio Martinho. Trata-se da Educação dos camponeses (De correctione rusticorum), que é um sermão em forma de carta, desti­nado à educação cristã da plebe e dos camponeses da Espanha, muitos deles subs­tancialmente pagãos e devotados às superstições. Aqui o escritor, que se inspira no tratado De catechizandis rudibus, de Agostinho de Hipona (cf. p. 506), vale-se de uma linguagem simples e não isenta de barbarismos, adaptada ao público ao qual ele se dirigia. Essa era uma norma que vimos ser praticada já por Cesário de Arles. Em 572, o concílio de Braga trazia à pauta a necessidade de combater a superstição que ainda grassava na zona rural da região (a Galicia). Tratava-se de uma supers­tição particularmente complexa, porque com a invasão dos suábios no ano 420, o paganismo bárbaro se sobrepôs ao paganismo local, que já era refratário à pregação cristã anterior. Fala-se, no caso da Galícia, de uma espécie de paganismo autóctone, e a pequena obra de Martinho é interessante sobretudo por esse aspecto.

LEANDRO DE SEVILHA
Entre as personalidades de menor destaque da Espanha visigoda, podemos recordar Leandro, originário de Cartagena, irmão mais velho do famoso Isidoro, bispo de Sevilha. Leandro foi monge e se empenhou em uma atividade intensa pela conversão dos visigodos. De fato, ele animou o concílio de Toledo, que sancionou essa c,?nversão como conseqüência da conversão do rei Recaredo, em 589. Em Constantinopla, em 582, Leandro conheceu Gregório, o futuro papa, que lhe dedicou seus Tratados morais sobre Já. De autoria de Leandro subsiste apenas um escrito, o tratado Sobre a educação das virgens e sobre o desprezo do mundo, enviado sua irmã, que se chamava Florentina.

EXEGETAS
Na Espanha visigoda, também se cultivou a exegese bíblica, se bem que de modo não muito original. Conhecemos um Comentário místico (de conteúdo tradicional) ao Cântico dos Cânticos (Explicatio mystica in Cantica Canticorum Salomonis), escrito por Justo de Urgel; um Comentário ao Apocalipse, de Aprín­gio, bispo de Pace.

CRONISTAS
João de BiCLaro, bispo de Gerona de 592 a 621, foi um gado de religião católica, educado em Constantinopla. De regresso à Espanha, assistiu às lutas produzidas pela conversão dos godos ao catolicismo. Escreveu uma Crônica em seqüência à obra de Vítor de Tununa e chega até o quarto ano do reinado de Recaredo, ou seja, estende-se de 567 a 590. Essa Crônica é particularmente útil para se conhecer o que aconteceu na Espanha, disputada por visigodos e bizantinos, arianos e católicos. Ela narra também a conversão de Recaredo ao catolicismo, mas sem condenar os predecessores, que hostilizaram a religião cristã. A Crônica narra os acontecimentos da Espanha mantendo a lealdade à dinastia reinante.

ISIDORO DE SEVILHA
Entre todos esses escritores, o mais significativo, não há dúvida, é Isidoro de Sevilha, cuja personalidade é o emblema da Espanha visigoda e constitui, para aquele tempo, o ponto de chegada da cultura anterior e o mais alto momento da época. Graças a Isidoro e a sua autoridade, que foi encarada com reverência até mesmo pelos reis visigodos, a cultura cristã da Espanha continuou a florescer por todo o século VII.

Isidoro nasceu por volta do ano 560, de uma família hispano-romana em Cartagena ou em alguma localidade da província. A família teria sido enviada para o exílio pelos visigodos, ali por 559, provavelmente por causa de sua oposição à monarquia, que era de fé ariana. Por outro lado, a nobreza hispana olhava com simpatia para o Oriente bizantino e isso também foi motivo pelo qual ela foi dis­persa pelo poder dominante. De fato, naqueles anos, mais precisamente em 552, começara a invasão dos bizantinos à Espanha.

Portanto, desde jovem Isidoro viveu as experiências sanguinolentas da guer­ra entre visigodos e bizantinos, entre os anos 568 e 586. Viveu a guerra entre o rei ariano Leovigildo e seu filho, Ermenegildo. Tendo-se convertido ao catoli­cismo, Ermenegildo rebelou-se contra o pai e depois foi assediado e vencido em Sevilha, no ano de 583. Além disso, Leandro, irmão de Isidoro, foi conselheiro dos reis visigodos.

Nesse ínterim, Isidoro recebeu sua primeira formação cultural de Leandro e depois o sucedeu em 599, na sé episcopal de Sevilha, onde permaneceu até a sua morte, em 636, gozando a estima e a amizade dos reis visigodos. Consciente de sua autoridade, organizou o segundo concilio provincial de Sevilha no ano de 619 e presidiu o grande concilio de Toledo, em 633.

A conversão dos godos ao catolicismo foi um acontecimento de grande significado para a história da Espanha, dos católicos daquela na­ção e do próprio Isidoro. Era necessário empenhar-se na reforma cultural de todo um povo, o povo romano-visigodo. Por isso, Isidoro se dispôs a uma atividade muito intensa e seus escritos pretendem ser a síntese da sabedoria antiga, que deveria ser adaptada a um povo "novo" e que serão depois retomados por toda a Idade Média, e não apenas a espanhola.

Isidoro conseguiu, com o apoio do clero local, tornar seu país total­mente cristianizado, eliminando o paganismo e toda a heresia. "Nem a Itália de Ambrósio ou, com mais razão, a de Gregório Magno", observa Cazier com justeza, "nem a África de Agostinho, nem a Gália de Clodo­veu alcançaram tamanha integração política, social e cultural. A Espanha é, a esse propósito, o laboratório da nova sociedade cristã, que será a da alta Idade Média e posteriormente a do mundo moderno ocidental sob catolicíssimos reis ... uma sociedade terrena que eliminou, em toda a medida do possível, os inimigos da cidade celeste à qual ela deve, por vocação, conduzir seus membros".

Isidoro foi sobretudo um erudito, mas sua erudição parte de inte­resses, além de.gramaticais e científicos, também religiosos, em um in­cansável serviço prestado à Igreja e ao próprio país. É preciso evitar, em um rápido exame de sua produção, a distinção entre obras sacras e obras profanas, porque a atitude do autor não justifica essa distinção. De fato, Isidoro, nas Etimologias, nas Diferenças das palavras, no livro sobre A natureza das coisas, passa indiferentemente de um âmbito a outro. E isso nos leva a crer que seu propósito, construir uma enciclopédia humana, consiste em conjugar a tradição antiga e o pensamento cristão.

Aqui recordaremos apenas suas obras mais importantes, que são: De diffe­rentiis verborum (As diferenças das palavras), uma espécie de léxico dos sinô­nimos; De differentiis rerum (As diferenças das coisas), em que são examinados conceitos, sobretudo teológicos, místicos e filosóficos. Aqui Isidoro retoma e organiza material tradicional, cristão e profano. Vem depois uma obra muito interessante, que teve grande difusão na Idade Média, Os dois livros dos sinônimos (Synonymorum libri duo), constituído por um diálogo entre o homem pecador e sua razão, à maneira dos Solilóquios de Agostinho de Hipona. Nessa obra de Isidoro, a gramática se transforma em um instrumento de edificação moral, sem com isso perder sua função retórica.

Seguem-se os estudos dedicados às ciências astronômicas, meteorológicas e fi­sicas, na obra Sobre a natureza (De natura rerum), cujo título retoma o título de obras semelhantes do período clássico (de Lucrécio, por exemplo), e o tratado Sobre a ordem das criaturas (De ordine creaturarum).

Vem então a crônica Universal, à qual é dedicada a Crônica maior ( Chronica maiora), que chega até o ano 515, ao lado da qual se situam as histórias dos povos separadamente, como a História dos godos, a História dos vandalos, a História dos suábios(Historia Gothorum, Vandalorum, Sueborum).

Mas a obra profana mais importante, a que trouxe maior fama a Isidoro de Sevilha, é constituída por uma grande enciclopédia, As ori­gens (Origines), que também leva o título de Etimologias (Etymologiae). Isidoro não chegou a concluí-Ia; ela foi disposta em 20 livros por seu discípulo Braulião de Saragoça. Não devemos buscar em As origens a etimologia no sentido científico do termo, como a pesquisa lingüísti­ca moderna nos acostumou a fazer, porque ali encontramos o método, quase sempre arbitrário, dos antigos. Na cultura latina, Varrão fora o maior e o mais famoso erudito na utilização do método etimológico, e Isidoro se vincula a ele, representando o último anelo de uma tradição que vê muitos intermediários entre o escritor pagão e o erudito de Se­vilha. Mas, à parte o método, que não devemos anacronicamente pedir que seja diferente daquele que era praticado no mundo antigo, a obra de Isidoro possui até nossos dias certo interesse pela grande massa de notícias gramaticais e lexicais que conservou para nós. Além de se de­dicar à etimologia e à língua, Isidoro de Sevilha dedica-se à explicação das sete artes liberais, representando, junto com Boécio e Cassiodoro, uma coluna dos conhecimentos medievais nesse domínio. Ao lado delas, percebe-se a erudição mais ampla, que vai da medicina ao direito, à cro­nologia, às ciências naturais e práticas. Naturalmente, Isidoro de Sevilha s6 podia dispor de toda essa massa de notícias de modo livresco, mas ela representará para a Idade Média uma mina riquíssima.

Isidoro de Sevilha dedicou -se ainda à história da literatura. Escreveu, para dar seqüência à de Genádio de Marselha, uma obra sobre Os homens ilustres (De viris illustribus), mas ela não tem a amplidão da de seu predecessor, muito menos da de Jerônimo, porque naquela época, dado o isolamento recíproco em que viviam os reinos romano-bárbaros, tinha­se pouco conhecimento do que se passava fora dos confins do próprio país. Por isso, Isidoro de Sevilha limita-se substancialmente a registrar os escritores hispânicos do século VI, e seus continuadores restringiram posteriormente o campo da historiografia literária.

No campo da dogmática e da moral cristã, a parte mais significativa é constituída por uma retomada da doutrina agostiniana da graça e do livre­arbítrio e dos temas ascéticos, derivados de Cassiano, da conversão e da compunção. As doutrinas éticas de Isidoro estão recolhidas nos três livros das Sentenças (Sententiarum libri tres), que devem ser situados nos últi­mos anos da vida do escritor, porque são contemporâneos do concílio de Toledo. Por outro lado, a polêmica antijudaica é conduzida do modo mais tradicional, nos dois livros Contra os judeus (Contra Iudaeos). Independentemente disso, porém, deve-se observar que tanto Isidoro de Sevilha quanto o concílio de Toledo assumem uma atitude tolerante para com os judeus, afirmando que a fé não pode ser imposta pela força.

No plano literário, as qualidades e os limites de Isidoro de Sevilha são evidentes. Os limites são substancialmente os de sua época, que é a de um reino romano-bárbaro, entre os séculos VI e VII, fechado a todo contato com o Oriente. Daqui é que vem a aridez que distingue, ine­gavelmente, não obstante tentativas recentes de revalorização, o gênio organizativo e classificatório de Isidoro de Sevilha. Mas, por outro lado, sua capacidade de ordenar e classificar já antecipa as summae medievais, e sua cultura é bem mais vasta e mais refinada se confrontada com as modestas provas daqueles que o precederam.

Se Gregório Magno representa o fim da cultura antiga na Itália e de­pois dele, até o renascimento carolíngio do século IX, haverá bem pouco dela no cristianismo itálico; se Gregório de Tours é, naquela época, tes­temunha de uma mentalidade e de uma cultura popular de tipo medie­val, do mesmo modo Isidoro de Sevilha pode ser considerado como a conclusão do cristianismo antigo, por ele organizado na perspectiva do futuro. A cultura cristã, fortemente depauperada pelas crises que se aba­teram sobre o Mediterrâneo ocidental nas últimas décadas do século VI, aguarda uma transformação, que se dará graças às sementes sagazmente depositadas por Gregório Magno e Isidoro de Sevilha e graças a tudo quanto foi pacientemente conservado pelo monaquismo e pelo pouco que subsistia de cultura laica nos reinos bárbaros. Com Beda - não sem razão um cristão de origem angla - e com a civilização carolíngia, é que se dará esse renascimento.


Por MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005.


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