O Preço da Ressureição: A sociedade ocidental, 450-600

Se as invasões bárbaras não destruíram a sociedade romana do Ocidente, alteraram profundamente o modo de vida das res­pectivas províncias. O governo imperial, fixado em Roma, perde tantas terras e impostos que fica em estado de falência até à sua extinção, em 476. Os senadores perdem os rendimentos das suas propriedades dispersadas e procuram compensar alguns dos danos recorrendo às rendas exorbitantes e à chicanice nas áreas onde o seu poder é maior. Os grandes proprietários da Itália e da Gália, cujo domínio continua a pesar fortemente sobre os camponeses, são os antipáticos sobreviventes dos poderosos se­nhores absentistas do século anterior. As comunicações são difí­ceis. No fim do século IV, as damas senatoriais da Espanha do Norte viajam livremente através de todo o Império do Ocidente; no século v, escrevendo das Astúcias, mal sabem o que se passa fora da sua província. Na Europa Ocidental, o século v é o período dos horizontes limitados, do fortalecimento das raízes locais, da consolidação dos velhos laços de solidariedade.

Logo depois do saque de Roma,a Igreja católica fortalece a sua unidade. O cisma é suprimido pela força, na África, depois de 411, e em 417 a heresia de Pelágio é expulsa de Roma. Os homens sentem que não pode manter-se a ardente luta religiosa de um período mais seguro. Os últimos pagãos ligam-se à Igreja. A sua cultura e patriotismo contribuem para alargar as fronteiras do catolicismo. Um exemplo: nos mosaicos colocados na Igreja de S.ta Maria Maggiore, em 431, o fundo da cena da Apresentação de Cristo no Templo é o velho Templum Urbis. Leão I (440-461), o primeiro papa natural da campina romana, considera esta Roma como a sé de S. Pedro, numa linguagem que lembra exaetamente a fervorosa devoção de Símaco pelos deuses do Capitólio. O catolicismo torna-se a única religião «romana», num mundo cada vez mais consciente da presença dos não romanos.

Esta nova solidariedade religiosa concorre para o fortalecimento dos laços locais, como pode ver-se claramente na Gália.

A aristocracia provincial gaulesa fora sempre leal para com a sua pátria e bem sucedida na frequência da corte. A tradição começou em Tréveros, no século IV, e continuou gostosamente nas cortes bárbaras mais ostentosas do século v. Sidónio Apolinário (c. 431­-489) contava, entre as suas habilidades, a delicada arte de ver satisfeita uma petição sabendo calcu1adamente perder ao gamão, quando jogava, em Tolosa, com Teodorico, rei dos Visigodos.

Os novos reinos bárbaros ofereciam amplo campo às actividades dos cortesãos. Apesar dos seus preconceitos, os senadores locais compreenderam ràpidamente que contar por vizinho com um homem poderoso, senhor de uma força militar, tinha a sua vantagem. Os Romanos exploram os efeitos da distribuição da nova fortuna pela nobreza bárbara e procuram comprometer os reis entre os seus irrequietos súbditos, levando-os a fundar dinas­tias de" modelo imperial. O exemplo típico da sobrevivência do burocrata culto numa corte bárbara é Cassiodoro (c. 490 - c. 583), ministro do ostrogodo Teodorico e dos seus sucessores na Itália. Ajusta os editos reais ao estilo tradicional; tem o cuidado de apre­sentar Teodorico e os seus familiares como “reis filósofos” (porque mal lhes poderia chamar legítimos governantes romanos); e escreve uma História dos Godos, na qual a tribo, em geral, e a família de Teodorico, em particular, são apresentadas como participantes da história do Mediterrâneo desde o tempo de Alexandre Magno.

Os Romanos vêm a reconhecer, mais gravemente, que o diabo que se conhece é melhor do que o diabo que não se conhece. Na Aquitânia, a presença dos Visigodos protege as propriedades de Sidónio e dos seus amigos da cobiça de tribos, como a dos Saxões, que haviam aterrorizado a Bretanha. Em 451, são os senadores locais que persuadem os Visigodos a juntarem-se ao exército romano que pretende deter a avalancha dos hunos de Átila. É a presença da guarnição bárbara da Gália que faz com que (enquanto na Bretanha não sobrevive uma única propriedade romana) as aldeias do Garona e da Alvémia continuem, até hoje, a conservar os nomes das famílias às quais pertenciam no século v.

A política dos cortesãos romanos nas novas cortes bárbaras foi a política local. Os homens que amavam verdadeiramente o pequeno mundo das suas províncias desconheciam a idéia de um Império do Ocidente unificado. Nas cartas de Sidónio Apolinário vemos a paixão profunda do senhor rural pela sua terra, dis­farçada pela máscara do otium senatorial. Nas cartas de Símaco descobrimos apenas um estilo de vida; nas de Sidónio encon­tramos um ambiente diferente, a sua amada Clermont, "onde as pastagens sobem ao topo dos montes e as vinhas revestem as encostas, onde há moradias nos vales e castelos entre os rochedos, florestas aquém e além, retalhos de terra regados pelos rios..."

Sidónio toma-se bispo de Clermont, em 471, porque, para dirigir uma comunidade local nas condições do fim do século v, só um bispo; só a solidariedade do agregado católico, ligado ao senhor e seus súbditos; só o prestígio das basilicas recentemente construídas e dos relicários dos mártires, que, na Gália do Sul, mantêm o estado de ânimo das pequenas cidades.

Paradoxalmente, o alastramento do movimento monástico facilita a delicada transição do Senado para o bispo. As comunidades monásticas de Lérins, Marselha e outras estavam cheias de nobres refugiados da furiosa guerra do Reno. Destas comunidades sai o clero da Gália do Sul - homens de alta categoria e de grande cultura. A reconfortante lembrança de que o homem de Deus intercede pelo pecador faz com que Sidónio viva sossega­damente, enquanto leigo católico, e a ideia da vocação monástica, longe de o levar ao abandono completo do mundo, dá-lhe, e aos do seu meio, a noção simples de que há tempo e ocasião para todas as coisas, de que a idade avançada obriga o homem a arcar com as suas responsabilidades espirituais. Havendo semeado os seus campos bravios, tendo fundado as suas famílias, Sidónio e os seus amigos passam para a austera gerontocracia da Igreja católica. Acompanham-nos as francas lembranças dos bons jan­tares, dá terminação das vigílias dos mártires ao ar frio da manhã, das festas campestres, do contacto com os clássicos nas espaçosas bibliotecas particulares, de onde os padres da Igreja eram reti­rados discretamente quando· morriam as esposas.

Os bispos e proprietários rurais, como Sidónio, completam a revolução silenciosa que converte a Gália em terra cristã e de fala latina. o seu lento trabalho de evangelização dos camponeses inclina finalmente a balança do céltico para o baixo latim, a língua falada. Daqui um duplo movimento, visível em todo o Ocidente. A cultura clássica torna-se menos limitada e esotérica. As cidades da Gália mal têm escolas. Um século depois de Ausónio e os seus colegas haverem ministrado o ensino clássico a centenas de jovens na florescente cidade universitária de Bordéus, o estudo da literatura latina encerra-se nas grandes bibliotecas das raras vilas senatoriais. Em vez de propriedade de qualquer homem, a educação clássica torna-se apanágio de uma oligarquia limitada. Como esta restrita aristocracia das letras entra na Igreja, a retórica clássica conquista, no fim do século v e durante o século VI, um brilhantismo extraordinário. Quando os bispos se reúnem, em ocasiões solenes, ou escrevem uns aos outros, ressoa o “grande estilo”. O seu brando rio de frases, “polidas como ônix”, torna-se tão impenetrável aos contemporâneos estranhos ao seu grémio como aos leitores modernos.

As cartas e jeux d'esprit dos bispos, como Avito de Viena (c. 490-518) e Enódio de Pavia (513-521), e a retórica dos edictos compostos por Cassiodoro são produtos típicos deste movimento. Amputados dos seus privilégios, reduzida a fortuna pelos con­fiscos, governados por estrangeiros, os senadores do Ocidente mostram, deleitados com o seu retórico latim rococó, a vontade de sobreviver, de serem vistos a sobreviver.

Como bispos, estes homens têm de manter o moral do gros­seiro rebanho. Servem-se, para isso, do estilo "humilde". Na Gália, por exemplo, o século VI é uma época de vidas de santos, escritas num latim corrente. Normalmente lembramo-nos de bispos como Gregório de Tours (538-594), autor da História dos Francos, célebre pelas vivas narrativas das hediondas manobras dos Roma­nos e Francos da corte merovíngia. São do maior interesse as suas vidas dos grandes santos protectores das Gálias. Entre estes encontram-se alguns caros ao seu coração - uma fria nobreza celestial, como ele inflexível na retribuição, mas também como ele minuciosamente preocupada com as particularidades da vida dos homens da cidade e do campo.

Com este reforço dos laços locais nas províncias, a Itália torna-se a «expressão geográfica», que perdura. O Norte e o Sul haviam sempre estado muito divididos. Os bispos e os proprie­tários do Norte tinham-se habituado, há muito, à presença de um governo militar bárbaro. Encontraram-se como em casa na corte de Odoacro (476-493) e, depois, na de Teodorico, em Ravena. Mas atravessar os Apeninos era penetrar num mundo diferente, onde a corte estava longe e o passado sempre presente. Em Roma, as vastas basilicas católicas e as memórias da Anti­guidade escondiam o presente. Uma dupla oligarquia de senadores e clérigos - agora estreitamente misturados - velava pelo esplên­dido isolamento da cidade. O Senado limitava-se, caracteristica­mente, a mandar cunhar a moeda, poder que perdera desde o fim do século III. Logo que os imperadores do Ocidente foram apeados (476), a imagem do soberano foi discretamente substi­tuída por uma pintura de Rómulo e Remo, amamentados pela loba, e a legenda Roma invicta. A romântica ideologia da Roma invicta preenche, desta maneira, o vácuo da soberania imposto pelo fim do domínio legítimo de Roma, na Itália. Os «Ro­manos de Roma» do fim do século vedo século VI são figuras rígidas, impedidas de crescer pela vasta sombra de Roma, como as representam os marfins consulares.

Na sua grande biblioteca familiar, o senador Boécio (c. 480­-524) compõe a lista dos ricos intelectuais que primeiro se inte­ressam pelo renas cimento latino do século IV. Lança os funda­mentos da lógica medieval, servido pelos livros que haviam per­tencido aos seus bisavós; e, na sua Consolação da Filosofia, ainda nos espanta a tranqüilidade com que um enérgico aristocrata romano cristão do século VI encontra o sossego, em face da morte, de acordo com a sabedoria pré-cristã dos Antigos. Teodorico manda-o executar, acusado de traição, em 524. Procedendo assim, faz desaparecer, prudentemente, o mais eminente e, por isso, o mais isolado de um grupo irreconciliável. Orgulhoso e solitário, é morto por haver vivido tão bem uma vida que conservara alguma coisa de Roma - tudo, menos um imperador.

Depois de 533, um imperador romano volta ao Mediterrâneo Ocidental. O exército de Justiniano conquista a África, de uma assentada, em 533. Em 540, o seu general Belisário entra em Ravena. As campanhas de J ustiniano são prejudicadas pelo renascimento da ameaça persa (540), pela peste inexorável, que con­tinua a grassar desde 542, pelo colapso da fronteira danubiana ante a primeira invasão dos Eslavos (548). O domínio dos romanos do Oriente mantém-se, no entanto, em Ravena, Roma, Sicilia e África, por algum tempo.

A inesperada intervenção dos exércitos imperiais foi uma dura prova para a relativa força dos discretos agrupamentos da sociedade romana na Itália e na África. A reconquista de Justi­niano representava um desastre para a aristocracia senatorial. Um autocrata oriental, senhor de colaboradores eficientes, não era o imperador que haviam experimentado até então. As guerras de Justiniano na Itália marcam o fim de um modo de vida para esta renitente aristocracia. As amargas recriminações dos sena­dores italianos são bem recebidas pela cobarde nobreza de Cons­tantinopla; vêm a escurecer as páginas da descrição clássica das guerras góticas, de Procópio de Cesareia, e irrompem contra Justiniano na impotente fúria do mesmo autor, na História Secreta.

Não devemos julgar os triunfos de Justiniano no Ocidente apenas em relação com a sorte deste agrupamento bem organizado. O clero católico não manifesta o ressentimento do Senado romano. A Igreja romana liberta-se do arianismo e recebe as vastas pro­priedades dos templos arianos. No tempo do papa Gregório I (589-603), homem complexo, a importância clerical da aristo­cracia romana, antecipada nos padres e papas da sua família, sobe ao máximo. Na vasta biblioteca particular do seu parente, o papa Agapito (535-536), Gregorio familiariza-se com Agostinho, de maneira só possível a um aristocrata. A chama do misticismo platónico, que transitara de Plotino para Agostinho, flameja de novo nos seus sermões. Lembrado dos costumes passados da sua classe, mantém a casa aberta ao povo romano. Emprega os rendi­mentos da Igreja, cuidadosamente guardados, na compra de trigo para os pobres e em subsídios alimentares a senadores empobrecidos. Chamaram-lhe "cônsul de Deus", no epitáfio. Não era um mero sobrevivente do passado aristocrático de Roma. Vivia numa altura em que Roma fora integrada, por uma geração, no Império Romano do Oriente. A sua austeridade, a sua sensibili­dade à devoção popular (como mostram as histórias milagrosas dos seus Diálogos), o austero sentido da missão de bispo (revelado na sua Regra), fazem dele a imagem latina dos piedosos homens de Deus que, como patriarcas de Constantinopla, Antioquia, Jerusalém e Alexandria, governam as grandes cidades do Oriente, em nome dos imperadores bizantinos.

Vistas de Roma, todavia, a posição e atividades dos imperado­res do Oriente são interpretadas de maneira caracteristicamente latina. Os únicos retratos de Justiniano e Teodora que possuí­mos - as cenas da corte dos mosaicos de S. Vital de Ravena­ figuram junto do altar de uma igreja católica. Para os bispos católicos da Itália, o Império existia para seu benefício. Estes bispos eram os herdeiros directos do Senado romano. A libertas, a posição privilegiada do Senado romano, era um dos ideais da aristocracia da cidade, no começo do século VI. Este ideal passa, imperceptivelmente, para o clero romano, e manifesta-se através de toda a Idade Média. É o acontecimento mais paradoxal da reconquista de Justiniano.

Justiniano surge, oportunamente, no Mediterrâneo Ocidental para reconquistar o que considerava as províncias perdidas do «sem império. Tinha pouca simpatia pela libertas do Senado romano, e estava disposto a combater qualquer papa que não aceitasse os seus esquemas eclesiásticos. Contudo, os exércitos bizantinos permanecem durante séculos na Itália, para proteger os privilé­gios da Igreja romana. Aos olhos dos Ocidentais, o Império do Oriente existia para proteger militarmente o papado. Os prudentes orientais que serviam em Ravena como exarcas (vice-reis do imperador) eram considerados, em Roma, como representantes da Santissima Respublica (a Santíssima Comunidade). O Império do Oriente vem, desta forma, a ser considerado como o «Santo» Império Romano. O modelo do renovado império de Carlos Magno não é Augusto, mas Justiniano, o piedoso monarca católico dos exatas de Ravena. Justiniano é o direto, ainda que inconsciente, antepassado da ideia de que uma “comunidade cristã”, um Santo Império Romano, deveria sempre existir, para servir os interesses do papado e defender a libertas da Igreja católica.

Os hábitos e costumes de uma cidade mudam pouco. No século VII, os membros da oligarquia clerical da cidade de Roma continuam a proceder nas suas igrejas como os cônsules proce­diam no século VI - festejados com luminárias, generosos para com a população, usando as chinelas de seda dos senadores. O Palácio Lateranense era assim chamado, pensa-se, porque ainda ali se falava o “bom latim”. Nas suas grandes basilicas, os papas continuam a rezar pela Romana libertas. A ideia de que a socie­dade ocidental devia reconhecer o predomínio de um escol clerical perfeitamente definido, como os imperadores romanos haviam reconhecido outrora os direitos especiais dos membros do Senado romano, era ligada às prédicas e cerimónias do papada medieval. A Roma aeterna, último amor dos senadores romanos, flameja na solene fachada da Roma papal como o derradeiro clarão do fim do dia.


BROWN, P. Fim do mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972.


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