A Era das invasões Bárbaras no Ocidente

O problema dos bárbaros surge no século V com uma urgência que a situação da era de Teodósio, concluída em 395, não permitia entrever. Mas foram exatamente as grandes invasões, que se iniciaram em 406-408 e se sucederam, vertiginosas, durante todo o século, que caracterizaram a vida do mundo mediterrâneo, particularmente no Ocidente de língua latina. Na realidade, depois da fragorosa derrota romana em Adrianópolis (em 378), o império já começara a vacilar, adotando, por um lado, a diplomacia, dando o título de "aliados" aos bárbaros e aceitando-os dentro das fronteiras. Até mesmo os in­telectuais se viram em uma posição de incerteza: para alguns deles, os bárbaros representavam uma força nova a ser canalizada e maxima­mente desfrutada. Para outros, eles não eram nada além de sinônimo de destruição.

A partir do século V, fica bastante claro que as hordas dos in­vasores tinham força suficiente para dominar (e oprimir) e que os cidadãos romanos não tinham escolha. Perdidas a Espanha, a Gália e a África, apenas a Itália, mesmo saqueada pelos visigodos em 410­-411 e pelos vândalos em 455, permanece nas mãos do imperador do Ocidente até 476. Foi diante dos bárbaros que o cristianismo descobriu sua vocação missionária. Já desde antes do século V, assisti­mos a esporádicas conversões de bárbaros. No novo contexto social e político originado pelas invasões bárbaras, o cristianismo deve tomar consciência da nova situação, e a reação às novas condições é, em geral, vivaz e inovadora, tanto que os "conquistadores" tornam-se os "conquistados", por sua vez.

A literatura "depois de Agostinho" não atinge mais os vértices in­telectuais dos séculos anteriores, mas tampouco é tão modesta quan­to se pensa.


1.DISCÍPULOS DE SANTO AGOSTINHO
São vinculados à figura do bispo de Hipona os nomes de Orósio, Mário Mercator, Quodvultdeus e Tíron Próspero.

ORÓSIO
Na Idade Média, Orósio foi tido como o historiador cristão por excelência. Originário da Espanha, era amigo de Agostinho, ao qual enviara, em 414, uma Relação sobre os erros dos seguidores de Prisci­liano e de Orígenes. Posteriormente (em 415), foi enviado por Agos­tinho a Belém, junto a Jerônimo, levando consigo as mais recentes obras dedicadas à luta antipelagiana. Orósio tornou-se célebre pelas Histórias, escritas entre 416 e 417. Na origem, elas devem ter sido um elenco de catástrofes e de flagelos dos tempos passados e devem ter servido a Agostinho (que, em 415, solicitara o auxílio de Oró­sio, enquanto se dedicava à composição de A cidade de Deus) para refutar a acusação, dirigida pelos pagãos contra os cristãos, de que os males do império eram obra dos deuses de Roma, indignados por não serem mais objeto de culto. Orósio foi muito além do dever a si confiado e escreveu uma história universal em seis livros, da criação do mundo até a era em que vivia. A obra utiliza como fontes, para a época antiga, Lívio, Floro e Justino. Mas original é a parte dedica­da aos acontecimentos contemporâneos a ele, mesmo que os impe­radores Graciano, Teodósio e Honório, defensores do cristianismo, não mostrem características humanas, mas angélicas. Aprova de que Agostinho não concorda com o espírito de iniciativa de seu discípulo se evidencia no fato de que, enquanto Orósio interpreta os quatro reinos (prefigurados segundo a tradição exegética cristã no sonho de Nabucodonosor, registrado no Livro de Daniel) como reino ba­bilônico, reino cartaginês, reino macedônio e reino romano, no De civitate Dei (livro XX), segue-se a interpretação de Jerônimo (deriva­da de Eusébio de Cesaréia), que neles vê o reino babilônico, o reino medo-persa, o reino macedônio e o reino romano. De todo modo, o reino romano constituiria o quarto e último reino, com o fim do mundo já em ato (milenarismo).

MÁRIO MERCATOR
Aparece um Mercator na epístola 193 de Agostinho (datável do ano 418): ele teria escrito um ensaio contra os pelagianos e também teria compilado uma série de testemunhos escriturísticos contra aqueles hereges. Provavelmente a compilação de testemunhos antipelagianos pode ser identificada com o Hypom­nesticon contra Pelagianos et Caelestianos (Memorial contra os seguidores de Pelá­gio e de Celéstio), que nos foi transmitido entre as obras agostinianas. Mercator escreveu outros volumes, voltados a refutar a heresia de Pelágio e de Celéstio e escritos em Constantinopla. Lembremos que Celéstio e Juliano de Eclano ti­nham encontrado refUgio justamente naquela cidade, onde buscavam o apoio do imperador Teodósio II.

QUODVULTDEUS
Quodvultdeus, diácono da Igreja cartaginesa, escreveu a Agostinho duas cartas nos anos 428-429 (221 e 223 do epistolário agostiniano), pedindo-lhe que escrevesse um elenco das mais diversas heresias, de modo a poder evi­tar desvios e erros. Agostinho deixou-se convencer, mesmo que estivesse mais propenso a traduzir para o latim a obra análoga de Epifânio de Salamis, já suficientemente exaustiva, e escreveu o De haeresibus (cf. p. 516). Depois que a África foi invadida pelos vândalos, Quodvultdeus refugiou-se na Itália e es­creveu o Liber promissionum et praedictorum Dei (Livro das promessas e dos va­ticínios de Deus), quando o papa Leão decidiu a perseguição contra maniqueus e pelagianos (depois de 444). O propósito do autor é o de compilar todos os testemunhos escriturísticos sobre as promessas e as profecias de Deus a partir da criação do mundo. Ele fala de um tempo anterior à Lei e de um tempo sob a Graça (este último período desemboca na escatologia e se divide em um "tempo breve", no qual terá lugar a vinda do anticristo, e em um tempo final, que verá a glória e o reino dos santos). No Antigo Testamento, são buscadas as promessas e as profecias. No Novo Testamento, seu cumprimento. As fontes de Quodvultdeus parecem ter sido o Comentário a Daniel, de Jerônimo, e o Comentário ao Apocalipse, de Ticônio, hoje perdido, e sobretudo o De civitate Dei e os Sermones de Agostinho. As citações dos autores clássicos provêm de Lactâncio e, mais uma vez, de Agostinho, mas a quarta écloga de Virgílio e a Eneida recebem um tratamento completamente novo.

TÍRON PRÓSPERO
Proveniente da Aquitânia, Tíron Próspero endereçou ao bispo de Hipona, junto com Hilário de Poitiers, duas cartas (as de numero 225 e226), referentes ao chamado "semipelagianismo". Foi assim definido, em tempos recentes, a atitude daqueles que não concordavam com a total condenação de Pelágio por parte de Agostinho. Esses críticos do pensamento agostiniano sustentavam, entre outras coisas, que a graça de Deus é concedida proporcionalmente aos merecimentos do homem, conceito inaceitável para Agostinho. Muitas obras de Próspero fo­ram escritas na intenção de defender Agostinho dos ataques dos semipelagianos. Recordemos, por exemplo, o Pro Augustino responsiones ad capitula obiectionum Gallorum calumniantium e o Pro Augustino responsiones ad capitula obiectio­num Vincentianarum (Respostas em favor de Agostinho aos capítulos das objeções dos gauleses que o criticavam e de Vicente de Lérins). Pelo termo "gauleses" entendam-se letrados de Marselha. Por outro lado, no Pro Augustino responsiones ad excerpta Genuensium, Próspero refuta dois presbíteros genoveses que tinham extraído trechos do De praedestinatione sanctorum e do De bono perseverantiae de Agostinho (dedicados ao próprio Próspero), mas deturpando seu significado. Contra João Cassiano, normalmente considerado o fundador da corrente dos semipelagianos (p. 528), Próspero escreveu, em 433-434, um tratado sobre A graça de Deus e sobre o livre-arbítrio contra os escritores de "collationeS' (entenda­-se por collationes "conversações").

A Exegese dos Salmos ( Expositio Psalmorum: do 51100 ao SI 15 O) é justamen­te uma compilação das explicações extraídas das Explicações dos Salmos de Agos­tinho. Por sua vez, o Livro das sentenças extraídas das obras de Santo Agostinho (Sententiarum ex operibus Sancti Augustini delibaratarum liber), uma série de 392 sentenças, pretende ser uma summa da teologia de Agostinho.

Próspero também escreveu composições poéticas com propósito de ensino. No carme em hexâmetros dirigido A sua mulher, ele rela­ciona as catástrofes da Gália invadida pelos bárbaros, para depois passar a exortar a consorte, em dísticos, a viver uma vida de penitência, de­dicando-se às coisas de Deus. O longo carme intitulado Acharistoi (Os ingratos), ou seja, "os inimigos da graça", narra condenações infligidas aos pelagianos e sua obstinação, além do ressurgimento dessa heresia na forma do neopelagianismo. É de impressionar a correção métrica e prosódica de Próspero em um momento em que a língua falada desen­volvia-se sempre em direção aos ritmos quantitativos. Faz referência à obra homônima de Jerônimo, a Crônica (escrita em três redações e publicada em 455), mas demonstra originalidade, porém, no cuidado com que trata as heresias e os dogmas. A principal fonte para a parte que se refere a esses temas deve ter sido o tratado Sobre as heresias, de Agostinho.

O CHAMADO DE TODAS AS GENTES
No ambiente da discussão entre agostinianos e "semipelagianos", si­tua-se uma obra anônima, dotada de bons dotes literários, que pretende examinar O chamado de todas asgentes (De vocatione gentium). O autor da obra, que atualmente quase todos concordam em identificar com Próspero, o autor da Crônica, exaurido pelas discussões entre os defensores do livre­ arbítrio e os paladinos da graça de Deus, quer encontrar uma solução que satisfaça as duas partes em disputa. A obra, que volta a percorrer as várias etapas da história sagrada, foi escrita por volta da metade do século V.

HIDÁCIO
Não é originário da Gália e não provém do mesmo ambiente de Próspero um escritor que, por ter escrito uma Crônica, recordamos por comodidade de­pois de ter falado da Crônica de Próspero. Esse escritor é Hidácio, um espanhol, nascido na Galícia por volta do fim do século IV e que se tornou bispo de Aquae Flaviae, atual Chaves, em Portugal.

Sua obra dá seqüência à de Jerônimo, recomeçando no ano em que o Estri­donense parou (378) e chegando até o ano de 468. Os acontecimentos levados em consideração são sobretudo os acontecimentos da história da Igreja (as heresias: arianismo, priscilianismo e maniqueísmo), chegando até os fenômenos naturais (ter_ remotos, eclipses, cometas etc.). Essa obra é muito importante para a reconstrução da história da Espanha no século V.


ESCRITORES DA ÁFRICA VÂNDALA
A África caiu nas mãos dos vândalos a partir de 439. Desde então, iniciou-se para aquela província um período de devastações, de exter­mínios, de perseguições. Os novos dominadores eram particularmente cruéis e de fé ariana. Isto explica por que se fala de uma verdadeira "perseguição vândala". O espaço para o debate cultural na África ficou reduzido ao mínimo.

VÍTOR DE VITA
Vítor, bispo de Vita, na província da Bizacena, era um mem­bro do clero de Cartago até o ano de 484. Pode-se, pois, imaginar que, sendo originário de Vita, só se tenha tornado bispo dessa cidade posteriormente. Ele escreveu uma Historia persecutionis Africanae provinciae (História das perseguições da província da África) em três livros. Vítor de Vita fornece documentos precisos do último período, na qualidade de testemunha ocular, razão pela qual sua obra é muito importante como fonte histórica e pelo conhecimento do direito romano- vândalo.

Mesmo narrando os acontecimentos da África com a objetividade da narrativa histórica, a História das perseguições da província da Áfri­ca é uma história sui generis, porque também registra sinais, portentos, milagres, ou seja, tudo aquilo que faz parte da literatura hagiográfica. A visão de conjunto é reduzida, completamente centrada na relação entre a Igreja e os bárbaros, sem demonstrar interesse algum pelas relações entre os bárbaros e o império, que, por seu lado, foram muitas vezes concretizadas em acordos e tratados.

A língua, mesmo com certas tendências popularizantes do falar co­mum, é a das camadas cultas cartaginesas do século V. O escritor, mesmo repleto de pomposidade retórica e presa da prolixidade, consegue ser um narrador eficiente.


VIGÍLIO DE TAPSO
Vigílio de Tapso é a personalidade mais importante do cristianis­mo africano da época: ele se distingue nas controvérsias cristológicas. Por volta do ano 480, escreveu um tratado Contra Eutychem (Contra Êutico), em cinco livros. O objetivo da obra é refutar o monofisismo, que poderia passar do Oriente para a África: é bastante significativo que, enquanto todos os bispos africanos se preocupavam em comba­ter o arianismo dos invasores, Vigílio de Tapso está interessado nas heresias orientais. No último livro do Contra Eutychem, Vigílio de Tapso faz referência a uma obra sua, anterior, na qual ele discutira exaustivamente o direito de a Igreja dar novas definições de fé para fazer frente às novas heresias, mesmo que para tanto tivesse de lançar mão de termos que não se encontram nas Sagradas Escrituras. É o caso do termo "consubstancial" (homousion), que é efetivamente es­tranho às Escrituras, como os arianos já haviam objetado aos nicenos. A obra à qual Vigílio de Tapso se refere é o Diálogo contra os arianos, os sabelianos e os fotinianos, no qual discutem Atanásio, Ário, Sabélio, Fótino e Probo, que faz as vezes de juiz (Contra Arianos, Sabellianos et Photinianos dialogus, Athanasio, Ario, Sabellio, Photino et Probo iudice interlocutoribus). A obra revela um bom conhecimento das controvérsias religiosas, mesmo das controvérsias do século anterior, e boas qualidades literárias.

A fama de Vigílio de Tapso foi imensa na Idade Média e foram-se atribuídas muitas obras que não lhe pertencem.

DRACÔNICO
Blóssio Emilio Dracôncio, de nobre família cartaginesa, foi protagonista de um acontecimento que mostra o quanto era precária a vida dos intelectuais cris­tãos na África vândala. Ele havia escrito um carme em homenagem a um personagem desconhecido como seu senhor e inspirador (pensa-se que se tratava do imperador bizantino Zenão ou de Teodorico, à época rei da Itália, em luta com os vândalos pela posse da Sicilia). Isso provocou o rancor do rei Guntamundo, que ordenou que ele fosse preso. Então Dracôncio dirigiu a um rei uma compo­sição em dísticos, intitulada Satisfactio, na qual realizava uma forma de imitação dos Tristia de Ovídio, mas não obteve o perdão esperado. Por isso, escreveu uma obra em três livros, intitulada De laudibus Dei ( Os louvores de Deus). A celebração da bondade de Deus devia estimular o suscetível rei à emulação. Ao que tudo indica, amigos influentes, por fim, obtiveram a libertação do poeta (provavel­mente, porém, depois da morte de Guntamundo e da ascensão ao trono de Tra­samundo). Nada mais sabemos da vida de Dracôncio. Provavelmente remonta ao período anterior à prisão uma coletânea de Carmes romanos (Romulea), que compreendem composições inspiradas nos mitos pagãos, e provavelmente a Ores­tis tragoedia, em hexâmetros e destinada às recitationes (isto é, a leitura, como acontece com todas as tragédias a partir da era de Sêneca).

Foram atribuídos a Dracôncio outros carmes em hexâmetros, provenientes do mesmo ambiente africano e da mesma época: um, intitulado Em louvor do sol (In laudem solis) e o outro é A doença de Pérdica (Aegritudo Perdicae), que nar­ra o amor incestuoso de Pérdica, filho de Alexandre Magno, pela mãe Castália. Esses carmes são interessantes (mesmo que a paternidade de Dracôncio não seja provada) porque nos leva a conhecer o ambiente literário africano, no qual a pro­fissão de fé cristã não era vista como contrastante com o divertissement poético centrado em motivos pagãos e mitológicos tradicionais.

A obra mais significativa de Dracôncio é, indubitavelmente, a que é dedi­cada a cantar Os louvores de Deus, em hexâmetros. O primeiro livro, quase in­tegralmente ocupado pela narração da criação do mundo, é uma composição de epopéia bíblica e pertence ao gênero literário cultivado na mesma época de Dracôncio, mesmo que em outros ambientes, por Sedúlio, Cláudio Mário Vitório, Cipriano Galo. Ao lado dessa epopéia bíblica, é perceptível uma segunda importante fonte de inspiração, ou seja, o hino, considerado como instrumento para cantar os louvores de Deus. O livro dos Salmos constituía o modelo para todos os poetas cristãos que se dedicavam à hinologia. Contudo, ao lado da ins­piração cristã, Dracôncio, poeta e retor que era, também se inspirou largamente na poesia pagã e, naturalmente, em seus principais representantes, isto é, Virgilio, Ovídio e Lucano.

POETAS AFRICANOS MENORES
É de autor desconhecido o Carme a Flávio Félix sobre a ressurreição dos mor­tos e sobre o juízo do Senhor (Ad Flavium Felicem de resurrectione mortuorum et de iudicio Domini) em hexâmetros. A origem africana do poema aparece no nome do destinatário, um poeta que viveu em Cartago nos tempos do rei Trasamundo (496-523).

Igualmente anônimo é o Carme contra os marcionitas (Carmen adversus Marcionitas), em cinco livros, que só aparentemente retoma no título a polêmi­ca conta aquela heresia, baseando-se em Tertuliano. Ele se dedica sobretudo à polêmica contra várias formas de dualismo. O carme também parece provir do ambiente africano e ser posterior a Dracôncio.

E também são anônimos os dois carmes, transmitidos tanto sob o nome de Cipriano como sob o de Tertuliano, Sodoma e lonas, que são exercícios retóricos sobre o episódio bíblico da destruição de Sodoma e sobre os fatos relativos a Jonas (De Sodoma e De lona).


A GÁLIA NO SÉCULO V
As invasões bárbaras que se desencadearam na Gália na primeira dé­cada do século V e que levaram à constituição dos reinos romano-bárba­ros, deixando, como única ilha de civilização romana, a província (isto é, a Provença), na parte meridional da região, não tiveram no plano social cultural a mesma eficácia desastrosa que teve a invasão da África. Elas provocaram, é certo, devastação e ruína, mas esses efeitos desastrosos não foram gerais e imediatos em todos os quadrantes. Os bárbaros conquistaram a Gália aos poucos e, assim, mesmo sendo inevitável o surgimento de contrastes entre o elemento romano-gálico preexistente, e isso entre as camadas mais elevadas, e o elemento invasor, de origem germânica, (a tanto pagã como cristã) continuou a sobreviver e se conservou um bom nível artístico, graças também à presença de numerosas escolas de retórica. A situação, contudo, parece mais favorável na primeira me­tade do século V. Mais tarde, até mesmo a Gália entra em um período de decadência econômica e cultural. Foi fundamental o florescimento do monaquismo. Os conventos (por exemplo, os de Marselha, Lérins, e Saint-Honoré) foram centros culturais de importância capital.

JOÃO CASSIANO
O Mais significativo escritor da Gália do século V foi João Cassiano, por volta do ano 360, na Cícia, isto é, nas regiões circunvizinhas em torno do trecho terminal do Danúbio, mesmo que, segundo alguns, o pleno domínio da língua latina, demonstrado por João Cassia­no possa levantar dúvida sobre esta notícia e induza a pensar, quando menos, em uma origem gaulesa. Sua experiência religiosa aconteceu em um mosteiro de Belém e depois transcorreu, durante muitos anos, no Egito. Posteriormente, fugindo das lutas entre ortodoxos e antropomorfitas, foi para Constantinopla, onde o patriarca João Crisóstomo o ordenou diácono. Em 405, ele foi enviado a Roma para obter do papa Inocêncio I a revogação do exílio de João Crisóstomo. Professados os votos sacerdotais, fundou finalmente (em 415), em Marselha, dois conventos, ­um masculino e um feminino, onde permaneceu até a sua morte, que se deu por volta do ano 435.

João Cassiano também conhecia perfeitamente o latim e o grego (coisa muito mito rara em seu tempo). Escreveu o De institutis coenobiorum ET octo principalium vitiorum capitalium remediis (As instituições dos cenóbios e os remédios para os oito vícios capitais), em 12 livros. Os primeiros quatro livros nos dão importantes notícias sobre a vida monástica Palestina e no Egito, da qual João Cassiano fora testemunha.

As collationes (conversações), por sua vez, recolhem as conversações de Cassiano e do amigo germano com famosos fundadores de cenóbios. [...] João cassiano é um escritor sofisticado e, em seu estilo, emprega, com muita moderação, os meios da retórica que aprendeu já na idade adulta. Mas não se tem nele um latim artificial, não natural. O narrar, simples e agradável, e a instantaneidade da expressão fazem de João Cassiano um dos maiores escritores latinos do século V.


Por MORESCHINI, C. & NORELLI, E. Manual de literatura cristã antiga grega e latina. São Paulo: Santuário, 2005.


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