Querelas religiosas em Bizâncio

[...] Temos dificuldade em conceber as paixões desencadeadas por disputas, aparente­mente provocadas por questões teológicas de uma sutileza inaces­sível ao comum dos fiéis. Talvez a importância da literatura eclesi­ástica nos leve a exagerar seu ardor. Entretanto, a religiosidade oriental, mais do que a ocidental, preocupada antes de tudo com os problemas do comportamento do homem, é dominada pela idéia de que a salvação reside, inicialmente, na exata compreensão da ordem divina, seja para nela nos abismarmos passivamente, seja para sairmos dos embaraços de maneira quase mágica. Sobretudo, é logo evidente que, por trás dos teólogos, as massas eram impelidas por razões de ordem social e nacional tanto e mais do que de natureza religiosa. Sentimos ser indispensável expor de modo su­mário em que consistiam esses problemas religiosos, pois, oficial­mente, encontram-se na origem de cisões que duram até hoje.

A divergência essencial, em teologia, dizia respeito à dupla natureza, humana e divina, de Cristo. Para uns, empenhados em sublinhar a unidade divina, a existência humana e a Paixão tendi­am a ser apenas aparências: tratava-se dos monofísitas. Para outros, eram realidades absolutas, mas tão distintas da natureza divina que os sofrimentos de uma não alteravam a perfeição da outra: eram, segundo o nome do patriarca de Constantinopla, Nestório (século V), ao qual se ligavam, os nestoríanos. A bem dizer, ambas as dou­trinas, colocando Deus à parte da Paixão, comprometiam a Reden­ção; destarte, o que se tornou a ortodoxia greco-romana afirmou a união das naturezas, mistério insondável ao homem. Os nestoria­nos, inicialmente acusados pela influência monofisita, onipotente no século V, encontraram sua área de expansão no Império Sassâ­nida. O monofisismo conquistou os principais adeptos entre os semitas, que nele reconheciam suas tradições de intransigente mo­noteísmo; conquistou, igualmente, os coptas e, menos rigorosamente, os armênios. A "ortodoxia" conservou os gregos, além de Roma, sendo considerada em algumas partes a religião dos senhores es­trangeiros. Os patriarcas de Antioquia e Alexandria - sobretudo Cirilo de Alexandria, no século V -lançaram-se no monofisismo para opor-se ao seu colega de Constantinopla, cujo lugar junto ao Poder invejavam. Mas sabiam que contavam com seus povos, por intermédio dos monges.

Mais cedo do que no Ocidente, e sob formas bem diferentes, o monaquismo assumira, no Oriente, considerável amplitude, tan­to nas regiões gregas corno armênias ou coptas. Inspirava-se, geral­mente, nos ensinamentos de São Basílio; os monges professavam um ideal de ascetismo e êxtase. Uns viviam em comunidade, como os do mosteiro fundado por São Sabas em Jerusalém (século V); outros viviam solitários, corno os discípulos de São Simeão Estilita, que passavam a vida, a exemplo de seu mestre, sobre colunas, na contemplação de Deus. O prestígio desses santos homens era imenso junto ao povo, e seu número aumentava incessantemente; associar­-se-lhes era uma forma de evasão das provações e constrangimentos deste mundo. Seu exemplo e sua palavra fustigavam o vício, a ri­queza e o poder; mal enquadrados pelos bispos, constituíam um elemento de permanente indisciplina, e foram eles que sublevaram as massas na ocasião ou sob pretexto das querelas teológicas. Em meio aos piores perigos, estas controvérsias envenenaram a vida do Império Bizantino por mais de dois séculos e só se apaziguari­am quando a conquista árabe subtraísse a maioria dos heterodoxos ao domínio bizantino e, de seu ponto de vista, os libertasse da tirania da Igreja grega.

Eis as suas grandes etapas: em 431, o concílio de Éfeso con­denou o nestorianismo, cujos adeptos encontraram refúgio junto aos Sassânidas; em 451, o de Calcedônia, o monofisismo; mas, permanecendo todo-poderoso na Síria e no Egito, este exerceu durante mais de um século grande influência até mesmo nos meios gover­namentais de Constantinopla. Os imperadores hesitaram entre con­cessões aos monofisitas, para restabelecer a paz interna, mas que foram completamente vãs, provocando, além do mais, dificuldades com Roma, e uma política de união com Roma e de brutalidade para com os monofisitas. Justiniano, em particular, perseguiu-os, bem corno aos outros heréticos ou infiéis, arianos, pagãos, maniqueus, judeus. Em resposta, os monofisitas organizaram-se defini­tivamente em igrejas cismáticas e autônomas: copta, síria ou jaco­bita (segundo o nome de seu organizador, Jacó Baradeu), logo Armênia, cada uma com sua língua litúrgica e sua hierarquia própria. A partir daí, cada povo tinha sua Igreja "nacional".

Inutilmente, no século VII, Heráclio, em face dos terríveis perigos persa, avaro e árabe, pretendeu encontrar novas fórmulas; o simples fato de emanarem dele confirmava a vontade imperial de legislar em matéria de fé. Acabou por interditar a referência a uma ou duas naturezas, afirmando somente uma vontade (monotelismo), mas sem convencer muita gente. O único resultado desta tentativa foi, na época de seu sucessor Constante II, um trágico conflito com o pontificado, que alienou ao Imperador seus súditos italianos, e com um partido grego, chefiado pelo monge Máximo, o Confessor. A conquista árabe, arrebatando a Bizâncio seus súditos orientais, acabaria por inutilizar a tentativa monotelista e, na segunda meta­de do século, o governo bizantino renunciaria a este ensaio.

CROUZET, M. (org.) História Geral das Civilizações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994 vol 6.


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