O Cristianismo

Depois da morte de Juliano, Gregório de Nazianzo ainda o interpelava: "Por que serias tu apenas o único com direito a te inti­tulares heleno?" De fato, o Cristianismo também tirara proveito da própria filosofia helênica.

ORÍGENES
À medida que se ampliava o raio de sua difusão e pretendia satisfazer as exigências dos espíritos culti­vados, o Cristianismo necessitava de especificar e organizar sua teologia, isto é, na prática, fazê-la entrar nos quadros intelectuais já, há muito, erigidos.

A primeira tentativa séria neste sentido foi a da escola de Ale­xandria que, por um momento, no começo do século III, surgiu nesta cidade como concorrente do Museu. Após São Clemente, ela deveu seu prestígio e sua importância a Orígenes, que seguira o ensinamento de Amônia Sacas e conhecia bem o pensamento gre­go. Sua fé era grande e, partindo da exegese das Escrituras, esforça­va-se por dar à crença cristã uma expressão adaptada aos hábitos mentais dos filósofos. Tal empreendimento era cheio de perigos, devido à vizinhança da gnose e, também, à imprecisão e à juventu­de do dogma. Origenes teve de sustentar numerosas controvérsias. Foram as dificuldades disciplinares com seu bispo que o obriga­ram a passar os últimos 20 anos de sua vida fora do Egito, princi­palmente em Cesaréia da Palestina. A condenação doutrinal de algumas de suas fórmulas apenas ocorreu mais tarde, muito tempo depois de sua morte; mas ocorreu.

O PROBLEMA CRISTOLÓGICO
Estes esforços para definir, constituindo-a, a teologia cristã, não tardaram a evidenciar um tremendo problema dogmático: o das relações entre o Pai e o Filho, duas pessoas divinas unidas e, não obstante, distintas.

Papiros recentemente publicados fornecem a estenografia de uma vivíssima discussão de que participou Orígenes, sem dúvida na província da Arábia, em meados do século III. Este chegou a dizer, no ardor da controvérsia: "Confessamos haver dois Deuses." Tratava-se, para ele, de opor-se a idéias, variadas, aliás, que encontravam muito vivo eco na Ásia e que procuravam, antes de tudo, não romper a unidade divina. Para Sabélio, Deus era tudo e era único, figurando o Espírito Santo e Cristo como seus atributos; este último, em particular, era apenas a denominação dada à sua vinda e à sua ação na terra em favor da salvação dos homens. Embora condenado como heresia, o sabelianismo deixou alguns traços em certos espíritos no fim do século III e no início do IV. De resto muitas outras soluções tinham partidários; entre elas, unicamente a título de exemplo, basta mencionar o adocianismo, que concebia Jesus como um homem adotado por Deus e habitado pelo seu Ver­bo. Abria-se o debate cristológico, e muitos séculos passariam an­tes que se encerrasse.

Foi assim que, pouco antes da conquista do Oriente por Cons­tantino, Ário apresentou, no decorrer de controvérsias com seu bis­po, a quem acusava do sabelianismo, os principais elementos de uma doutrina, cujos traços em seguida especificou, já quando refugiado na Ásia, onde continuou a polêmica, que ficou ligada a seu nome: contaminado pela carne e tendo sofrido a morte, Cristo nada pode apresentar de divino, nem pode ter existido em toda eternida­de; foi criado por Deus, como intermediário entre este e a terra, de substância absolutamente distinta da divina. Este sacerdote de Ale­xandria recebera um ensinamento em Antióquia. Possuía conheci­mentos teológicos e filosóficos pouco vulgares; podemos discernir analogias entre sua solução e a que o platonismo dera ao problema das relações entre o logos e o demiurgo. De qualquer maneira, Ário empregava, na defesa e propagação de suas idéias, uma sutileza dialética e um estro ágil que o apresentavam também como um filho do helenismo.

O CONFLITO DO ARIANISMO
Quando, condenado no Egito, Ário foi reabilita­do por um Sínodo da Ásia Menor, nasceu então a grande querela do arianismo, que dilacerou a Igre­ja durante quase todo o século IV, tendo-se já dito que, em certos momentos, dilacerou até o Império, pois a imprudência de Con­stantino determinou a participação do poder temporal no conflito. Parece ao menos provável, aliás, que a intervenção do Estado, por mais contrária que fosse à sua tranqüilidade e aos seus interesses, no final de contas tenha salvado a unidade da Igreja, então dividida de maneira demasiado profunda para poder sobrepujar suas divi­sões exclusivamente com suas próprias forças. De caráter político ou administrativo, os incidentes que enriqueceram esta longa que­rela foram inumeráveis. Embora indubitavelmente menos numero­sos, os incidentes originados pela definição do dogma diante dos quais já não se pode recuar, foram tão complexos e especificamen­te teológicos que sairíamos dos nossos limites se pretendêssemos estudá-los aqui de maneira um pouco pormenorizada.

A princípio, a definição dada pelo símbolo de Nicéia, em 325, pareceu que poria tudo em ordem: o Filho, engendrado e não cria­do, é da mesma essência do Pai, consubstancial, homousios (de mesma substância). Mas a resistência dos arianos reabriu e prolon­gou a discussão, sobretudo quando tiveram o apoio do imperador Constâncio II. Estes chegaram a cindir-se em vários grupos. Uns, moderados, aceitavam definir Cristo como sendo de substância semelhante (homoiusios) a Deus, podendo o adjetivo grego homoios receber duas interpretações: de natureza análoga ou semelhante. Os outros, radicais extremistas - e Constâncio acabou por favore­cê-los -, negavam a semelhança e optavam pela inferioridade abso­luta de Cristo. Os concílios, reunidos em Sirmium, em 357 e 358, aceitaram sucessivamente, sob a pressão do Imperador, três fórmu­las mais ou menos radicais, ultrapassadas ainda por uma quarta, em 359. Talvez mesmo a ortodoxia não conseguisse predominar, não fosse a usurpação de Juliano, que lhe permitiu, ao menos, reto­mar o fôlego.

OUTRAS HERESIAS
Foi ao símbolo de Nicéia que retomou, no tocante ao essencial, o segundo concílio ecu­mênico, reunido em Constantinopla, em 381. Desta forma, tal sím­bolo tornou-se o credo da Igreja Católica. Nem por isso estava re­solvido o problema cristológico, a não ser parcialmente; surgiram outros de seus aspectos, e, bem depressa, o problema complicou-­se, com o de Maria, mãe de Deus. O mesmo concílio condenava também uma doutrina que negava a perfeição da humanidade de Cristo, inconciliável com a perfeição de sua divindade. Dos deba­tes assim travados deveriam surgir, no século V, o nestorianismo, destinado a uma duradoura sobrevivência, senão no Império, ao menos na Síria, Mesopotâmia e até no Tibete e na Mongólia, e de­pois o monofisismo, para citar apenas as principais heresias que continuaram a surgir. A conquista da precisão do dogma progre­diu, portanto, lentamente em meio a apaixonadas querelas.

Apaixonadas sobretudo no Oriente, onde se difundiam até entre o povo, suscitando por vezes, graças ã ação dos monges, agi­tação turbulentíssima. Ao contrário, o Ocidente permanecia muito mais calmo. Malgrado o papel desempenhado por certos papas, pelo bispo de Poitiers, Santo Hilário, e pelo de Milão, Santo Ambró­sio, no conflito do arianismo, é patente que o verdadeiro sentido deste conflito escapava à quase totalidade dos fiéis e mesmo à maioria do episcopado; faltavam-lhes os séculos de sutileza filosófica cujos frutos se encontravam no espírito dos orientais.

Poucas heresias nasceram, então, no Ocidente. Duas delas enxertaram-se em questões de disciplina e moral: o donatismo, re­sultante de opiniões divergentes acerca da conduta a manter peran­te os que fraquejaram durante a perseguição e rapidamente dege­nerado em conflito de caráter social; e, depois, o priscilianismo, pregando um misticismo ascético. Apenas mais tarde, no começo do século V, iniciou-se a discussão de um problema doutrinal: o do pecado original e da graça, a cujo respeito Santo Agostinho comba­teu tão vigorosamente o pelagianismo, que obteve a condenação deste. É pouco, em comparação com os grandes debates cristológi­cos conduzidos com tão áspero ardor no Oriente. Este, de resto, por apaixonado que fosse pelas questões de dogma, conhecia ao mesmo tempo uma floração, muito mais abundante do que no Oci­dente, de seitas que praticavam vida quotidiana mais ou menos rigorista; a força de sua seiva religiosa manifestava-se no Cristianis­mo assim como outrora o fizera no paganismo.

O MANIQUEÍSMO
A enumeração destas seitas não seria de molde a despertar o interesse: nenhuma teve grande repercussão. Ao contrário, a difusão do maniqueísmo foi bastante ampla. Mas não era de origem cristã e, se os imperadores do século IV não deixaram de inscrevê-lo entre as heresias condenadas pelos editos, era porque ele recrutava adeptos também entre os cristãos.

O maniqueísmo nasceu na Babilônia, por volta de 240, elabo­rado por Mani - Maniqueu é a deformação do apelativo siríaco Mani, o Vivente -, um súdito do rei sassânida que o supliciou em 277 e teria mandado pendurar à porta de uma cidade o seu cadáver empalhado. A doutrina tomara de empréstimo ao masdeísmo irani­ano a idéia de um dualismo fundamental, a oposição entre o bem e o mal, associando-lhe, porém, elementos de procedência budista, cristã e gnóstica. Predizia o fim do mundo e, nesta perspectiva, pregava a abstenção do serviço público e a castidade mediante a recusa ao matrimônio. Um clero hierarquizado, com eleitos que fazem o bem, sacerdotes, bispos, apóstolos e um chefe supremo, enquadrava os grupos de fiéis.

Bem cedo, antes mesmo da execução de Mani, a sua propa­ganda excedeu os limites do reino persa. De um lado, em direção à Índia e à Ásia Central, o maniqueísmo tornar-se-á religião de Esta­do no Turquestão no século VIII. De outro, graças a intermediários árabes, para o Egito onde, no momento da expedição de Dioclecia­no, obtivera real êxito. Estendeu-se, em seguida, mais longe no Im­pério, chegando à Ásia Menor, à África, Espanha e Itália, mas sem­pre restrito a pequenos círculos de iniciados. Após o edito de Dio­cleciano, os imperadores cristãos ordenaram diversas vezes sua perseguição. Inicialmente, sem qualquer resultado; Santo Agosti­nho, antes de converter-se, foi maniqueu na África e na Itália com toda a tranqüilidade. A doutrina, porém, tornou-se mais eficaz a partir de meados do século V; talvez o maniqueísmo tenha sobrevi­vido de tal modo ao Império, que apresentou como sua herdeira a heresia dos cátaros albigenses.

ADAPTAÇÕES DO CULTO E AS TRANSFORMAÇÕES MORAIS
Apesar de agitado por tantas perturbações, o Cristianismo, como vimos, ganhava sempre novos fiéis, cujo aflu­xo, sem dúvida, teve conseqüências.

Fecharíamos os olhos à evidência se quiséssemos negar as sobrevivências pagãs no culto cristão. Certamente, convém não exagerá-las nem, sobretudo, julgá-las intencionais. É certo que os Bispos, individualmente e em concílios, lutaram da melhor forma possível, estigmatizando todos os disfarces e reaparecimentos. São Martinho, intransigentíssimo, não era homem que tolerasse ídolos e superstições. As concessões ou as transferências a que teve de ceder apenas mostram ainda melhor a força dos hábitos que não puderam ser abandonados pelos novos conversos.

Estes conseguiram impor certas festas. O ritual das Satur­nais influenciou o carnaval, celebrado na data das Lupercais. Cul­tos pagãos festejavam o nascimento de seu deus: tornou-se neces­sário celebrar também o nascimento do Cristo. Houve hesitações quanto à data. Escolheu-se inicialmente o 6 de janeiro, data em que se festejava no Egito o nascimento de uma criança concebida, também, por uma virgem. Depois, no século IV, esta data deixou de ser a do Natal e tornou-se a da Epifania, pois os romanos impuseram a toda a cristandade o 25 de dezembro; este dia, desde o século I a. c., correspondia para eles ao solstício do inverno e quiseram consagrar a Cristo a festa que então celebrava o nasci­mento do Sol.

A fé popular impôs a manutenção de lugares sagrados, inclu­indo fontes, clareiras, etc. Impôs os anjos, as imagens, os amuletos, o desenvolvimento do culto dos mártires e de suas relíquias.

Enfim, dirigindo-se agora para as massas, o culto de uma reli­gião triunfante não mais podia celebrar-se como o de pequenos grupos coagidos ao segredo pela perseguição. Tal fato acarretou uma separação mais nítida entre os fiéis e o clero. Acima de tudo, este se cercou da pompa que lhe permitia a riqueza da Igreja. Mul­tiplicou, aumentou e embelezou as basílicas. Adotou uma liturgia mais minuciosa. Associou à prece, às leituras em voz alta e à comu­nhão com cerimonial exterior de gestos, cantos e música capazes de sustentar e exaltar todos os fervores, tanto entre as elites como entre os simples.

Assim, pelo brilho de suas moradas divinas, pela nobreza de seus ritos e pela magnificência de suas festas, o Cristianismo pro­porcionava aos seus crentes tanto ou mais do que o paganismo. E, se alguns deuses haviam acenado aos homens com promessas de salvação análogas, o seu ensinamento continha ao menos um ele­mento novo: a caridade; para ele, a fé nada era sem as ações e, seguindo seu apelo, como já o demonstramos, estas se multiplica­ram a fim de tentar um alívio das misérias humanas. "Que nossos sacerdotes provem seu amor ao próximo colocando de boa vonta­de o pouco que possuem à disposição de todos os indigentes." Mediante esta ordem ao sacerdócio pagão, Juliano inovava na me­dida em que imitava e prestava uma homenagem implícita à supe­rioridade da Igreja por ele abandonada. Acrescentemos a isto, leva­da até à exaltação da virgindade, senão à condenação do casamen­to, a reprovação que daqui por diante anatematizava as licenças sexuais. Acrescentemos, igualmente, após o malogro de sua total interdição, tentada por Constantino, a progressiva diminuição dos combates de gladiadores. A manutenção da escravatura não destrói a necessária conclusão de que uma revolução moral acompanhou a revolução religiosa.

CROUZET, M. (org.) História Geral das Civilizações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994 vol 5.


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