Já tivemos constantemente de atravessar as fronteiras sassânidas. É impossível, com efeito, no dealbar da ldade Média, restringir ao Estado bizantino um estudo do Oriente Próximo. Seu rival e, ao mesmo tempo, seu êmulo, o Império que, desde o século III, é regido pela dinastia sassânida, sustenta, em muitos sentidos, uma comparação com ele. Engloba, além do Irã até as portas da Índia, de um lado a maior parte da Mesopotâmia e da Armênia e, de outro, a Sogdiana, a Bactriana e o conjunto das províncias escalonadas entre o Korezm ou Kwarizm (Mar de Aral) e as passagens do atual Turquestão Chinês. Falar de um Estado "nacional" seria exagero: mesopotâmicos ou Armênios são tão iranianos como bizantinos. Sem dúvida alguma, entretanto, há em relação aos regimes anteriores, uma forte coesão da maioria iraniana ou, ao menos, de sua aristocracia.
O Estado sassânida funda-se no equilíbrio mais ou menos estável de três castas dominantes: uma poderosa e antiga nobreza, territorial e senhorial; um clero oficial, hierarquizado e rico; uma administração burocrática e centralizada, tudo isto encimado por prestigiosa monarquia. Abaixo, trabalha a massa camponesa, enquadrada por uma viva classe média de proprietários rurais; nas cidades, que progridem e, em primeiro lugar, na capital, Ctesifonte sobre o Tigre, vive um povo de ativos artesãos. Tais castas apresentam quase a rigidez, quando não a multiplicidade, das da Índia, e a ligação hereditária da condição paterna, que o Estado tenta impor em Roma, inscreve-se aqui na própria estrutura da sociedade. Não sem esforço, sobretudo quando as fronteiras setentrionais encontram-se, como em Bizâncio, ameaça das pelos "bárbaros", a monarquia mantém sua autoridade sobre a alta aristocracia; a esta opõe-se também o mundo camponês, e é possível que a reforma fiscal de Cavad e de Anuchirvan (por volta de 500) visasse, além da eficácia, certa justiça na distribuição do imposto fundiário. Não resta dúvida, também, que a política belicosa dos sassânidas tentasse, entre outras coisas, represar a indisciplina e a rapacidade dos grandes nobres.
Sobre o exército, cuja parte essencial é por estes constituída, paira a lembrança do imperialismo aquemênida; contingentes de vassalos, armênios entre outros, constituem o restante. Como em toda parte, a infantaria, recrutada no povo miúdo, perdeu seu antigo papel e, correlativamente, seu alcance social.
O soberano sassânida, "rei dos reis", embora participe ativamente da direção da guerra e do governo, é um personagem prestigioso, cercado de luxo sensacional, quase sagrado e, ao contrário do Basileus, soberano hereditário. Esplendor, justiça, arte de governar, bravura, cultura, constituem a imagem dos Baram Gur e dos Cosroe Anuchirvan, tal como a transmitiu, idealizada, a memória popular, como exemplo para as gerações futuras, bem depois do fim da dinastia, e que encontraremos, por volta do ano mil, na epopéia nacional de Firdaúsi, o Livro dos Reis. Sob o Grande Frahma dar, protótipo do vizir muçulmano, a administração compartilha dessa reputação: o pessoal burocrático, orgulhoso de suas regras minuciosas e de seu traquejo prático, constitui também uma verdadeira casta que, sob o Califado abássida, reconquistaria o antigo poder.
Ao contrário do que acontecera no regime parto, a Igreja masdeana ou zoroastriana tornou-se igreja oficial, intimamente ligada à monarquia; ninguém compreende que uma possa existir sem a outra. Igreja fortemente hierarquizada, tendo à sua frente o Mobad dos Mobads ou o Grande Mago e, por toda parte, os Templos do Fogo. No decorrer dos séculos V e VI, elabora um novo alfabeto a fim de conservar, frente às outras religiões dotadas de Escrituras, a imensa "suma" do Avesta. Todavia, a despeito das perseguições que, por momentos, como acontece também no Império "Romano", suscita contra os que não se reconhecem seus fiéis, ela não representa uma potência inconteste. Isto deriva dos próprios laços que a prendem ao regime e à aristocracia; de que, como Igreja "nacional", nunca procurou recrutar outros elementos, além dos iranianos; e da sua doutrina, apesar de todos os elementos de "ciência" e de direito, permanecer, quando comparada com as religiões universalistas que se propagam ao seu lado, confusa, esclerosada e incapaz de responder aos novos problemas que o homem da época se propõe. Por isso, o século III testemunhara, no solo iraniano, o surto de uma religião nova, destinada, apesar das perseguições, a obter alguma notoriedade: o maniqueísmo, mais popular, mais centralizado no problema da salvação, e que pretende ser a síntese de todas as religiões e, portanto, expansionista. No século V, há maniqueus não só no Império sassânida, mas também na África do Norte, no Egito, em Roma, em Constantinopla, onde não conseguem manter-se - os Albigenses aparecem bem mais tarde - e principalmente na Ásia Central; lá, o maniqueísmo, adotado no século VIII como religião quase oficial de um reino turco, dura até o triunfo do Islã, em pleno século XIII.
Encontram-se ainda budistas, nas províncias do Norte e do Noroeste, acessíveis à cultura hindu; e, entre os não-iranianos das províncias ocidentais, expande-se o Cristianismo: o Tur-Abdin, a noroeste de Mossul, é uma grande região de mosteiros monofisitas. São principalmente nestorianos, cuja organização a monarquia sassânida permitiu, devido à sua ruptura com o governo bizantino, com um patriarca em Ctesifonte e com escolas cujas atividades já assinalamos. Seu proselitismo é intenso; mas, constrangidos em domínio masdeano e, mais ainda, em território bizantino, buscam seu terreno preferencial na Ásia Central, no interior e para além das fronteiras sassânidas; seu papel seria aí considerável, mesmo entre os turcos e ainda mais longe, durante quase toda a Idade Média. Enfim, os judeus também contam no Estado sassânida, como vimos a propósito do Talmude da Babilônia.
No próprio Irã, uma última pregação religiosa manifestar-se-ia no fim do século V, pregação que, muito mais do que as precedentes, constitui nítido protesto social. A principal originalidade de Masdak quando comparado ao maniqueísmo, do qual deriva doutrinariamente, é, com efeito, a reivindicação, tão amiúde formulada na Idade Média, de uma comunhão de bens; talvez também ao menos pretendem-no os seus adversários - de uma comunhão das mulheres, certamente não por relaxamento moral, porque os masdakistas, são, ao contrário, "puritanos", mas por oposição à concentração das mulheres nos haréns dos grandes e ao orgulho de casta abrigado por três das barreiras genealógicas. O Rei Cavad, momentaneamente seduzido por Masdak, em que via possível aliado contra a aristocracia, acabou por assustar-se e mandou supliciá-lo; mas encontraremos a influência subterrânea do masdakismo nos movimentos religiosos e sociais do período muçulmano.
LITERATURA E ARTE SASSÂNIDA
A literatura religiosa não resume toda a cultura dos iranianos. Numa encruzilhada tanto do espírito como do comércio o que não exclui a possibilidade de criação original -, tradições nacionais, influências hindus e greco-siríacas, por vezes, mesmo, "turanianas", combinam-se na sua literatura e na sua arte, tanto quanto nos permitem julgar os poucos fragmentos subtraídos às tormentas dos séculos. Historiografia oficial, apólogos em prosa ou em verso (por vezes de origem hindu), narrativas de imaginação épica ou sentimental dividiam os gostos da aristocracia, da pequena nobreza ou dos burocratas, para quem haviam sido compostos. Através de traduções ou adaptações em árabe, em persa da época islâmica, por vezes em armênio, grego, georgiano ou siríaco, chegaram-nos, mesmo, um resumo semilendário da história sassânida e obras como Barlaam e Josafá, transposição da vida de Buda, ou Kalila e Dímna, coletânea de apólogos, ambas traduzidas do hindu pelo médico nestoriano Burzoé. Durante séculos, a poesia cantou os amores de Cosrau II e de Chirin. Na falta de composições, as descrições anedóticas mostram-nos o papel de músicos como Sarcach e Barbad em que se inspirariam, mais tarde, os criadores da chamada música "árabe". E aos divertimentos dos grandes, o xadrez (do persa xá = rei) contribuía com um jogo que as cruzadas difundiriam, meio milênio mais tarde, através de toda a cristandade. Na ciência também, ao lado da influência grega, a contribuição hindu, na Medicina, na Astronomia e na Matemática, era sensível. Não o era menos na arte, restrita, entretanto, às províncias orientais.
No Irã Ocidental, em troca, desenvolvia-se uma arte mais especificamente sassânida, que combina velhas tradições aquemênidas com as inspirações estrangeiras da época helenística e parta. O que dela se encontrou revela-nos, além das torres de fogo, dos palácios com vastas salas abobadadas (iwans), baixos-relevos, aplicados diretamente numa parede rochosa, rememorando um episódio glorioso da vida de um príncipe, mosaicos, uma decoração de painéis esmaltados, objetos de metal e cristal de rocha, entalhes, tecidos de seda onde o artista reproduz à sua maneira os mesmos temas dos escultores nos baixos-relevos e dos poetas nas suas obras.
A influência desta arte foi grande em todo o Oriente Próximo, encontrando-se mesmo seus traços, que os espectadores não compreendiam, até em certas igrejas e nalguns objetos de arte da Europa Ocidental, onde chegavam os artistas do Oriente.
Na Ásia Central, no Irã Ocidental e na Mesopotâmia, os Sassânidas fundaram cidades, todas prósperas. O comércio contribuía para tanto e, como vimos, arrebatou-se ao Egito o trânsito do Oceano Índico para o Mediterrâneo, sem mencionar as caravanas do comércio com a China. A circunstância de ser a moeda sassânida unicamente de prata, e não de ouro, deve-se à natureza dos recursos mineiros e não se presta a qualquer conclusão quanto ao equilíbrio desse comércio. Mas a importância do trânsito da Ásia longínqua para o Mediterrâneo acarretava aguda oposição entre Bizâncio e o Irã, procurando o primeiro libertar-se do monopólio do segundo e este, conquistar, com os portos mediterrânicos, o meio definitivo de anular tais tentativas.
CROUZET, M. (org.) História Geral das Civilizações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994 (vol 6)
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