Os pensadores dos "tempos sombrios"

Aqueles a quem a espada poupa no exterior são devastados pela fome no interior.
(São Jerônimo, século V.)

O pensamento medieval não pode ser dissociado das condições históricas em que floresceu. Após o desaparecimento d; Império Romano do Ocidente, a Igreja, enquanto prati­camente única instituição que logrou manter-se estruturada, tomou a si a responsabilidade pela preservação e difusão da cultura.

Já desde o período patrístico, a intelectualidade cristã alimentava-se, primordialmente, de textos. Em primeiro lu­gar, dos textos sagrados, uma vez que o cristianismo é uma religião revelada. Em seguida, dos textos dos Santos Padres, escritores cristãos dos primeiros séculos, cuja autoridade era unanimemente aceita. Finalmente, dos textos antigos progres­sivamente cristianizados.

Esses diversos textos continham um saber que deveria ser apropriado e transmitido, como ensinara Santo Agosti­nho, e compunham o principal legado que os pensadores me­dievais puderam receber do mundo antigo, transformando-se os mosteiros em seus depositários.

É certo que o monaquismo latino é uma importação re­lativamente tardia, se comparado ao seu congênere oriental, já organizado no século IV. Entretanto, ao passo que no Oriente o mosteiro permaneceu como um ascetério, procu­rando isolar-se do mundo e de tudo o que a ele se relacionas­se - inclusive a cultura -, no Ocidente, sobretudo a partir da difusão da regra de São Bento (±525), o monastério to­mou um caráter erudito e uma espécie de reflexo imediato ligava o estado de monge ao estudo das letras.

Era normal nos mosteiros a existência de uma bibliote­ca, onde certamente poderiam ser encontradas, entre outras, obras de Santo Agostinho, o mais reputado entre os autores patrísticos.

Numa época em que os livros eram tão raros, parece na­tural que a imensa literatura patrística e os autores profanos fossem conhecidos sobretudo através de fragmentos escolhi­dos. Este é, aliás, um dos aspectos característicos da cultura medieval: na maior parte das vezes só se conhecia a Antigui­dade por meio das recolhas de citações e, no tocante à teolo­gia, esses extratos dos Santos Padres agrupavam-se, em geral, segundo a ordem dos livros da Bíblia.

No mosteiro, refúgio propício ao trabalho do espírito, o monge filosofava no silêncio da cela ou do claustro, sob a forma de monólogo ou solilóquio, consultando - como recomendara Agostinho - o Mestre Interior, buscando a ver­dade mediante um silencioso discorrer consigo mesmo.

Os textos eram invocados para servir a uma verdade que eles não poderiam esgotar, mas para o esclarecimento do qual poderiam contribuir. Eram um caminho para a sabedoria e, embora seus conteúdos devessem ser superados, permaneciam como um preliminar indispensável à reflexão.

Não se limitava porém, a atividade intelectual, a copiar e venerar os textos; a Idade Média não foi uma época de es­terilidade na produção, antes procurou enriquecer a herança recebida e adaptá-la às suas necessidades e preocupações. As traduções e os comentários foram, sem dúvida, a grande mar­ca desse período.

O pensamento de Santo Agostinho seria, como já ressaltado, o paradigma da filosofia medieval até o século XIII. Trabalhando porém sobre essa tradição, outros pensadores contribuíram para alargar o campo de conhecimento, e se os resultados podem parecer tímidos aos nossos olhos, isso se leve muito mais às imensas limitações que um mundo ainda não reestruturado lhes colocava que à fragilidade de seus es­forços.

“QUEM ACREDITARIA QUE ROMA VIESSE A CAIR...”
Havia uma instabilidade geral, particularmente nos primeiros séculos do medievo, marcados por constantes migra­;ões e invasões. A vida medieval, caracteristicamente insegura e economicamente difícil, tornava o homem uma cria­:ura voltada sobretudo para suas dificuldades e necessidades Cotidianas, encurralado entre a luta pela sobrevivência e as esperanças de salvação eterna que lhe garantiria ao menos uma vida ultraterrena segura e feliz. Nada disso estimulava a pesquisa e a reflexão: buscava-se principalmente conheci­mentos práticos, que pudessem contribuir para a subsistên­cia e para a ordenação de uma sociedade em crise, onde so­brava pouco tempo para preocupações intelectuais. Rufino, monge italiano do século V, nos dá um pungente depoimen­to das vicissitudes que, mesmo antes da queda final do Império, tornavam quase impossível o estudo:

Os tempos são tão confusos para nós! Pode-se pensar em es­crever sob os golpes do inimigo, quando se vê serem devasta­dos, diante de nós, cidades e campos, quando é preciso fugir através dos perigos do mar e que o próprio exílio não vos co­loca ao abrigo de toda a apreensão?

Durante muito tempo o Ocidente viveria sob o signo do medo: medo da fome, da destruição, da morte trazida pelo inimigo ou pelos animais ferozes que vagueavam pelos luga­res desertos e invadiam por vezes os campos cultivados; me­do das pestes, dos elementos naturais que arruinavam as co­lheitas, dos saques e violações dos "bárbaros"; e, por fim, um medo sobrenatural da noite, da tentação e do pecado que colocaria a perder a única certeza do homem cristão medie­val - a de que tinha uma chance de encontrar, no reino de Deus, uma vida sem medo.

A observação não recebia, portanto, nenhum encoraja­mento e mesmo nos mosteiros, onde se gozava de uma rela­tiva segurança e tranqüilidade, a Natureza parecia muito mais fonte de desgraças que de sabedoria. O conhecimento pree­xistia na alma humana, mas necessitava de iluminação divi­na para tornar-se inteligível para o homem, como afirmara Agostinho, o que recomendava muito mais a contemplação, o diálogo mudo com o Mestre Interior. As fontes de inspira­ção estavam nos textos, principalmente nos sagrados, mas também nos profanos e pagãos poderia ser encontrada a senda que levaria ao conhecimento. Como porém apropriar -se desse saber? Grande parte dos escritos antigos estava já perdida, destruída pela devastação que fez ruir o próprio Im­pério. Do que se conseguiu salvar, muitos estavam incom­pletos, a maioria era escrita em grego -língua já quase des­conhecida - e mesmo as traduções latinas apresentavam obs­táculos: algumas, como a do Timeu de Platão (feita por Cal­cídio no século IV), eram apenas parciais e, além disso, a pró­pria língua latina caía num progressivo esquecimento, o que arrancou de Gregório de Tours (538-593) este lamento:

Desgraçado seja o nosso tempo, pois o estudo das letras pe­receu entre nós e já não se encontra ninguém que possa tra­duzir por escrito os acontecimentos presentes.

Muitos porém perseveraram, traduzindo, comentando, especulando ou meramente multiplicando com as pacientes ,pias as poucas obras disponíveis. São acusados de falta de originalidade, de mostrarem um pensamento estéril. Mas, o que poderia ser mais original que debruçar-se atentamente sobre esses escritos, vertendo-os de uma língua desconheci­da para outra que já poucos compreendiam, acrescentando­-lhes comentários que atualizavam suas problemáticas, espe­culando sobre as formas de pensar, sobre os tipos de ciênci­as existentes, sobre a criação do mundo, enquanto ao seu redor, esse mesmo mundo parecia chegar ao fim?

Vários desses trabalhos foram sucessivamente perdidos, mas alguns exemplos do que deles nos chegaram são suficien­tes para avaliar a grandeza da tarefa a que esses homens se propuseram e a importância vital que tiveram no pensamento cristão ocidental.

OS MONGES “ARQUEÓLOGOS”
Considerado por muitos "o último romano e o primei­ro escolástico", Boécio (470-535) não foi um homem da Igre­ja. Contudo, foi considerado por seus pósteros como um cristão, tornando-se um mártir da fé por ter sido executado sob acusação de magia. Sua obra inclui traduções e comentários a obras lógicas clássicas e alguns opúsculos de teologia. Foi através dele que os medievais conheceram, ainda que com certos traços neoplatônicos, os tratados lógicos de Aristóteles que constituíram, durante muito tempo, o único conhecimento que se teve dos escritos do grande filósofo antigo, já que sua física, metafísica e ética só seriam redes cobertas a partir de meados do século XII.

Além de introduzir na cultura medieval elementos do pensamento grego, Boécio proporcionou, através de seus co­mentários, um modelo de explicação precisa e minuciosa, acompanhada de largas digressões, que seria amplamente di­fundido no ensino medievo.

De suas obras pessoais, a mais apreciada e comentada foi a Consolação da filosofia, escrita na prisão, e uma das principais fontes do platonismo medieval. Algumas de suas definições, como a de eternidade entendida enquanto "pos­se inteiramente simultânea e perfeita de uma vida interminá­vel" ou a de beatitude como "estado que deve sua perfeição à reunião de todos os bens", atravessariam todo o período.

Boécio influenciou sobremaneira os pensadores poste­riores, quer como exemplo, quer como incitação à investiga­ção; serviu de veículo à lógica aristotélica e à parte da cos­mologia e teologia platônicas; elaborou uma significativa clas­sificação das ciências e ainda legou a definição da filosofia como amor da sabedoria.

Ao lado de Boécio, Cassiodoro (477-570) pode ser con­siderado um dos fundadores do pensamento medieval pro­priamente dito. Querendo também dar a conhecer a seus con­temporâneos a produção do pensamento grego, fundou na Calábria o monastério de Vivarium (555), onde foram pro­duzidas várias cópias de obras clássicas, que se difundiram pelo Ocidente. Elaborou um programa de estudos para seus monges, sistematizado na obra Instituições das letras eclesiás­ticas e profanas, espécie de enciclopédia das artes liberais (gra­mática, retórica e dialética - trivium; aritmética, geometria, astronomia e música - quadrivium) utilizada como manual nas escolas monásticas. Não se afastou, porém, do ideal agos­tiniano, colocando a cultura a serviço do conhecimento da Escritura.

O seu projeto de transmitir ao Ocidente o vigor original do pensamento helenístico frustrou-se, pois o recurso às fon­tes gregas era quase impossível, uma vez que o conhecimen­to dessa língua declinara muito ainda no Império e, em seu tempo, as traduções disponíveis, escassas, pouco traziam das questões científicas.

Se esses pensadores, que pouco se tinham distanciado do mundo antigo, guardavam ainda certos traços do perío­do anterior, Isidoro de Sevilha (560-636) pertence decidida­mente à cultura medieval. Salientou-se como enciclopedista, teólogo e historiador, tendo escrito vários tratados nos cam­pos da lingüística, ciência natural, história e cosmologia, além de ter organizado a Igreja na Espanha.

Dentre suas diversas obras, as Sentenças - recompila­ção de textos patrísticos - foi de capital importância no en­sino medieval. Quanto à ciência profana, suas Etimologias, uma espécie de síntese enciclopédica, oferecia uma série de definições, agrupadas em 20 livros, que resumiam um notá­vel acervo dos conhecimentos do seu tempo: artes liberais (tri­vium e quadrivium), teologia, direito, história, ciências so­ciais e naturais e técnica.

O seu método baseava-se na concepção da etimologia, não no sentido com que atualmente a entendemos, mas en­quanto etimologia essencial, que permitia, a partir da estru­tura das palavras, chegar-se à essência das coisas. Assim, di­zer que a palavra homem deriva de humus (terra) significa­ria dizer que o homem fora extraído da terra.

Sua obra era obrigatória nas bibliotecas medievais e suas etimologias se transmitiriam até o final do século XIV.

Com a implantação da cultura latina na Bretanha, atra­vés da iniciativa do Papa Gregório Magno em 596, a Ingla­terra tornou-se importante centro de cultura. Dentre os di­versos pensadores aí surgidos, Beda (673-735) foi o que fun­dou tradição mais fecunda.

Além dos estudos exegéticos, Beda dedicou-se ao estu­do da avaliação do tempo e das marés, do cálculo de datas e calendários, assuntos vitais para as comunidades monásti­cas. Pode-se perceber já nesse pensador a origem do caracte­rístico interesse dos autores ingleses pelas ciências da Natu­reza. Beda produziu também uma importante História ecle­siástica do povo inglês, e atribui-se ainda a ele a utilização do nascimento de Cristo como marco inicial da nossa era.

INÁCIO, I. & deLUCA, T. O pensamento medieval. São Paulo: Ática, 1994.


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