Compreender para crer, crê para compreender
Aurelius Augustinus nasceu em Tagaste, Numídia (atual Argélia), província romana da África do Norte, em 13 de novembro de 354. Fez seus primeiros estudos em Madaura e Tagaste, e os superiores em Cartago, tornando-se gramático e retor.
Despertou para a filosofia aos 18 anos, ao ler Hortensius, de Cícero, obra hoje perdida; seu desejo de encontrar uma doutrina a um só tempo religiosa e racional aproximou-o do maniqueísmo, corrente que abraçou por nove anos. Posteriormente, desiludindo-se, atravessou uma fase inquieta e breve, marcada pela descrença.
Embora não tenha estudado nos melhores centros da época (Atenas e Alexandria), conseguiu sucesso na carreira de professor de retórica, lecionando em sua cidade de origem, em Cartago, Roma e Milão, onde atingiu o ápice da carreira por volta de 384, ocupando o cargo de orador oficial da Corte. Sua passagem por esta cidade mudaria drasticamente o rumo de sua vida.
Até então, Agostinho mantivera-se distante do cristianismo apesar dos constantes apelos de sua mãe, crente fervorosa. O caminho para a conversão teve início quando, levado por uma curiosidade literária, Agostinho deixou-se seduzir pelo neoplatonismo cristão que os sermões de Ambrósio, bispo de Milão, lhe revelaram.
Do contato com essas novas idéias produziu-se em Agostinho uma intensa e profunda luta espiritual, fruto do conflito entre os valores cristãos e a vida voltada para os prazeres do mundo que até então levara. A forma como encontrou a resposta para suas inquietações foi determinante para a posterior construção de sua imensa obra.
Em suas Confissões, ele nos conta que, tomado de grande angústia e depressão, retirara-se para o jardim de sua residência, clamando a Deus que lhe mostrasse o verdadeiro caminho para a salvação. Eis que de súbito ouviu um canto infantil que repetia: "Toma e lê; toma e lê". Vendo nisso um augúrio divino, tomou o livro das Epístolas de São Paulo e, abrindo-o ao acaso, deparou-se com a seguinte passagem:
Não caminheis em glutonarias e embriaguês, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites.
Agostinho não quis ler mais; penetrou-lhe o coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida se dissiparam. Pouco depois, em 387, recebeu o batismo. Voltando para a África no ano seguinte, fundou uma comunidade monástica da qual, em 391, foi afastado para exercer o cargo de presbítero de Hipona, cidade da qual se tornaria bispo.
As múltiplas tarefas que a vida eclesiástica lhe impunha impediam-no de dedicar-se com o afinco desejado aos estudos mas, em contrapartida, propiciavam-lhe um contato estreito com o povo e a religião popular. Apesar da escassez de tempo, deixou uma obra muito vasta, composta de mais de 200 cartas, cerca de 500 sermões conservados e de 300 tratados. Entre seus escritos mais lidos durante a Idade Média,
merecem especial destaque as Confissões (397-8), que não são uma simples biografia mas uma meditação sobre o sentido da vida; e sua Cidade de Deus (413), que não é um tratado de política cristã mas uma meditação sobre a filosofia da história.
Ao tornar-se cristão, o antigo retor não tencionava renunciar à herança cultural da qual até então se servira; impunha-se porém cristianizá-la, de acordo com a tradição patrística. A esta tarefa entregou-se Agostinho, invocando o Livro do Êxodo onde os hebreus, antes de deixarem o Egito, receberam de Deus a ordem de se apropriarem dos objetos de ouro e prata e os levarem consigo. Assim deveria pois fazer o pensador cristão: subtrair dos autores antigos, para integrar na sabedoria cristã, todas as verdades de que a filosofia pagã fosse possuidora.
Os filósofos que Agostinho desapossou foram principalmente os neoplatônicos; como não lesse grego -língua mais culta da época - teve que ater-se às traduções latinas de certas obras de Plotino e de Porfírio feitas por Mário Victorino. Também em tradução latina, leu as Categorias, de Aristóteles, mas não teve acesso à indispensável introdução de Porfírio.
Fazendo uma leitura cristã desses filósofos, Agostinho coroou os esforços intentados pelos Santos Padres. Ao morrer (430), após ter-se dedicado por mais de 40 anos à Igreja, deixou uma síntese filosófica que predominaria durante séculos no pensamento ocidental.
DO TRABALHO DIVINO E DAS COISAS CRIADAS
Abraçando a tradição judaico-cristã, Agostinho afirmava que o mundo fora criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido, afastava-se ao mesmo tempo do emanacionismo neoplatônico e da tradição clássica onde a criação ou ordenação divina operou-se sobre uma matéria informe preexistente em estado caótico.
Para o bispo de Hipona, a verdade sobre a criação é revelada no Gênesis: "No princípio, Deus criou o céu e a terra". O princípio deve ser entendido como o Verbo divino princípio de todas as coisas. O céu seria a matéria espiritual da qual são feitos os anjos e a terra, matéria bruta cujo ser consiste na mutabilidade à qual Deus dá forma por meio das idéias contidas em sua inteligência. Portanto, todas as coisas feitas de matéria (espiritual e bruta) devem o que são ao ato divino, expressão de sua vontade e bondade, que lhes confere uma existência estável.
O mundo fora, assim, criado do nada e todo de uma só vez. Algumas criaturas apareceram logo na sua forma perfeita (o firmamento, os astros, a alma dos homens e os anjos) enquanto outras surgiram sob forma incompleta mas dotadas de "razões seminais" e destinadas a se desenvolverem através dos tempos. Dessa forma, por evolução, se originaram: da matéria bruta todos os animais e até o corpo do primeiro homem. Essa visão implica que todo o universo é dotado de capacidade evolutiva ainda que essa evolução, em virtude das "razões seminais", não apresente um aspecto inovador propriamente dito; ao criar o mundo "de uma só vez", Deus criava também o seu futuro.
Ainda baseando-se na revelação, Agostinho afirmava que a criação se deu fora do tempo; mundo e tempo "começaram" uma vez que Deus, como imutável, não poderia estar submetido à mudança implícita na preexistência do tempo:
Criastes todos os tempos e existis antes de todos os tempos ( ... ) Não houve tempo nenhum em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo. (Confissões, XI.)
O Santo Doutor apresenta uma visão hierárquica do mundo, onde a noção de ordem ocupa lugar de destaque. O Universo é uma sucessão de realidades escalonadas; a ordem
cósmica tem uma totalidade com duplo sentido: não há nada fora do todo (mundo) e no interior do todo nada escapa à ordem. Deus, ordenador do universo, governa, através de sua onipotência, tudo o que os homens possuem, por mais vil que seja. Deus porém está acima de todos os seres e acima de sua própria ordem, sendo, nessa medida, transcendente como já afirmara Plotino.
Dentro dessa ordem hierárquica, existem três funções de excelência crescente que correspondem a três gêneros de criaturas: o ser dos corpos inanimados (p. ex.: pedra); o viver dos seres vivos sem razão (p. ex.: animais irracionais); o compreender das criaturas espirituais como o homem. Não se pode, contudo, possuir uma dessas funções sem reunir as precedentes mas a posse de uma não acarreta obrigatoriamente a das seguintes, donde uma gradação ascendente das criaturas:
Dessas três coisas: o ser, a vida, a inteligência, a pedra tem o ser, o animal a vida, mas sem que a pedra tenha, é claro, a vida, nem o animal a inteligência; mas quem tem a inteligência tem também, sem dúvida nenhuma, o ser e a vida. (Do livre arbítrio.)
Assim como Platão, via também no homem um microcosmo onde reproduz-se toda a hierarquia do universo: o homem é composto de espírito, alma e corpo, sendo uma alma racional servida por um corpo terrestre. Este, no entanto, contrariamente à afirmação platônica, não representa a prisão ou túmulo da alma. É essencial porém observar que todo corpo é inferior a qualquer alma, pois a ordem é ontológica e não moral, fundando-se na natureza e não no mérito.
Enquanto criatura privilegiada, a alma de que o homem é dotado desdobra-se em três faculdades que correspondem às três pessoas da Santíssima Trindade: a memória, a inteligência ou sabedoria e a vontade. De todas essas faculdades, a mais importante é a vontade, intervindo em todos os atos do espírito e constituindo o centro da personalidade humana.
O SABER DOS SENTIDOS
A motivação para a busca de conhecimento estaria, para Agostinho, em atingir a beatitude ou felicidade: "Amar e conhecer a Ele, esta é a vida bem-aventurada". Onde porém encontrá-lo? Agostinho tinha diante de si dois caminhos, duas fontes: os filósofos e as Escrituras. Sua própria experiência pessoal, as circunstâncias de sua conversão, levaram-no a privilegiar a revelação contida nos textos sagrados, sem contudo desprezar o produto da razão humana. Como em toda a patrística, a questão para ele era a conciliação entre fé e razão, entre verdades reveladas e o conhecimento adquirido.
Afirmava que as verdades da fé não são atingíveis pela razão mas acreditava ser possível demonstrar o acerto de nelas se crer. Fé e razão guardariam portanto estreita relação, daí a sua máxima, inspirada num versículo de Isaías: "Compreende para crer, crê para compreender". A razão precede a fé ao menos para assegurar que esta é útil; mas para a fé, ainda que principiante, não basta crer, ela busca também compreender e nesse movimento é ultrapassada pela inteligência que subsistirá eternamente. A fé, embora purificante, é transitória, pois aquele que sabe já não precisa crer.
Mas qual seria o fundamento do conhecimento humano? Na tradição platônica, o mundo sensível, enquanto mero reflexo do mundo das idéias, não poderia ser fonte de verdadeiro conhecimento. Agostinho, entretanto, considerava a percepção da aparência ao menos como ponto de apoio para a certeza, afirmando: "Eu sei que isto me parece branco; limito-me à minha percepção e encontro nela uma verdade que não me pode ser negada". Muito diferente seria afirmar apenas: "Isto é branco", pois essa afirmação comportaria a possibilidade de engano.
Em A cidade de Deus esta idéia foi desenvolvida a ponto de constituir uma primeira forma de cogito cartesiano: "Se eu me engano, eu sou, pois aquele que não é não pode ser enganado'.
As sensações contudo seriam apenas fonte de um conhecimento instável, marcado pela contingência e mutabilidade do mundo, enquanto que o verdadeiro conhecimento exigiria necessidade, estabilidade e permanência, não sendo portanto apreensão de objetos exteriores ao sujeito mas a descoberta de regras imutáveis como as da matemática, ou de princípios éticos como fazer o bem e evitar o mal.
A hierarquia agostiniana do conhecimento obedece a regra segundo a qual tudo que deve sua existência a outra coisa é inferior à coisa pela qual existe, não podendo o inferior agir sobre o superior. O homem, enquanto criatura de Deus, marcado por uma existência corpórea, está limitado ao conhecimento que os cinco sentidos lhe fornecem, podendo ver, tocar, ouvir etc. Contudo, o campo onde esses sentidos se exercitam é o mundo aparente que está subordinado ao tempo e à mudança - nasce, cresce, morre, transforma-se como o próprio homem - e tais características impregnam o conhecimento que deles advém, daí sua transitoriedade. Só em Deus e nas coisas que estão em Deus podemos, segundo Agostinho, encontrar o verdadeiro conhecimento, uma vez que Deus é bondade, sabedoria e verdade; esses não são apenas seus atributos.
As idéias, formas originárias, razões estáveis e imutáveis das coisas, estão contidas na mente divina e não nascem nem morrem, mas tudo o que nasce e morre é por elas formado. As idéias não são criaturas; antes participam da Sabedoria eterna, mediante a qual Deus criou o mundo e que é idêntica a ele. Assim, conhecer verdadeiramente seria voltar-se para as idéias, onde se funda a natureza das coisas e os juízos verdadeiros que delas formamos.
O acesso a essas verdades eternas não é totalmente vedado ao homem em função de sua dupla natureza: se ele possui um corpo, este está subordinado a uma alma que, pela sua própria natureza, guarda maior semelhança com Deus. Mesmo assim, a humanidade não pode, por si só, alcançar esse conhecimento perfeito; é necessária a intervenção divina.
EM BUSCA DO MESTRE INTERIOR
Para explicar essa intervenção, Agostinho recorreu à doutrina da iluminação: Deus é a luz que ilumina a inteligência humana, tornando possível a compreensão do inteligível. Existiria portanto uma luz eterna da razão que procede de Deus e atuaria constantemente, possibilitando o conhecimento das verdades imutáveis. Da mesma maneira que os objetos exteriores só são vistos se iluminados pela luz solar, também o verdadeiro saber precisaria ser iluminado pela luz divina para revelar-se aos homens.
A dupla natureza humana - corpo e alma - possibilita ao homem passar do conhecimento sensível (contingente) ao inteligível (necessário). A razão é uma faculdade da alma, um poder espiritual, mas a importância da percepção é também resgatada por Agostinho na medida em que as sensações atuam como advertência e estímulo para que se busque no próprio interior a verdadeira compreensão. A atividade cognitiva por excelência consistiria em conferir o que se vê, lê, escuta e sente com a verdade inteligível que está na sua própria alma, apresentada por Deus.
Assim, não é possível que se ensine a verdade a outrem pois, além de sua busca ser um ato de vontade e logo uma atividade individual, ela só pode ser encontrada no íntimo de cada um, consultando aquele a quem Agostinho denomina "Mestre Interior":
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside à propriamente, incitados talvez pelas palavras a consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito, no homem interior, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é permitido pela sua própria boa ou ma vontade. (Do mestre, XIV.)
É portanto o próprio homem quem entende embora auxiliado pela iluminação, e Agostinho reconhece que o grau de intelecção varia entre os homens, havendo alguns mais bem :lotados, cujos olhos são mais potentes, sadios e vigorosos.
Cumpre assinalar que, sendo as idéias divinas arquétipos das criaturas que possuem portanto certa impressão da imagem divina, é possível ao homem aproximar-se de Deus. Embora o bispo de Hipona nada tenha escrito em matéria de ciência, seu pensamento não coíbe o estudo da Natureza pois o Universo, como toda criação, é essencialmente bom : o seu estudo também o é, pois permite aumentar o apreço a sabedoria divina. Deste modo, a fé cristã não dispensaria pesquisa nem mataria o pensamento. Porém, ao estabelecer uma existência apriorística do conhecimento e afirmar que a verdade só pode ser encontrada nas realidades não-sensíveis, devendo ser buscada no íntimo de cada um, Agostinho não estimula nem a experimentação, nem a observação do mundo natural.
A vontade, faculdade da alma, exerce um papel fundamental na aquisição do conhecimento segundo a teoria agostiniana; estaria também intimamente vinculada ao livre-arbítrio humano e à própria salvação.
REDENÇÃO PELA GRAÇA
O homem nasceu perdido, pois o pecado original des'uiu nossa liberdade, impedindo-nos de deixar de pecar ainda que o pecado não seja necessário. Para Santo Agostinho, ao contrário do que ocorria na tradição platônica, Deus, que é também Bondade, não pode ser causa do mal. O mal seria, em realidade, uma transgressão da lei divina, um pecado cuja responsabilidade recai exclusivamente sobre o livre-arbítrio humano:
Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema - de Vós, Ó Deus - e tendendo para as coisas baixas. (Confissões, VIL)
O homem, fazendo mau uso da sua vontade, subordina a alma ao corpo. Esta, voltando-se para as satisfações materiais, debilita-se a ponto de não mais poder retomar à origem divina. Dessa maneira, a salvação vem pela graça de Deus, mas esta graça está vinculada à Igreja Católica, cujos sacramentos são obra de Deus e não dependem do caráter daqueles que os administram. Os sacramentos, principalmente o batismo e a eucaristia, seriam portanto necessários à salvação.
Um dos aspectos mais influentes do pensamento agostiniano foi a importância que deu à Igreja enquanto instituição. Seu esquema da salvação se baseava na concepção da Igreja como união social de todos os verdadeiros crentes, através da qual a graça divina podia operar na história humana. Compreendia por isso a aparição da Igreja Católica como o ponto culminante da história.
“DOIS AMORES FIZERAM DUAS CIDADES”
Em 410, Roma foi conquistada e saqueada pelos visigodos, originando uma poderosa polêmica anticristã que interpretava esse fato como conseqüência do abandono dos costumes e divindades tradicionais por parte dos romanos em favor do cristianismo. Em defesa deste, Agostinho escreveu A cidade de Deus, onde examinava os problemas da história das sociedades e sua relação com a divina providência, pretendendo demonstrar que os acontecimentos que afligiam a seus contemporâneos tinham um significado particular que se fundava, em última instância, na predestinação divina.
Retoma nessa obra, sob enfoque cristão, a antiga idéia de que o homem é cidadão de duas cidades: a de seu nascimento e a cidade de Deus. Explicitando o sentido religioso dessa distinção já sugerida anteriormente por Sêneca e Marco Aurélio, o hiponense a atribuía à dupla natureza humana: o _homem, como corpo e espírito, seria a um só tempo cidadão deste mundo e da cidade celestial, dividindo suas atenções entre os interesses terrenos (centrados no corpo) e os ultraterrenos (pertencentes à alma):
Dois,Amores fizeram duas cidades: a terrena fê-la o amor de SI ate ao desprezo de Deus; a celeste, fê-la o amor de Deus até ao desprezo de si. (A cidade de Deus, XIV.)
A chave para a compreensão da história humana estaria pois em compreendê-la como constante e dramática luta entre essas duas sociedades: a fundada nos impulsos terrenos, apetitivos e possessivos da natureza humana inferior que corresponde à cidade terrena; e a fundada na esperança da paz celestial e salvação espiritual, a cidade de Deus. O domínio final caberia a última pois só nela é possível a paz; só no remo espiritual e permanente. Todos os reinos terrenos - cujo poder é de natureza instável e mutável - desaparecerão, assim como ocorreu a Roma.
Percebe.-se aqui a "ambivalência do tempo" no pensamento agostiniano: comparado ao imutável, o tempo é degradação; porém, através da graça e da predestinação, transforma-se em preparação para a eternidade.
A cidade terrena é o reino do Diabo e de todos os homens maus, ao passo que a celestial é a comunhão dos redimidos neste mundo e no futuro. Santo Agostinho, contudo, não considerava essas duas cidades como visivelmente separadas; eram cidades místicas, espirituais e encontravam-se mescladas em toda a vida terrena, separando-se apenas no Juízo Final. É necessário, portanto, cautela ao aplicar-se essa teoria aos fatos históricos já que, segundo o hiponense, as instituições humanas não podem de modo algum identificar-se precisamente com nenhuma das duas cidades: a Igreja não é o mesmo que o reino de Deus e tampouco o governo secular é idêntico aos poderes do mal.
O aparecimento da Igreja teria marcado um momento decisivo para o desenvolvimento do plano de salvação divina pois a partir de então a unidade da espécie passou a significar a unidade da fé cristã sob a direção da Igreja. Entretanto, nada nos permite afirmar que para Agostinho o Estado devesse transformar-se em simples "braço secular" daquela. Suas idéias quanto às relações entre os poderes temporal e espiritual não são claras mas, sem dúvida, inserem-se na tradição característica desenvolvida pelos pensadores cristãos da época patrística, implicando uma organização e direção duais da sociedade humana em interesse das duas grandes classes de valores que deveriam ser conservados.
Os interesses espirituais e a salvação eterna estavam sob a guarda da Igreja e formavam a instância particular do ensino, dirigida pelo clero; os interesses temporais ou seculares e a preservação da paz, da ordem e da justiça correspondiam à guarda do governo civil, constituindo os fins que deveriam ser alcançados mediante os esforços dos magistrados. Entre ambas as ordens, clero e magistrados civis, deveria prevalecer um espírito de mútua colaboração, limite este que só poderia ser ultrapassado legitimamente em caso de emergência que ameaçasse com a anarquia no plano temporal ou com a corrupção, no espiritual.
Apesar da indefinição, pensava-se que essas ocasiões extraordinárias não destruíam o princípio de que ambas as jurisdições deveriam permanecer invioladas, respeitando cada uma os direitos ordenados por Deus para a outra. Essa concepção, conhecida como' 'doutrina das duas espadas", converteu-se em tradição aceita durante toda a Alta Idade Média e, mesmo quando a rivalidade entre os papas e os imperadores tornou a relação entre o espiritual e o temporal matéria de controvérsias (século XIII), constituiu o ponto de partida para os defensores de ambas as posições.
O que estava fora de discussão para Agostinho era que o Estado sob o cristianismo tinha que ser cristão, servir a uma comunidade cuja coesão repousava na comum fé cristã, promover uma vida na qual os interesses espirituais encontravam-se indiscutivelmente acima de todos os demais e contribuir para a salvação humana, mantendo a pureza da fé.
O LEGADO DE SANTO AGOSTINHO PARA IDADE MÉDIA
Santo Agostinho viveu num momento crucial da história, quando a decadência do Império Romano marcava o fim da Antiguidade. Testemunhou a conquista de Roma por Alarico em 410 e presenciou, pouco antes de morrer, o sítio à Hipona pelos vândalos e a destruição do poderio romano na África do Norte. Nesse mundo convulsionado por lutas internas, onde proliferavam as heresias e os cismas, exerceu o magistério sacerdotal e escreveu sua obra, decisiva na história do pensamento cristão.
Vivendo na encruzilhada de duas épocas, as doutrinas de Agostinho trazem a marca de seu tempo e se suas raízes fixam-se solidamente no pensamento antigo, seus frutos traziam o inegável sabor de superação: ao maniqueísmo, respondeu com uma ontologia da essência; ao ceticismo, com a teoria da iluminação. Superou o próprio neoplatonismo de suas origens, elaborando uma teologia da fé e da história, descobrindo o ser a partir da existência, o inteligível a partir do sensível e fundando uma dialética do transitório e do eterno.
Agostinho foi um homem da Antiguidade, mas sua obra dominou a cultura medieval, garantindo os dois princípios fundamentais da especulação desse período: o laço entre fé e razão e o uso da dialética na teologia. Sua concepção de uma comunidade cristã, junto a uma filosofia da história que a compreendia como ponto culminante do desenvolvimento espiritual do homem, que unia Estado e Igreja na luta pela pureza da fé, enraizou-se no pensamento cristão, predominando durante grande parte da Idade Média e subsistindo até mesmo na Idade Moderna.
O pensamento medieval recebeu pois de Agostinho um tríplice legado: um ideal cultural, uma síntese doutrinal e uma orientação filosófica. Durante oito séculos, essa herança dominaria de forma absoluta no Ocidente.
INÁCIO, I. & deLUCA, T. O pensamento medieval. São Paulo: Ática, 1994.
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