O Elitismo Pagão

Em quatro séculos, entre o reinado de Marco Aurélio (161-180) e o deJustiniano (527-565), o mundo mediterrâneo passa por uma série de mudanças profundas que afetam os ritmos de vida, as sen­sibilidades morais e, simultaneamente, o sentimento do eu dos ha­bitantes de suas cidades e dos campos circundantes. Estas páginas procuram descrever e explicar algumas mudanças mais significati­vas. Para conseguir isso no espaço limitado de um ensaio o autor deve começar explicando claramente algumas de suas opções. As­sim, apesar do título da série, o que chamamos de "vida privada" na acepção bastante vaga geralmente aceita numa sociedade ocidental contemporânea - a experiência privada do indivíduo e a vida privada da família -não foi escolhido como único tema do ensaio. Agir assim equivaleria a desviar o leitor para o anacronis­mo fatal que consiste em isolar o mundo do "privado" do contex­to público que lhe deu sentido ao longo dos séculos. O tema úni­co dissimularia o fato de que a principal mudança durante esse período da Antiguidade tardia é a lenta evolução de uma forma de comunidade pública a outra, da cidade antiga à Igreja cristã. O fio condutor destas páginas é o seguinte: como a vida de cada um, a vida de família, como até setorestão íntimos quanto a per­cepção do próprio corpo puderam mudar quando os contextos so­ciais em que eram percebidos se modificaram com o surgimento de novas formas de vida comum. Para que se avaliem a natureza e a extensão da transformação que começa com o homem 'cívico" da época dos Antoninos e ter­mina com o bom cristão, membro da Igreja católica da Idade Mé­dia ocidental, este ensaio deve poder vagar, como um rio que serpenteia, por toda a extensão da sociedade romana mediterrânea. Ele divaga entre margens variadas. Aborda temas tão íntimos e "privadcis", no sentido moderno, como o significado cambiante do ca­samento, da sexualidade e da nudez. Entretanto o fluxo desse rio era alimentado ao longo dos séculos por uma preocupação estra­nha aos modernos: quer se trate da vida dos notáveis numa cidade antonina ou dos costumes de um cristão do Império Romano tar­dio, a cada curva encontramos a necessidade ancestral de uma co­munidade pública em que a existência do indivíduo privado é to­talmente impregnada pelos valores da comunidade e, nas condi­ções ideais, completamente translúcida a esses valores públicos. Por isso o presente ensaio em nada se parece com uma História da vi­da cotidiana e menos ainda com uma História do sentimento religioso, embora inclua elementos próprios a esses dois tipos de obra. Ele se esforça para apresentar ao leitor um curto capítulo daquilo que nossos predecessores do século XIX teriam chamado de uma história das morais européias de Augusto a Carlos Magno (estou pensando em meu compatriota William Lecky, que em 1869 pu­blicou um livro com tal título). Descrever como, nos contextos sociais específicos do mundo romano, os homens e as mulheres con­duzem sua existência, à luz das noções flutuantes da comunidade pública à qual têm a sensação de pertencer: é este que parece ao autor um caminho seguro (evidentemente há outros) em direção ao qual poderão se orientar os que estiverem tentados a escrever uma história mais detalhada da vida privada dos europeus do Ocidente.

Vamos começar por humildes realidades. Alguns traços do mun­do mediterrâneo mantêm-se surpreendentemente constantes ao lon­go desses séculos. Topograficamente nosso relato não mudará de cenário. Raramente deixaremos as cidades. Cada uma delas consti­tui em si um pequeno mundo, definido pela intensa consciência de sua posição perante as cidades vizinhas semelhantes. "Mamãe, as outras cidades têm uma lua tão grande como a nossa?", per­gunta um menino num livro cómico do século III. A posição exi­ge uma relação íntima e duradoura com a cidade: no mesmo livro cómico, um rico proprietário de terras suprime barreiras na estra­da que conduz a sua vtlla para diminuir a distância entre seus do­mínios e sua cidade! Qualquer que seja a classe, praticamente não existe o anonimato próprio da cidade moderna. Toda mulher cujo marido foi crucificado recebe dos rabinos o conselho de partir, a menos que more numa cidade tão grande como Antióquia. Quanto às elites, a norma pela qual pautam seus atos é a sociedade de sua civitas em que o confronto é permanente.

Seja qual for a cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano é a convicção de que existe uma distância social intransponível entre os notáveis' 'bem-nascidos" e seus inferiores. A evolução mais sensível do período romano é a discreta mobiliza­ção da cultura e da educação moral para afirmar tal distância. As classes superiores procuram diferenciar -se das inferiores através de um estilo de cultura e vida moral cuja mensagem mais vibrante é que não pode ser partilhado pelos outros. Elas criaram uma mo­ral da distância social, estreitamente ligada à cultura tradicional posta à disposição das elites em suas cidades. No próprio seio des­sa cultura e da moral que a acompanha reside a necessidade de assimilar as regras concretas do intercâmbio entre pessoas das clas­ses superiores na condução dos negócios públicos da civitas.

A educação confia a criança à cidade, não à escola. Fisicamente o paedagogus [preceptor] primeiro conduz o menino de sete anos de sua casa ao foro. Seus professores sentam-se ao redor do foro em salas de aula ficticiamente delimitadas que se abrem para o foro, centro principal da vida urbana. Ali o estudante será integra­do ao grupo de seus pares, jovens da mesma condição com relação aos quais sempre terá tantas obrigações como para com seu profes­sor. O conteúdo da educação, bem como a forma e o lugar em que lhe é inculcado, visa a formar um homem versado nos oficia vitae [misterios da vida], experiente nas técnicas tradicionais e, solenes que devem preencher a vida de um indivíduo da classe superior.

Considera-se a educação literária como parte de um processo de educação moral mais íntimo e exigente. Acredita-se também que a assimilação meticulosa dos clássicos literários acompanha um processo de formação moral: a forma correta dos intercâmbios vet­bais testemunha a capacidade das pessoas da classe superior de adotarem a forma corre ta dos intercâmbios interpessoais com seus pa­res na cidade. Ao menos tanto quanto o controle da linguagem, o controle muito estudado da postura constitui a marca do homem "bem-nascido" na cena pública. Traços de comportamento que nossos contemporâneos tenderiam a rejeitar como insignificantes - o controle atento dos gestos, dos movimentos dos olhos e até da respiração - são cuidadosamente observados pelos homens desses séculos, pois indicam conformidade às normas morais da classe su­perior. Da época helenística ao reinado de Justiniano, a seqüência ininterrupta de epítetos lisonjeiros prodigalizados nas lápides da Ásia Menor aos "bem-nascidos" trai mais que um voto piedoso; o papel central dos adjetivos que ressaltam relações comedidas e harmoniosas com os pares e a cidade, praticamente excluindo ou­tros valores, revela o fardo das expectativas que pesaram sobre o indivíduo bem-sucedido.

DISTÂNCIA SOCIAL
Aquilo que quase se poderia chamar de "hipocondria mo­ral" forma uma sólida barreira entre as elites e seus inferiores. A pessoa harmoniosa, formada por uma longa educação e moldada pela pressão constante de seus pares, vive perigosamente, supõe-se. Está exposta à ameaça sempre presente de "contágio moral" por emoções anormais e por atos tidos como inadequados a sua posição pública, mas bem aceitos como habituais na sociedade in­culta de seus inferiores. Uso de propósito o termo "hipocondria". é a época dos grandes médicos, dentre os quais o mais eminente é Galeno (129-199); suas obras circulam amplamente entre os "bem ­nascidos ".

Uma imagem específica do corpo, feita de um amálgama de noções herdadas do longo passado da medicina grega e de filoso­fia moral, é apresentada como a sede fisiológica do código moral dos "bem-nascidos".

Segundo esse moddo, saúde pessoal e conduta pública con­vergem com perfeita facilidade. O corpo é representado como um equilíbrio delicadamente mantido de humores complementares. Perturbam a saúde perdas excessivas de reservas necessárias ou de­masiada retenção de excessos prejudiciais. Ademais, as emoções que parecem destruir ou comprometer o equilíbrio cuidadosamente mantido do comportamenro do homem bem-educado podem reduzir-se em grande parte a conseqüências de tais distúrbios. Por isso considera-se o corpo como o indicador mais sensível e eviden­te de um comportamento correto, e o controle harmonioso desse corpo pelos métodos gregos tradicionais (exercício, regime alimen­tar e banhos) constitui sua mais íntima garantia.

Baseada na posição e na autovigilância, a qualidade de uma moral, arraigada na necessidade de uma pessoa da classe superior de provar a distância social por meio de um código excepcional de comportamento, imediatamente aparece nas preocupações morais da época antonina. Tomemos dois exemplos: as relações com os in­feriores e as relações sexuais. Veremos que são igualmente regula­mentadas por um exigente código de comporramenro público.

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não porque se trata de cometer um ato desumano contra um irmão hu­mano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da auto­imagem harmoniosa do homem "bem-nascido". A irrupção de uma violência anormal constitui uma forma de "contágio moral" que leva o senhor a comportar-se com um escravo de modo tão incon­trolado como o do próprio escravo.

MEDO DO PRAZER
Preocupações similares determinam as atitudes frente às rela­ções sexuais. Não se estabelece distinção entre amor homossexual e amor heterossexual; o prazer físico é visto como uma continuidade subjacente entre os dois: o prazer sexual, enquanto tal, não do homem. A vergonha que pode estar ligada a uma relação ho­mossexual reside apenas no "contágio moral" que pode levar um homem das classes superiores a submeter-se ou fisicamente, ado­tando uma posição passiva no ato sexual, ou moralmente, entregando-se a um inferior de qualquer sexo. As relações entre homens e mulheres estão sujeitas às mesmas limitações. As inver­Sões da verdadeira hierarquia - da qual constitui um exemplo típico a prática da sexualidade oral com uma parceira - são as mais reprovadas e (será preciso dizer?) estimulantes formas de degrada­ção, sob o efeito do "contágio moral" de uma pessoa inferior: a mulher. O medo da efeminação e da dependência emocional, fun­damentado na necessidade de manter a imagem pública de um homem realmente integrado à classe superior, e não em escrúpu­los relativos à sexualidade em si, determina o código moral segun­do o qual a maioria dos notáveis conduzem sua vida sexual.
Nos dois casos o medo da sujeição social a um inferior é sutil-completamente que o de uma mulher; também seu corpo é um reservatório dos "calores" preciosos dos quais depende a energia masculina. Embora se possa estabelecer seguramente a diferença entre homens e mulheres - no caso da mulher pelo baixo nível de "calor" e pela conseqüente fraqueza moral de seu tempera­mento -, o homem ativo não se beneficia de semelhante segu­rança. Sempre pode perder "calor". Uma descarga sexual excessi­va pode" resfriar-lhe" o temperamento, e a perda de seus recursos se revelaria então com impiedosa clareza, através de uma perda de entusiasmo na cena pública. Assim, a voz plena e musical do ho­mem público, que Quintiliano e seus contemporâneos tanto gos­tam de ouvir ressoar pelos barulhentos espaços públicos da cida­de, é o fruto precioso de uma masculinidade cuidadosamente pre­servada pela "abstinência sexual". O puritanismo bem real das morais tradicionais das classes superiores nos mundos grego e lati­no pesa muito sobre aqueles que as adotaram. Não depende da sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como fon­te possível de "contágio moral' '. Através da ''efeminação", supos­tamente resultante de prazeres sexuais excessivos com parceiros de ambos os sexos, a complacência sexual pode com efeito corroer a superioridade incontestada do "bem-nascido".

BOM PARA O POVO
Daí também o particularismo restritivo dos códigos sexuais da época, que não se aplicam a todos. Os notáveis tendem a se sub­meter e a submeter suas famílias a um código de austero purita­nismo masculino, mais próximo do que ainda se pratica nas re­giões islâmicas do que do puritanismo da Europa setentrional mo­derna. Entretanto, envoltos em suas atitudes obrigatórias, os notáveis são mais livres para manifestar a outra face de seu eu público, sua popularitas [vontade de agradar o povo]. Nas relações com os infe­riores, como distribuidores das boas coisas da vida urbana, prodi­galizam, àqueles que a seu ver devem desfrutá-los, prazeres mais vulgares que os seus: uma sucessão de espetáculos, comodidades e decorações cujas crueza e franca obscenidade contrastam de mo­do flagrante com o autocontrole altaneiro que esses homens se ar­rogaram com o sinal de sua condição superior dentro da cidade. Aristocratas muito cultos patrocinam as medonhas carnificinas das lutas de gladiadores nas cidades gregas da época antonina. E a as­censão do cristianismo não muda muito esse aspecto de sua vida pública. Se um leitor contemporâneo se lembra do imperador Jus­tiniano, possivelmente é por causa da descrição que Procópio faz da carreira juvenil de sua esposa, Teodora, uma dançarina de strip­tease do teatro público de Constantinopla, onde os gansos iam co­mer o grão em suas partes íntimas diante de milhares de cidadãos. É importante reter na mente a precisão venenosa desse detalhe: trata-se de uma mulher do povo, e as restrições morais dos códigos das classes superiores simplesmente não lhe dizem respeito. Sob todos os aspectos Teodora é a antítese das respeitáveis mulheres casadas da classe superior que, nessa época, velam-se sobriamente e vivem reclusas em Constantinopla. Não obstante, como notáveis, os maridos dessas damas respeitáveis durante séculos financiaram tal gênero de exibições para a glória eterna de sua pessoa e de sua cidade.

Tampouco nos deve surpreender a longa sobrevivência da in­diferença com relação à nudez na vida pública romana. Essa socie­dade não está presa à generalização implícita da vergonha sexual. A nudez do atleta continua sendo um indício de posição para os "bem-nascidos". O papel essencial dos banhos públicos como pon­tos de reunião da vida cívica faz da nudez entre os pares e diante dos inferiores uma experiência cotidiana inevitável. Como vimos, os códigos de comportamento também concernem ao corpo; por isso as roupas das classes superiores na época antonina, embora caras, não têm a magnificência cerimonial daquelas dos períodos ul­teriores. A postura de um homem, nu ou vestido, é a verdadeira marca de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que haveria em se exibir de modo inconveniente constitui uma preocupação, não o simples fato de se mostrar nua: a nudez diante dos escravos é mo­ralmente tão insignificante quanto a nudez diante dos animais; e a exibição física das mulheres das classes inferiores constitui ou­tro sinal de sua desregrada inferioridade em relação aos poderosos.

Nas cidades da época dos Antoninos, as realidades do poder pesam como uma atmosfera carregada ainda que impalpável sobre os súditos da classe superior de um império mundial. Por íntima que seja a vida de uma cidade média, Roma é um império funda­do na violência e protegido pela violência. A crueldade dos com­bates de gladiadores é exibida como parte da celebração oficial do imperador em todas as grandes cidades do Mediterrâneo. Esses es­petáculos fazem compreender a vontade sanguinária de governar da elite italiana. Mesmo os jogos a que se dedicam os humildes quando lançam dados nos recantos do foro são jogos guerreiros; os lances significam: "Os partos estão mortos; os bretões estão con­quistados; os romanos podem jogar". Não se dissimula o fato de que a política das cidades pequenas, que continuam sendo a prin­cipal escola do caráter dos notáveis em todas as regiões, desenrola­se doravante "sob vigilância": está submetida à constante inter­venção do governador romano ladeado por sua guarda de honra militar, que empunha o gládio e o dardo do legionário. Para que a vida das cidades continue, a disciplina e a solidariedade das eli­tes locais e sua capacidade de controlar seus administrados devem ser mobilizadas ainda com mais consciência do que antes. Um sen­timento de disciplina pública é levado a penetrar mais profunda­mente nas vidas privadas dos notáveis: é o preço a pagar para manter o status quo da ordem imperial. Daí a profunda mudança da atitude com relação aos conjuges no decorrer do século II.

AS MULHERES
Ao longo das gerações precedentes, no final da República e no começo do Império, as mulheres dos homens públicos eram tra­tadas como seres periféricos que não contribuíam em nada - ou bem pouco - para o papel público de seus maridos. A conduta dessas "criaturinhas" e as relações com o esposo não tinham gran­de interesse para o mundo exclusivamente masculino dos políti­cos. Elas podiam minar o caráter de seu homem pela sensualidade; podiam até lhe inspirat uma imprudência heróica por um amor autêntico; muitas vezes revelavam-se poderosas fontes de co­ragem e de bom conselho nos tempos difíceis, porém a relação con­jugal em si mesma pesava pouco na cena pública. O que chama­mos "emancipação" das mulheres nos círculos da alta sociedade de Roma no começo do Império era essencialmente uma liberda­de nascida do desdém. As "criaturinhas" podiam fazer o que quisessem desde que não interferissem com o jogo sério da política masculina. O divórcio era rápido: embora pudesse, segundo as cir­cunstâncias, desencadear uma vingança selvagem contra a mulher ou o amante, o adultério em nada afetava a posição pública do marido.

Na época antonina desmorona o sentimento da neutralidade relativa dos arranjos conjugais da classe dirigente. Destacam-se a concordia e a homonoia [união] do bom casamento - muitas ve­zes como uma revivescência deliberada da suposta disciplina do pas­sado romano arcaico - para servir de símbolo novo e vibrante de todas as outras formas da harmonia social. As moedas que cele­bram a concordia, virtude política e social crucial em Roma, mos­travam outrora políticos masculinos unindo a mão direita em sinal de aliança; no tempo de Marco Aurélio é sua própria esposa, Faus­tina, a Jovem, que aparece a seu lado nas moedas, associada na concordia. Em Ostia espera-se que os casais jovens se reúnam para oferecer sacrifícios "em razão da concórdia excepcional" do casal imperial. Pouco antes, em seus Preceitos conjugais, Plutarco des­crevia como o marido devia usar hábeis conselhos pessoais, pró­prios do filósofo, para levar sua jovem esposa - sempre considera­da como uma criaturinha provocante, mais interessada no vigor se­xual do parceiro que em sua seriedade filosófica - a se conformar ao comportamento público dos homens das classes dirigentes. O casamento deve ser uma vitória da missão civilizadora do compor­tamento dos "bem-nascidos" sobre a franja indisciplinada de sua própria classe: suas mulheres. Os contornos da acrópole pública são tanto mais claramente delimitados que se incluem até as mu­lheres no círculo mágico da excelência da alta sociedade. Em con­seqüência, os cônjugues aparecem em público como uma minia­tura da ordem cívica: a eunoia [benevolência], a sympatheia [co­munidade de sentimentos] e a praotes [doçura] das relações de homem e mulher refletem a cortesia grave e a lealdade incondi­cional por sua classe com as quais o homem poderoso deve ao mesmo tempo abraçar amorosamente sua cidade e controlá-la firmemente.

PAPEL DOS FILÓSOFOS
Situamos num contexto preciso o papel do filósofo e das idéias morais oriundas dos círculos filosóficos durante o século II: a ne­cessidade que as classes superiores sentem de uma solidariedade mais estreita e de meios de controle mais Íntimos sobre seus infe­riores. O filósofo é o "missionário moral" do mundo romano. Afir­ma dirigir-se à humanidade em seu conjunto. É "o mestre e o guia dos homens para todas as coisas que convêm aos homens, de acor­do com a natureza". Na realidade não é nada disso. Ele é o repre­sentante de uma "contracultura" prestigiosa no interior da pró­pria elite; e aos membros da elite dirige em primeiro lugar sua edi­ficante mensagem.

O filósofo não considerou seriamente a idéia de dirigir-se às massas. Deleita-se positivamente na alta condição moral que lhe vale sua prédica aos não convertÍveis entre seus pares. Os filósofos tentaram convencer os dirigentes do mundo, tão cheios de segu­rança, a viverem à altura de seus próprios códigos e, fazendo isso, incitaram-nos a olhar um pouco além dos estreitos limites de seus horizontes sociais imediatos. Na exortação estóica, o homem da classe superior era encorajado a viver de acordo com a lei universal do cosmos, sem se deixar encerrar e limitar pelas particularidades frá­geis e pelas paixões ardentes da sociedade unicamente humana. Tal prédica tem como efeito acrescentar restrições, reservas, dimen­sões adicionais e até elaborações a fortiori, conscientemente para­doxais, aos códigos morais bem conhecidos: os termos' 'também" e "até" retomam nessas obras com uma freqüência reveladora. O homem público deve se ver como um cidadão de sua cidade mas "também" do mundo. O filósofo, celibatário confirmado, sente que deve 'até" reconhecer a nova condição conferi da ao casamen­to, "pois tal união é bela". O homem casado 'também" deve evitar enganar a esposa, "até com sua própria serva [ ... ], coisa que al­guns consideram como nada censurável, pois um senhor deve deter o poder de usar de suas escravas como desejar". O homem público deve estar consciente de que por trás de sua face pública e além das expectativas de seus pares, sua consciência guardiã, constantemente presente, conhece-lhe "também" os motivos interiores.

Como porta-voz da "contracultura dos bem-nascidos", o fi­lósofo desfruta de uma posição paradoxal, ao mesmo tempo bufão e "santo da cultura". Embora as obras desses filósofos ocupem bom lugar nas bibliotecas modernas, não é certo que enchessem as pra­teleiras dos homens públicos na época de seus autores. Fragmen­tos de papiros encontrados no Egito mostram que Homero conti­nuava sendo o verdadeiro "espelho da alma" do grego "bem­nascido". Pode-se reconstituir vários exemplares da llíada e da Odú­séia com os fragmentos recolhidos nas residências dos notáveis do período que nos ocupa. Mas não sobreviveu nem um pedaço de papiro - ou quase - dos textos dos moralistas filósofos dos sécu­los II e III. Rivais entre si, argumentadores, irremediavelmente des­ligados do mundo, quando não são hipócritas que escondem seus apetites e· ambições sob rudes vestimentas e longas barbas hirsu­tas, os filósofos expõem-se à zombaria e ao desprezo da maioria das pessoas. Nas paredes dos banheiros públicos, em Óstia, afres­cos mostram esses filósofos, que se fazem chamar mestres na arte de viver, oferecendo aos clientes sentados severos conselhos gnô­micos sobre a maneira de defecar corretamente!

FILSOOFIA CRISTÃ
Entretanto, verba volant, scripta manent [as palavras voam, os textos permanecem]; basta que a prédica dos filósofos se trans­fira de seu contexto original, altamente específico e apoiado nu­ma classe, para um grupo social diferente, dotado de uma expe­riência social diferente e de preocupações morais significativamen­te diferentes para que os "até" e os "também" das exortações filosóficas dirigidas às classes superiores tranqüilamente desapareçam. O que os filósofos apresentavam como um novo anexo, acres­centado a título de experiência à antiga moral introspectiva da eli­te, torna-se, nas mãos dos mestres cristãos, os fundamentos da cons­trução de um edifício inteiramente novo cujas exigências dizem respeito a todas as classes. As exortações filosóficas que escritores como Plutarco e Musônio Rufo dirigiam aos leitores da classe superior são retomadas com entusiasmo pelos guias cristãos da alma, como Clemente de Alexandria, no final do século lI, e transmiti­das deliberadamente a respeitáveis comerciantes e artesãos citadi­nos. As exortações filosóficas autorizam Clemente a apresentar o cristianismo como uma moral realmente universalista, arraigada num sentimento novo da presença de Deus e da igualdade de to­dos os homens diante de sua lei. A "democratização" surpreendentemente rápida da contracultura dos filósofos da classe superior pelos dirigentes da Igreja cristã é a mais profunda revolução do período clássico tardio. Toda pessoa que se debruçou sobre os escritos cristãos ou sobre os papiros cristãos, como os textos encontrados em Nag Hammadi, percebe que a obra dos filósofos, embora pu­desse ser vastamente ignorada pelo notável citadino médio, adensou­se através da prédica e da especulação cristãs para formar um sedi· mento profundo de noções morais difundidas entre milhares de pessoas humildes. No final do século III é posta à disposição dos habitantes das grandes regiões do Mediterrâneo, nas línguas fala· das pelas classes inferiores dessas regiões, ou sej a, o grego, o copta, o siríaco e o latim. Para compreender como isso pôde se produzir, devemos retroceder alguns séculos e examinar uma regiao muito diferente, a Palestina de Jesus. Depois voltar sobre nossos passos, através das frações muito diversas da sociedade romana, para se­guir o crescimento das Igrejas cristãs desde a missão de são Paulo até a conversão de Constantino em 312.

por BROWN, P. "Antiguidade Tardia" in ARIES, P. & DUBY, G. (orgs.) História da Vida Privada. vol. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


Comentário, por Carlos Almir Matias
Peter Brow procura descrever nesse capitulo como homens e mulheres conduzem suas vidas num mundo em que os valores éticos estão se transformando com a inserção do cristianismo no Imperio Romano.

Para enterder todas essas transformações Peter Brow nos mostra como que funciona a ética pagã que foi substituida ou absorvida pelo cristianismo. A primeira coisa que temos de ter em mente é que a sociedade romana tem a convicção de que existe uma barreira intransponivel entre os ´´bem nascidos´´ e seus inferiores.

Para os bens nascidos mostrarem sua superioridade em relação aos seus inferiores, eles levam uma vida carregada de códigos morais e estritamente ligada a uma cultura tradicional. Para que isso ocorra acontece um intercâmbio entre as pessoas de classes superiores, para que haja uma assimilação de todas as regras; então desde a infância, o jovem estuda com outros jovens de mesma condição, basicamEnte ele aprende os clássicos literários e aprende a se portar como um bem nascido controlando suas emoções e gestos.

O grande medo é o contagio moral, ou seja, comportamentos inadequados a sua posição social,em suma, um bem nascido tem de constantemente se autovigiar para não perder o equilibrio de suas emoções para que não aconteça que sua saúde também fique prejudicada.

Essa preocupação com o equilibrio emocional tambem interfere nas relações sexuais, mas por incrivel que pareça não há distinção entre o amor homossexual e o amor heterossexual.O prazer não afeta a moral em si, o que julga-se com rigor é o efeito que esse prazer causa na vida pública do homem. A vergonha do ato sexual está ligada a submissão do homem de classe superior numa relação homossexual, que tambem é valido numa relação heterossexual onde é condenado o sexo oral com a parceira, ou seja o código de conduta nas relações sexuais nada mais é do que o reflexo da sociedade onde o homem de classe superior não pode se submeter aos seus inferiores e tambem tem de controlar seus calores.

O que podemos notar é que mesmo antes do cristianismo se firmar como religião dentro do Imperio Romano ja se tinha uma preocupação com as relações sexuais,mas não como pecado,mas sim como código moral,então podemos acabar com a ideia de que os pagãos eram orgiásticos e libertinos e que somente com o cristianismo é que há uma moralização do sexo.

Apesar de todos esses códigos morais os notáveis tambem mostravam seu outro ´´eu´´público ,vale lembrar por exemplo que era a aristocracia que patrocinava as sangrentas lutas entre gladiadores.Tambem não eram todos os notáveis que seguiam esses codigos de conduta,vale lembrar de Teodora mulher de Constantino que era totalmente diferente das mulheres respeitáveis das classes superiores que eram um pouco mais que nada na vida pública de seus maridos ainda com o agravante de serem acusadas de estragar o caráter do homem por causa de sua sensualidade.

Os filósofos em todo esse contexto podem ser considerados como ´´missionários morais´´ do mundo romano, tentavam convencer os grandes homens de que tinham de viver a altura de sua condição social ,mas ao que parece eles não eram muito apreciados pelas elites.Somente com a filosofia cristã surge uma moral universalista e um sentimento de igualdade entre os homens e ocorre uma democratização da contracultura dos filosofos feita pelos dirigentes da Igreja.

Podemos concluir que, mesmo com toda a influencia cristã, que prega a igualdade entre os homens, ainda temos traços daquela moral pagã de distanciamento social em nossa sociedade atual.



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