1. O BISPO DE ROMA CONQUISTOU A CHEFIA DA IGREJA CATÓLICA
TORNAR-SE o chefe incontestado da Igreja Católica não foi tarefa fácil para o bispo da cidade de Roma. Quer no plano religioso, quer no político, muitas dificuldades se lhe ergueram.
Os sucessivos invasores do Império Romano do Ocidente tinham trazido consigo a ameaça de um retorno ao paganismo ou quiçá da radicação de uma atitude religiosa herética (o arianismo). O Império do Oriente, poupado aos invasores germanos, nem por isso deixou de ser campo de profundas dissensões religiosas, para as quais não raro se exigiu a atitude conciliatória de Roma.
Evangelizar o Ocidente e defender a ortodoxia católica face à pressão do Oriente eram já de si missões espinhosas. Dificuldades de ordem política tornaram, não obstante, ainda mais árdua a luta do bispo romano pelo primado espiritual. A submissão teórica do território italiano a Constantinopla e a incapacidade prática de esta o defender, ou mesmo administrar, criaram para a Santa Sé uma situação delicada, a breve trecho tornada insustentável.
VALENTINIANO III ESTABELECEU A PRIMAZIA DO PAPADO (445)
Numa Itália devastada pelas invasões, a importância política de Roma cresceu de novo mercê do seu significado religioso. Quando todas as instituições desabaram, a organização eclesiástica permaneceu. Centro da Igreja, Roma e o papa constituíram uma força que ao próprio imperador convinha reconhecer. Neste sentido Valentiniano III publicou um edicto (445), de que se transcreve o que se segue.
Estamos convencidos de que a única defesa para nós e para o nosso Império é o favor da Divindade Celestial: e a fim de merecer esse favor, a nossa primeira preocupação é apoiar a fé cristã e a sua venerável religião. Portanto, visto que o primado da Sé Apostólica é assegurado pelo mérito de S. Pedro, o primeiro dos bispos, pela posição da cidade de Roma e também pela autoridade do sagrado Sinodo, que ninguém tente empreender alguma coisa em contrário à autoridade daquela Sé. Porque a paz das igrejas só será preservada em todos os lugares quando universalmente reconhecerem o seu dirigente. [ ... ] O que quer que a autoridade da Sé Apostólica tenha decretado ou venha a decretar, seja considerado lei para todos. [ ... ]
[Constitutio Valentiniani III, Leo. ep. XI, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, t. LIV, Paris, 1881, caIs. 637, 638.]
ROMA E CONSTANTINOPLA: A HIERARQUIA ECLESIÁSTICA
No Concílio de Calcedónia (451) a autoridade da Igreja de Constantinopla foi ampliada, de forma a dar-lhe a chefia incontestada da jurisdição eclesiástica no Oriente.
Cânone 28 - Seguindo em tudo as decisões dos santos Padres e com o conhecimento do cânone que acabou justamente de ser lido dos 150 bispos (1), amantíssimos de Deus, nós também determinamos e decretamos os privilégios da santíssima Igreja de Constantinopla ou Nova Roma. Porque os Padres concederam privilégios, com toda a razão, ao sólio da Roma Antiga por aquela cidade imperar, e os 150 bispos de Deus amantíssimos, movidos pelas mesmas considerações, concederam iguais privilégios ao santíssimo sólio da Nova Roma, pensando com razão que a cidade honrada pela presença do Império e do Senado - gozando de iguais privilégios aos da antiqüíssima Roma soberana deveria igualmente receber idêntica categoria nos assuntos eclesiásticos, sendo apreciada, estimada e ocupando segundo lugar depois dela.
Por isso decretamos que os metropolitas, mas apenas os metropolitas das dioceses (2) do Ponto, Ásia e Trácia juntamente com os bispos daquelas dioceses que ficam entre os bárbaros sejam ordenados pela já citada sede da santíssima igreja de Constantinopla. Que cada metropolita destas dioceses ordene os bispos da sua província como foi declarado pelos divinos cânones; mas que, como acima foi dito, os metropolitas das citadas dioceses sejam ordenados pelo arcebispo de Constantinopla depois de se terem realizado as devidas eleições segundo o costume e de lhe terem sido comunicadas.
[I. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima collectio, t. VII, Florentiae, 1762, col. 370.]
(1) Os participantes do Concílio de Constantinopla (381). (2) Uma diocese era então um agrupamento de províncias. Posteriormente esta hierarquia foi invertida.
S. LEÃO MAGNO DEFENDEU A AUTORIDADE DA SANTA SÉ (452)
Nesta epístola dirigida ao imperador do Oriente Marciano (450-457), S. Leão Magno condenou o cânone 28 do Concílio de Calcedónia, afirmando assim o poder da Santa Sé para rejeitar as decisões dos concílios. Se a autoridade teórica de Roma se manteve intacta depois deste episódio, na prática a tendência centrífuga do Oriente tornou-se cada vez mais nítida.
Que a cidade de Constantinopla tenha, como desejamos, a sua glória, e possa ela, sob a proteção da mão direita de Deus, gozar por muito tempo o governo da vossa clemência. Todavia o fundamento das coisas seculares é um e o das coisas divinas outro, não podendo haver edifício seguro salvo o que assenta naquela pedra que o Senhor deixou como alicerce. Aquele que cobiça o que lhe não é devido perde o que é de sua própria pertença. Que seja bastante para o acima mencionado (1) o facto de, pela ajuda da vossa piedade e o meu consenso favorável, ter obtido o bispado de uma tão grande cidade. Que ele não desdenhe de uma cidade real que não pode transformar numa sé apostólica; e que de maneira alguma espere ser capaz de subir prejudicando os outros. Porque os privilégios das igrejas, instituídos pelos cânones dos santos Padres e fixados pelos decretos do Sínodo de Nicéia (2), não podem ser derrubados por um acto sem escrúpulos, nem perturbados por uma inovação. E na fiel execução desta tarefa é necessário que eu demonstre, com a ajuda de Cristo, uma perseverante dedicação, porque é um encargo que me foi confiado. E se as regras sancionadas pelos Padres e estabeleci das sob a inspiração do Espírito Santo no Sínodo de Niceia para governo de toda a Igreja forem violadas com a minha conivência (o que Deus impeça) e se os desejos de um só irmão tiverem mais peso em mim do que a utilidade comum de toda a casa do Senhor, deverei ser condenado.
[Leão Magno, Ep. 104, ad Marcianum Augustum (452), in J. P. Migne, Patrologíae Cursus Completus, Series Latina, t. LlV, Paris, 1881, cols. 993-995.]
AS VIRTUDES INERENTES AO SACERDÓCIO, SEGUNDO S. GREGÓRIO MAGNO
O pontificado de Gregório I (590-604) constituiu um marco decisivo no processo de definição da autoridade papal. A sua actuação como administrador dos bens da Igreja e como evangelizador foi tão importante como a sua projecção literária. Das suas obras, a Regra Pastoral foi talvez a mais apreciada na Idade Média.
A conduta de um prelado deve ser tão superior à do povo como a de um pastor à das suas ovelhas. Deve considerar seriamente a necessidade de rectidão que impende sobre ele se o povo for, com propriedade, denominado o seu rebanho. Deve ser puro no pensamento, pronto na acção, discreto no silêncio, útil no discurso, misericordioso para com os Indivíduos, preeminente na contemplação; um companheiro pela humildade para aqueles que procedem bem, um adversário pela justiça para os que procedem mal; diligente com as coisas externas por estar preocupado com as internas, firme em relação às internas por estar imerso nas externas. [...]
[Sancti Gregorii Magni, Regula Pastoralis, in J. P. Migne, Patrologíae Cursus Completus, Series Latina, t. LXXViI, Paris, 1869, cal. 25.]
2. A IGNEJA, ORGANIZANDO-SE COMO UM ESTADO, SUPRIU A AUTORIDADE CIVIL
A organização da Igreja fizera-se ainda dentro do período imperial romano. Decalcando as instituições do próprio Império, o clero hierarquizara-se num funcionalismo especificado, criara as suas assembléias e sínodos, sobrepusera à divisão provincial a sua estrutura administrativa. Esta orgânica nascida dentro do Estado Romano, dependia dele e nomeadamente servia-o.
A desaparição do Império no Ocidente e o caos trazido pelas invasões permitiram à Igreja não só definir com maior clareza a sua doutrina, como especialmente ampliar e fortalecer as instituições já criadas.
Na confusão e anarquia que se seguiram ao século v, a Sé Romana representava o único ideal unificado r e a única estrutura capaz de se opor à desintegração política, religiosa e social em Curso. Detinha, também, e este não era o seu menor trunfo, o monopólio da língua latina, cuja internacionalidade foi o melhor utensílio da cultura medieval. Partindo destas potencialidades, a Igreja tornou-se a maior força política -do Ocidente, colocando na sua dependência os estados medievais em formação.
O CONCÍLIO DE NICEIA (325) REGULAMENTOU A ORGANIZAÇÃO ECLESIÁSTICA
Os primeiros concílios tiveram a seu cargo, entre outros problemas, a determinação da hierarquia eclesiástica. Os patriarcas nas capitais das províncias detinham sob a sua autoridade os bispos (nas dioceses), os quais orientavam o clero da sua jurisdição.
Cânone 4 - É conveniente por muitas razões que um bispo seja nomeado por todos os bispos da província; mas se isto for difícil, ou devido a necessidade urgente, ou por causa da distância, será bom reunirem-se pelo menos três, devendo os sufrágios dos ausentes também ser dados e comunicados por escrito, e então poderá efectuar-se a ordenação. Mas em cada província, a ratificação do que for feito deverá ser deixada ao metropolitano.
Cânone 6 - Que se mantenha o antigo costume do Egipto, da Líbia e da Pentápoles pelo qual o bispo de Alexandria deverá ter jurisdição sobre todos eles, se bem que o mesmo seja também habitual para o bispo de Roma. Da mesma maneira detenham os seus privilégios as igrejas de Antioquia e das outras províncias.
Cânone 15 - Devido ao grande distúrbio e discórdia que ocorre, decreta-se que o costume subsistente em certos lugares contrário ao Cânone seja por completo revogado; desta maneira, nem os bispos, nem os presbíteros, nem os diáconos, deverão passar de uma cidade para outra. Se alguém depois deste decreto do sagrado e grande sínodo tentar tal coisa ou continuar a fazer o mesmo, o seu procedimento deverá ser por completo anulado e restituído à igreja para a qual foi ordenado bispo ou presbítero.
[In J. C. Ayer, A source-book for ancient church history, New York, 1913, pp. 360-361.]
SOBRE OS BISPADOS NAS REGIÕES OCUPADAS PELOS BÁRBAROS
Nesta carta do bispo e escritor Sidónio Apolinário (430-c. 488) dirigida a um seu colega, o bispo Basílio, por volta de 472 ou 473, encontramos bem nítida a ideia directriz da Igreja contemporânea das invasões. agregar pela fé católica as populações que politicamente se seccionavam.
Devo confessar que por mais terrível que seja o poderoso rei dos Godos (1), temo-o menos como assaltante das muralhas romanas do que como subversor das leis cristãs. Dizem que a simples menção do nome Católico ensombrece de tal maneira o seu rosto e o seu coração que mais depressa o tomaríamos por chefe da sua seita (2) do que por príncipe da sua nação. [ ... ]
Por estas razões desejaria que considerásseis a doença secreta da Igreja Católica para que ràpidamente pudésseis aplicar-lhe um remédio adequado. Burdigala (3), Petrogoris (4), Rutena (5), Lemovica (6), Gabalitans (7), Relusa (8), Vasatium (9), Convenae (10), Ausci (11) e muitas outras cidades são como corpos truncados devido à morte dos seus respectivos bispos. Não foram nomeados sucessores para preencher os lugares dos defuntos e manter no ministério as ordens menores; as fronteiras da ruína espiritual estendem-se a toda a parte. [...]
Se examinardes mais de perto os males do corpo espiritual, ràpidamente entendereis que por cada bispo arrebatado do nosso reino é posta em perigo a fé de uma população. [...]. Fazei tudo, até onde vos autorizar a condescendência do nosso senhor, o Papa, para que seja permitida a ordenação episcopal entre os povos da Gália incluídos dentro das fronteiras das sortes góticas, para os segurarmos pela fé, já que não os podemos conservar por tratado.
[Gai Sollii Apollinaris Sidonni Epistularum, liber VII, epist. VII, in Monumenta Germaniae Historica- Auctorum, t. Vil], Berlim, 1887, pp. 109 e 110).
(1) O rei visigodo Eurico (466-484). (2) O arianismo. (3) Bordeaux. (4) Perigueux. (5) Rouergue. (6) Limoges. (7) Javols. (8) Eauze. (9) Bazas. (10) Comminges. (11) Auch.
SOBRE A DELIMITAÇÃO DOS PODERES ESPIRITUAL E TEMPORAL (494)
O Papa Gelásio I (492-496), dirigindo-se ao imperador de Constantinopla Anastásio (491-518), convidou-o a submeter-se à autoridade espiritual da Santa Sé.
Há na realidade dois [poderes], muito augusto Imperador, pelos quais este mundo é principalmente governado, a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Dos dois, o sacerdócio tem o valor mais alto, na medida em que deve prestar contas dos próprios reis em matérias divinas. Fica pois a saber, meu muito clemente filho, que embora presidas com dignidade nos negócios humanos, no que respeita os divinos tens de dobrar a cerviz perante aqueles de quem esperas a salvação e de quem recebes os sacramentos celestiais. Na esfera religiosa tens de te submeter em vez de governar e ceder perante as decisões dos padres de preferência a tentar domá-las à tua vontade. Porque, se no domínio da disciplina pública os padres reconhecem a tua autoridade como vinda de cima e obedecem às tuas leis para que não pareçam resistir em matérias puramente seculares, como não lhes deverás tu obedecer de muito melhor vontade, a eles que estão encarregados da administração dos veneráveis mistérios? [...]
[Ed. XII, 494 A. D., Carl Mirbt, Quellen zur geschichte des Papstums, 4." ed., Tübingen, 1924, n.O 187.)
SOBRE O BISPADO EM TERRAS DE INFIÉIS
Por motivo das invasões muçulmanas, tinha sido necessário atentar na situação dos bispados que haviam ficado sem dirigente. O concílio Quinisextum (692) decidiu a criação dos bispos «in partibus», que, sem ocuparem a sua diocese, manteriam as dignidades inerentes ao cargo.
Visto que em diversas ocasiões se têm dado invasões de bárbaros e consequentemente muitíssimas cidades caíram nas mãos dos infiéis, razão pela qual o prelado de uma cidade fica impossibilitado, depois de ter sido ordenado, de tomar posse da sua sé e de se estabelecer nela com categoria sacerdotal efectuando e dirigindo assim, de acordo com o costume, as ordenações e todas as outras coisas que pertencem ao bispo: nós, defendendo a honra e a veneração do sacerdócio e não desejando de maneira nenhuma fazer uso da afronta pagã para a ruína dos direitos eclesiásticos, decretamos que aqueles que assim foram ordenados e pelas causas já citadas não se estabeleceram nas suas sés não sofram por este facto qualquer prejuízo. Poderão desta maneira realizar canonicamente, a ordenação dos diferentes clérigos e usar da autoridade dos seus cargos de acordo com os limites próprios, e qualquer acto administrativo que deles proceda será válido e legítimo. [ ... ]
[ln H. T. Bruns, Canones apostolorum et conciliorum Saeculorum IV, V, VI, VII, Berlim, 1839, t. I, p. 34.]
3. O NASCIMENTO
DAS INSTITUIÇÕES MONÁSTICAS
NASCIDO no Oriente, onde não raro se revestiu de formas ascéticas exageradas e mesmo extravagantes, o monaquismo encontrou a partir do século VI urna organização equilibrada, com a regra de S. Bento surgida na Itália. Não era esta, na verdade, a primeira regra estatuída para regulamentação da vida religiosa em comum. S. Pacómio (c. 320), na Tebaida, esboçara uns princípios directivos Rara a comunidade que instituíra. S. Basílio (c. 360) ampliou e aperfeiçoou estes princípios e a sua regra marcou fortemente o monaquismo oriental e o próprio S. Benio. Em África, Santo Agostinho (354-430) redigiu também, algumas normas para uma comunidade religiosa. A regra beneditina seria, não obstante, a base de todos os grandes movimentos monásticos medievais, e os monges de S. Bento uns dos principais obreiros na construção de uma Europa cristã. Conjugando harmoniosamente a vida contemplativa com a actividade prática quotidiana, o monge beneditino evangelizou, ensinou, desbravou a terra, criou povoados e fez do seu mosteiro um repositório da cultura clássica, que se esforçou por não deixar morrer.Tornada a breve trecho um potentado económico, a ordem seria simultaneamente o melhor instrumento e o apoio mais firme da política papal. Foram muito venerados no Oriente os estilitas, monges eremitas que instalavam a sua cela no topo de uma coluna e ai viviam em contemplação, anos seguidos. Como tal excentricidade não existisse no mundo ocidental, Robert de Clari (século XIII), cronista da Quarta Cruzada, anotou com admiração a existência destas colunas em Constantinopla.
Havia ainda noutra parte da cidade (1) uma grande maravilha: eram duas colunas, tendo cada uma delas, em espessura, pelo menos três braças (2) de homem e cinqüenta toesas (3) de altura. E sobre cada uma dessas colunas tinham por hábito viver uns eremitas em pequenos abrigos que aí estavam e havia portas nas colunas, pelas quais uma pessoa podia subir. No exterior destas colunas estavam desenhadas e escritas em profecias todas as aventuras e conquistas que tinham ocorrido em Constantinopla ou que estavam para acontecer. Mas ninguém podia compreender o acontecimento até ele se ter dado, e depois de ter acontecido o povo ia até aí, meditava sobre o assunto e então, pela primeira vez, via e compreendia o evento. [ ... ]
[Robert de Clari, La conquête de Constantinopla, in Historiens et Chroniqueurs du Moyen Age, Bibliotheque de Ia Pléiade, 2.a ed. 1958, pp. 77, 78.]
(1) Constantinopla. (2) A braça ou braço, correspondendo aproximadamente à medida de dois braços estendidos, equivalia a 1,82 m. (3) A toesa equivalia a 1,949 m.
A FUNDAÇÃO DA ORDEM DE S. PACÓMIO (C. 320)
Tendo-se dado conta das vantagens que a vida em comum podia trazer ao asceta, S. Pacómio redigiu um conjunto de regras que incluíam, entre as obrigações do monge, o trabalho manual. Por morte de S. Pacómio, já nove conventos de homens e dois de mulheres seguiam a sua regra. Uma lenda da época registada pelo bispo Palladius (séculos IV- V) conferia à regra de S. Pacómio origem sobrenatural.
Há um lugar na Tebaida chamado Tabena onde viveu um certo monge Pacómio, um destes homens que atingiram a mais elevada e perfeita forma de vida, de maneira que foi contemplado com predições do futuro e visões angélicas. Era um grande amigo dos pobres e tinha profunda caridade para com os homens. Por isso, estando ele vivendo numa gruta, apareceu-lhe um anjo do Senhor, que lhe disse: Pacómio, procedeste bem e rectamente em todas as coisas que te dizem respeito; como tal, não fiques mais tempo desocupado neste sítio. Ergue-te, mostra-te; reúne todos os jovens monges, vive com eles e dita-Ihes leis de acordo com as que eu te vou dar. E entregou-lhe uma lâmina de cobre onde estavam escritas as seguintes coisas:
Dá de comer e de beber a cada um [dos irmãos] de acordo com a sua robustez e distribui-lhes os trabalhos que convenham e correspondam às suas capacidades, não lhes proibindo nem o jejum nem os alimentos. Assim, entrega trabalhos pesados aos mais fortes e tarefas mais leves e fáceis àqueles que se disciplinam mais e são mais fracos. [...]
Às refeições tapem a cabeça com os capuzes para que um irmão não possa ver o outro irmão comer. Não devem falar enquanto comem: nem devem voltar os olhos para qualquer outra coisa fora do prato ou da mesa.
E [o anjo] estabeleceu como regra que durante todo o dia deveriam oferecer doze orações; e na altura de acender as luzes, doze; e no decurso da vigília nocturna, doze, e à hora da nona, três; determinou porém que quando parecesse a todos ser altura de comer, cada grupo devesse primeiro cantar um salmo por oração. [ ... ]
Quando o anjo acabou de dar estas orientações e cumpriu a sua missão, despediu-se do grande Pacómio.
Há mosteiros observando esta regra compostos de sete mil homens, mas o primeiro e grande mosteiro onde viveu o santo Pacómio e que deu nascimento a outros lugares de ascetismo tem mil e quatrocentos homens.
[Palladius, Historia Lausiaca, capo 38, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, t.lxxm, Paris, 1879; caIs. 1137 e 1138.]
REGRA DE S. BENTO: CAP. l-SOBRE AS CATEGORIAS DE MONGES
A regra de S. Bento (século VI) abre com uma análise dos vários tipos de monge então existentes, desde o solitário, o eremita, até ao que vive em comunidade, o cenobita. Esta análise dá-nos o panorama dos primeiros passos do monaquismo.
É bem sabido que existem quatro categorias de monges. A primeira categoria é a dos cenobitas: aqueles que vivem em mosteiros e servem sob a direcção de uma regra e de um abade. A segunda categoria é a dos anacoretas ou eremitas: aqueles que, não estando já no primeiro fervor da sua conversão, mas depois de uma longa provação num mosteiro, tendo aprendido com o auxílio de muitos a combater o demónio, saem bem armados das fileiras da comunidade para o combate solitário do deserto. Sentem-se agora capazes, sem qualquer ajuda salvo a de Deus, de combater sozinhos contra os vícios da carne e contra os seus próprios pensamentos.
A terceira categoria de monges, uma categoria detestável, é a dos sarabaítas. Estes, não tendo sido experimentados, como o ouro na fornalha, por nenhuma regra nem pelas lições da experiência, são tão brandos como o chumbo. Nos seus trabalhos ainda se mantém ligados ao mundo, por isso a sua tonsura os distingue como embusteiros perante Deus. Vivem aos dois ou aos três, ou mesmo sós, sem um pastor, no seu próprio redil e não no do Senhor. A sua lei é o desejo do prazer; o que quer que lhes entre no pensamento ou lhes apeteça, a isso chamam santo; olham como ilegítimo aquilo que lhes desagrada. A quarta categoria de monges são os chamados giróvagos. Estes passam toda a vida vagueando de província para província, instalando-se como hóspedes em diferentes mosteiros por três ou quatro dias de cada vez. Sempre em movimento, sem estabilidade, são indulgentes para com os seus próprios desejos e sucumbem às seduções da gula, sendo em muitos aspectos piores do que os sarabaÍtas. Sob a misérrima conduta de tais homens é melhor fazer silêncio do que falar.
Portanto, omitindo estes, procuremos, com a ajuda de Deus, estabelecer uma regra para a mais forte categoria de monges, a dos cenobitas.
[s. P. Benedicti, Regula Commentata, capo I, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, 1. LXVI, Paris, 1866, caIs. 245 e 246.]
REGRA DE S. BENTO: CAP. 48 - SOBRE O TRABALHO MANUAL DIÁRIO
A vida simples do monge beneditino repartia-se, segundo a regra primitiva (século VI), entre o ofício divino, o trabalho manual e a leitura. O trabalho que deveria durar seis a oito horas diárias, dependeria das necessidades do local e das possibilidades e resistência dos monges.
A ociosidade é inimiga da alma. Por isso os irmãos devem estar ocupados a determinadas horas no trabalho manual e de novo a horas fixas na leitura sagrada. Para isto pensamos que as horas para cada ocupação poderão ser determinadas como se segue.
Desde a Páscoa até às Calendas de Outubro (1) quando saem de manhã à hora prima (2), que trabalhem em tudo o que for necessário até cerca da quarta hora e desde a· quarta hora até cerca da sexta que se entreguem à leitura. Depois da sexta hora, tendo deixado a mesa, que descansem nas suas camas em perfeito silêncio; ou se por acaso alguém deseja ler, que leia para si próprio de maneira a não incomodar ninguém.
Que a Nona (3) seja dita de preferência cedo, a meio da oitava hora, e que voltem de novo a fazer o trabalho que tem de ser feito até às Vésperas (4).
E se porém as necessidades do lugar ou a sua pobreza exigirem que façam eles próprios o trabalho da ceifa, que não se sintam descontentes com isso; porque então são verdadeiros monges vivendo pelo trabalho das suas mãos como fizeram os nossos Padres e os Apóstolos. Que todas as coisas sejam feitas com moderação, todavia, para salvaguarda dos timoratos.
Desde as Calendas de Outubro até ao princípio da Quaresma, que se entreguem à leitura até ao fim da segunda hora. Na segunda hora que seja dita a Terça (5) e então que todos laborem no trabalho que lhes for designado, até à Nona. Ao primeiro sinal da hora de Nona que todos larguem o seu trabalho e se aprontem para o soar do segundo sinal. Depois da refeição que se entreguem à leitura ou aos salmos.
Nos dias da Quaresma, desde manhã até ao fim da terceira hora, entreguem-se à leitura e daí até ao fim da décima hora que façam o trabalho que lhes for designado. E nestes dias da Quaresma cada um receberá um livro da biblioteca que lerá seguido do principio ao fim. Estes livros devem ser dados no princípio da Quaresma. [... ]
Aos irmãos doentes ou fracos será conferida uma tarefa ou ofício de tal natureza que os mantenha longe da ociosidade e ao mesmo tempo não os sobrecarregue ou afaste com trabalho excessivo. A sua fraqueza deve ser tomada em consideração pelo abade.
[s. P. Benedicti, Regula Commentata, capo 48, in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus. Series Latina, t. LXVI, Paris, 1866 caIs. 703 e 704.]
(1) Dia 1 de Outubro. (2) Primeira hora canônica coincidindo com as 6 horas da manhã. (3) Ofício rezado normalmente às 3 horas da tarde (nona hora). (4) Ofício celebrado depois da nona, a hora variável. (5) Ofício celebrado normalmente às 9 horas da manhã.
por ESPINOSA, F. Antologia de Textos Medievais, 1981.
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