Os Hunos

Mapa do império dos Hunos

Enquanto a parte ocidental das estepes eurasianas era dominada pelos povos indu-europeus, como os citas, os saces, os taocarianos, ou mais tarde os alanos, as regiões orientais dessa zona eram - com uma diferença de mais ou menos um milênio - o teatro dos movimentos de populações mais importantes. Os sinais chineses revelam-no que, a partir do século IV a.c., sobre a dinastia Chou, depois a dos Han, a existência dos Hiong – Nu, considerados pela história ocidental como os ancestrais dos Hunos ou Khunoi, citados pela primeira vez na Geografia de Ptolomeu, concluída em 172 de nossa era.

CONTRA OS HIONG NU, A GRANDE MURALHA
A presença dos Hiong Nus constituía uma fonte de insegurança permanente para os pacífi­cos cultivadores chineses, espoliados regular­mente por esses nômades incontroláveis. Para fazer face a esse perigo, os soberanos Tcheus, depois Hans, tiveram que modificar a constituição de seus exércitos, até então formados por soldados de infantaria e de carros de combate muito pesados para o manejo e inteiramente ine­ficazes contra uma cavalaria de arqueiros muito hábeis.

Vemos, então, aparecerem cavaleiros chi­neses, vestidos à maneira nômade, de uma túnica curta e calções presos aos tornozelos, armados de arcos e espadas curtas.

Durante o século iii a.c. , o imperador Chi Huang Ti organizou o sistema de fortificações co­nhecido sob o nome de Grande Muralha", para bloquear as ameaças vindas do Norte. Todas essas medidas eram necessárias, pois os Hiong Nus representavam um perigo muito sério; esses nômades eram temíveis guerreiros, o combate constituía seu modo de vida natural. Entre eles, as crianças manejavam o arco desde a mais tenra idade antes de utilizarem, na idade adulta, a lança e a espada. Montados em pequenos cavalos, rá­pidos e resistentes, eles simulavam a fuga em meio aos combates, a fim de arrastar o inimigo em uma perseguição arriscada, onde seria final­mente destroçado.

Até o século III, os Hiong Nus, agrupados em bandos de saqueadores e rivais, limitavam-se a incursões irregulares no império chinês; mas as coisas mudaram quando um chefe soube se im­por a todas essas hordas anárquicas. Mao-Tun era um personagem pouco agradável. Executando seu próprio irmão, toda sua família e seus adversá­rios, consegue o reconhecimento de sua autori­dade sobre o conjunto do povo hiong-nu; estes, submetidos, doravante, a uma disciplina mais ri­gorosa, iriam constituir um perigo verdadeiramen­te grave para o vizinho chinês.

Tática e senso de manobra são ensinados às tropas nômades, até então deixados à sua sor­te. A cavalaria ligeira de arqueiros e a cavalaria pesada, com armaduras e lanças, recebem fun­ções específicas cada uma. No momento da bata­lha, forças de reserva são previstas e os subor­dinados do príncipe, o chan-yu, vêm regularmente prestar contas do desenrolar das operações e re­ceber ordens.

OS INDU-EUROPEUS ATIRADOS PARA O IRÃ E A ÍNDIA
Dispondo de um aparato militar assim or­ganizado, MaoTun estendeu sua soberania sobre os povos nômades instalados da bacia do Tarim à Selenga, da Dzungária à mandchúria. A expan­são hiong-nu defrontou-se com uma horda indo­européia instalada no Kan-Su, vanguarda das tri­bos vindas do oeste, quando das migrações do II milênio: os Yue-Tchés.

Os Yue-Tchés, chamados Tokharois pelos historiadores gregos, foram vencidos uma primei­ra vez nos últimos anos do século III e tiveram que aceitar a dominação de seus temíveis vizi­nhos. Em 160 A.C., uma nova guerra chegou à li­quidação quase total desse núcleo indo-europeu nas estepes da Ásia Oriental. Lao-Chan, filho de Mao-Tun pode beber no crânio do príncipe dos Yue-Tchés, e o que restou desse povo foi obri­gado a emigrar para o oeste.

Uma parte dos fugitivos, os "Pequenos Yue-Tchés" instalou-se no noroeste do planalto tibetano; o restante veio chocar-se com os Saces, população cita da Ásia Central, chamada Sakas pelos Persas e Sai-Wangs pelos chineses. Os Yue-Tchés vieram substituí-Ias ao norte e oeste dos montes Tien-Chan, mas não puderam perma­necer muito tempo nesta região. Uma outra popu­lação de origem indo-européia, mas sem dúvida mesclada a elementos turco-mongóis, os Wu­Suns, instalada no sul da Sibéria, na região do alto lenissei, vem expulsá-Ias de seu novo território.

Esses movimentos teriam conseqüências longínquas, pois os Saces foram instalar-se no Irã centro-oriental, o Seistão, cujo nome lembra, ainda hoje, suas memórias, antes de invadir, no século seguinte o noroeste da índia, onde funda­riam o império dos Kuchanas. Após os Saces, os Yue-Tchés, expulsos, por sua vez, da Ásia central, penetram em Bactriana, norte do atual Afeganis­tão e em Sogdiana: entre o Amu Daria e o Sir Daria, futura Transoxiana e atual Usbequistão, onde esta invasão, contada por Apolodoro de Ar­temita, pôs fim à dominação grega que remontara a Alexandre. O rei parta Phraate II foi por sua vez vencido e todo o Irã submergiu. Mesmo a Meso­potâmia foi atingida e os invasores aí criaram o reino de Adiabena.

OS CHINESE REAGEM
Transformados em mestres incontestáveis das estepes do Leste, os Hiong Nus voltam-se então para a China, cujos embaixadores foram re­cebidos de maneira pouco diplomática: "Enviado de Han, não fales demais. Ocupa-te apenas da quantidade de sedas, de arroz e malte que Han deve fornecer a Hiong Nu; cuida para que a conta esteja certa. De que mais queres ainda falar? Se as coisas a serem entregues estão completas e de boa qualidade, o negócio está fechado. Senão, nossos cavaleiros, no outono, tão logo vossa sa­fra esteja pronta para a colheita se encarregarão da cobrança".

Os Chineses cedo deixaram de pagar um tributo que nem sempre os garantia contra as pilhagens e as cobranças excessivas de seus turbulentos vizinhos. Para livrar-se da ameaça, o império do Meio formou, conforme já vimos, uma cavalaria comparável à do adversário e um jovem general chinês, Ho Tchu Ping, conseguirá bater várias vezes o inimigo hiong nu, perseguido além do Ordos e do Alachan, até às estepes que mar­geiam o norte do Gobi. Para acabar com o inimigo hereditário, os Chineses desenvolveram sua cria­ção eqüina e substituíram a montaria autóctone, descendente, como o cavalo dos Hiong Nus, do cavalo Prztwalski, robusto e resistente, por ca­valos iranianos que foram buscar até em Fergana, no alto Sir Daria. Esses animais eram mais pos­santes e mais rápidos. A cavalaria chinesa, do­tada de melhores corcéis e equipada com arma­duras mais pesadas, batia os nômades em seu próprio terreno.

No século I da era cristã, foi empreendida uma verdadeira reconquista das regiões ameaçadas pelos Hiong Nus; um excelente general, Pan Tchao, restaurou a autoridade imperial no País do Oeste" e na bacia do Tarim, essenciais para o controle da rota da seda, ligando o Irã à China. O oásis de Ha-mi, longamente disputado, e final­mente ocupado pelos chineses, inúmeras colônias militares foram instaladas e um verdadeiro limes, prolongamento da Grande Muralha na direção oeste, foi assim estabelecido. Ao fim do século I, os Hiong Nus são então mantidos a dis­tância da grande rota comercial da Ásia Central, dos oásis do Tarim e da China Sedentária.

OS HINGNU, ORIGEM DOS TURCO -MONGÓIS
Sendo impossível a expansão em direção ao sul, os Hiong Nus continuaram a dominar as estepes do norte. Através de vários vestígios, a civilização desse reino nômade já anuncia a pos­terior sociedade turco-mongo!. O culto do céu e as práticas xamanistas constituem a essência do universo religioso. As técnicas da caça ou da criação permanecem imutáveis até o período de Gengis-Khan. Os acampamentos, constituí­dos de tendas de feltro, anunciam os "yurtes" Mongóis.

No que toca à arte, os Hiong Nus nos legaram um maior número de testemunhos do que seus primos europeus", os Hunos. A “civilização dos túmulos com lápides" que se estende de 800 a 150 A.C., legou-nos apenas alguns obje­tos em bronze sem valor artístico. Por volta do século I as tumbas principescas de Nuan Ula apresentaram tecidos decorados, representando personagens de tipo iraniano e combates de ani­mais, obras de origem sace, sem dúvida. Mas, tapetes de feltro decorados traduzem uma clara evolução do estilo animalista: as representações são de perfil, e o movimento, a corrida, adquirem maior importância do que nas obras citas do Pon­to ou do AltaL

SUA ARTE: OS “BRONZES DE ORDOS”
Geralmente ligamos à produção artística dos Hiong Nus os famosos "bronzes de Ordos", descobertos após a Primeira Guerra Mundial, ao norte da Grande Muralha, na curva do rio Ama­relo. Tratam-se de facas, armas, partes de arreios, placas de cinturões decorados com cenas animalistas freqüentemente associadas a representa­ções humanas.

Essas peças foram, em princípio, atribuí­das aos Hiong Nus, mas logo surgiu uma contro­vérsia a esse respeito. Alguns julgaram esses bronzes mais antigos, e viram neles a origem do estilo animalista, em seu todo; teriam sido o produto de uma cultura autóctone submetida poste­riormente pelos invasores hiong nus. Esta origem "chinesa" atribuída à arte das estepes foi rapi­damente invalidada: a persistência do uso do bronze em plena idade do ferro não tem significa­ção cronológica, pois os dois metais foram traba­lhados conjuntamente durante muito tempo; por outro lado, certos animais representados são des­conhecidos na China, a exemplo dos yaques, enquanto são familiares às populações mais setentrionais. .

Recentes escavações realizadas na região de Minussinsk, no sítio siberiano do Tastyk, revelaram, enfim, bronzes muito antigos, onde as pe­ças de Ordos se inspiram bastante diretamente, no. plano temático e estilístico. É, pois, possível afirmar atualmente que, se certas obras são anteriores ao estabelecimento dos Hiong Nus, a grande maioria das peças descobertas no Monte da Grande Muralha lhes pertence. Os Hiong Nus produziram esta arte das regiões mais Setentrionais, onde levariam vida nômade antes que os anais chineses nos revelassem sua existência no século III.

OS CHINESES DERROTAM A POTÊNCIA HINOG NU
Contidos pela resistência dos Hans, os Hiong Nus deslocaram o centro de gravidade de suas possessões, das bordas do limes chinês, para os altos vales do Orkhon e de Selenga: ao norte do Gobi, ali onde se instalaram sucessivos centros dos grandes impérios turco-mongóis dos séculos seguintes. Os Chineses vem desalojar seus, inimigos hereditários até mesmo em seus longínquos refúgios.

No final do século I a potencia hiong nu está acabada, conforme exprimem os anais chi­neses: "Os exércitos de Han haviam avançado até as profundezas do país dos Hiong Nus; aí le­varam o inimigo ao esgotamento, perseguindo-o por todos os lados. As crianças nasciam prematuramente ou morriam ao nascer; a população es­tava enfraquecida, exasperada, sem recursos; to­dos aspiravam à paz ... inúmeros Hiong Nus fo­ram mortos, feridos ou haviam desaparecido ... homens e cavalos pereciam às dezenas de milha­res... o desastre se agrava com a fome que vem arrasar dois terços da população e a metade do gado. A pior devastação, o desânimo total atingia o povo hiong nu. Territórios que lhes haviam per­tencido até então, se libertavam, como na tem­pestade caem as telhas de um teto... o povo morria de fome, as pessoas cozinhavam e assavam seus companheiros para comê-Ios... "

O príncipe hiong nu, o chan-yu em pessoa, Ho Han Yé, termina por aceitar a soberania do imperador chinês; uma vez obtida a submissão de Ho Han Yé, os últimos rebeldes foram vencidos, bem longe a oeste, no alto Ilé. No século II, a China impõe a Pax Sinica em toda a Ásia Orien­tal, tal como a Roma dos Antoninos que, saciada de conquistas, garantiu a segurança e a prospe­ridade da Pax Romana no interior do limes impe­rial. O espaço havia-se restringido bastante para os Hiong Nus; os que não pereceram e se recu­saram à submissão tentaram alcançar o norte e o leste da Mongólia, mas foram rechaçados pelos Sien Peis.

CORRIDA DOS SOBREVIVENTES PARA O OCIDENTE: OS HUNOS
O que restava do povo hiong nu tomou então o caminho do ocidente e veio instalar-se na Dzungária, no sudeste do Altai. Os nômades vindos do leste permaneceram aí durante todo o século II de nossa era. Mas o príncipe sien pei Tan Chi Huai os rechaçou novamente para oeste e anexou a Dzungária. A marcha para o ocidente recomeça e os Hiong Nus desaparecem então dos textos chineses. No mesmo momento Ptolomeu cita em sua Geografia, os Kunois, instalados en­tre o Don e o Volga, próximo dos Roxolanos. Esses Kunois são o mesmo que os Chunis de Si­dônio Apolinário e os Hunis de Cláudia. São os conquistadores que se tornaram tristemente cé­lebres na Europa.

A filiação entre Hiong Nus e Hunos, discu­tida ainda recentemente, parece dever ser admi­tida atualmente. Certas escavações do Kirghizistan, o fim, nesta época, da civilização dos Alanos da Ásia Central, confirmam o deslocamento na direção oeste e a instalação dos Hiong Nus nas proximidades do Volga.

Durante sua permanência na Ásia Central, os Hunos em contato com os Alanos e os Sogdia­nos de raça iraniana, organizarão uma escrita, cujo alfabeto é inspirado no aramaico, língua di­plomática tradicional do império persa. Esta es­crita rúnica", totalmente estranha às runas germânicas é mais antiga que o que foi descoberto nas estelas (colunas inscritas) "vieilles turques" das margens do alto Orkhon, que remontam aos séculos VII e VIII. A escrita protobúlgara será de­rivada da dos Hunos, sendo assim a mais antiga escrita turca conhecida.

Se excetuarmos esta possibilidade de transcreverem seu dialeto turco bastante rudimentar, os Bárbaros vindos do Leste aproveita­ram pouco das civilizações sedentárias que encontraram em seu caminho, as do Irã sassânida ou a do Khwarezm, redescoberta pelos arqueólo­gos soviéticos a partir de 1947, data da exuma­ção da magnífica fortaleza de Toprak Kala.

A SECA INCITA OS HUNOS CONTRA O IMPÉRIO ROMANO
Os Hunos levaram, durante dois séculos, sua vida nômade tradicional e não se falava deles; o mundo chinês bem como o mundo romano os ignorava. Quais são os acontecimentos que, na segunda metade do século IV acionará a ava­lancha que devastará o império romano?

Poucas explicações satisfatórias foram enunciadas; a história do Turquestão dessa época permanece ainda bastante conhecida. Parece, entretanto, que são as modificações climáticas, notadas em toda a Ásia durante este período, que podem explicar a migração do povo huno. As pastagens disponíveis para o rebanho tiveram sua superfície constantemente reduzidas em função do rigor da seca, levando os nômades a partirem para o Ocidente, disputando com os Alanos e os Godos, as estepes mais ricas das margens do Volga e do sul da Rússia. É a partir desse mo­mento que a Europa será sacudida.

Em 376 os primeiros rumores inquietantes começam a surgir junto ao limes do Danúbio: Os povos bárbaros estão em plena efervescência em razão do avanço, longe, ao Leste, de conquistado­res ferozes.

Rapidamente o perigo se afirma e os Godos, fugindo dos invasores, atravessam o Danú­bio para se colocarem sob a proteção do Império Romano. O Estado godo de Ermanária é destruído pelo rei huno Balamir e logo é o império de Roma, ele próprio, que se encontra ameaçado. Para o historiador godo Jordanés, o povo huno, "mais atroz ainda que o cúmulo da barbárie", seria re­sultante da união ignóbil entre feiticeiros malig­nos e os espíritos impuros que viviam na estepe. "Vivendo a princípio nos pântanos", diz Jordanés, "dificilmente poder-se-ia considerá-los humanos, seres pequenos, horríveis e magros, e os únicos sons por eles emitidos eram uma vaga sombra da fala humana".

Os Hunos permaneceram muito tempo a leste do Don. Diz a tradição, que dois de seus caçadores, perseguindo uma corça, encontraram a pista que permitiu atravessar sem dificuldades o pântano Meotide, que separa a Ucrânia propriamente dita das estepes mais orientais.

TUDO NELES ERA ASSUSTADOR
Segundo Priscus, é por essa rota que começara a invasão. "... Entrando no país dos Citas, eles imolaram, para sua vitória, todos aque­les que encontraram pela frente. Os outros, eles dominaram e submeteram. Pois tão logo atraves­saram o enorme pântano, assenhorearam-se de todas as populações que residiam nos confins da Cítia, arrastando impetuosamente a massa em sua marcha, submeteram até mesmo os Alanos, seus iguais em combate, mas bem diferentes de­les quanto aos costumes, à conduta, às formas de existência; chegaram a exaurí-los, multiplican­do as batalhas. Quando não conseguiam subjugar pelas armas, usavam recursos aterrorizantes que, apenas por seu aspecto horrível, provocavam a fuga. Tudo neles era assustador, negro, e podemos dizer, não possuíam nenhum traço de uma face humana; suas cabeças, um bloco disforme deixa­va entrever apenas dois pontos, em vez de olhos".

Esse aspecto horrível dos invasores chocou especialmente seus contemporâneos; Am­miano Marcellino confirmou em um texto célebre:

"Os Hunos excedem em ferocidade e barbárie ­tudo que se possa imaginar. Abrem cicatrizes nas faces de seus filhos para impedirem o crescimento da barba. Seus corpos atarracados, com os membros superiores enormes e uma cabeça des­mesuradamente grande, lhes dá um aspecto monstruoso. Vivem, aliás, como animais. Não co­zinham nem temperam seus alimentos, vivem de raízes selvagens e de carne amaciada sob suas selas. Ignoram o uso do arado bem como o de habitações sedentárias, casas ou cabanas. Eterna­mente nômades, são acostumados desde a infân­cia, ao frio, à fome, à sede... Perguntai a esses homens de onde vêm, onde nasceram, eles o ignoram. Sua vestimenta consiste em uma túnica de linho e um capote de peles de ratos costuradas. A túnica se lhes apodrece sobre o corpo, eles não a tiram e sim, ela se vai ... Seus pequenos cavalos são feios, mas infatigáveis e rápidos como o raio. Passam suas vidas a cavalo ... che­gam mesmo a dormir inclinados sobre o pescoço de suas montarias. Nas batalhas eles irrompem sobre o inimigo, soltando gritos terríveis ... Nin­guém iguala a habilidade com que lançam, a dis­tâncias prodigiosas, suas flechas armadas de ossos pontudos tão duros e mortíferos quanto o ferro .. , Enquanto seus adversários estão aten­tos à ameaça do gládio, eles laçam seus mem­bros, paralisando seus movimentos, seja de in­fante ou cavaleiro ... "

VITÓRIAS FULMINANTES
As vitórias dos Hunos são fulminantes. Os Alanos são batidos e expulsos para o Sudeste, quando não se agregam às hordas vitoriosas. O sobrinho do grande soberano godo Ermanarico, Vi­timer, é vencido e morto a leste do Dnieper. Os Visigodos instalados mais a oeste, entre o Dnies­ter e o Danúbio, tentam se opor ao maremoto, mas o exército de seu rei Atanarico é despe­daçado.

Para os povos bárbaros assim ameaçados, uma única saída parecia se apresentar: a fuga para o Sul, abrigados pelo Danúbio e pelo limes romano. No outono de 376, mais de duzentos mil fugitivos cruzaram o rio para buscar refúgio no império. A derrota sofrida em 378, às portas de Andrinopla, pelos exércitos romanos diante das tropas góticas iria precipitar o movimento que conduz daí em diante todos os povos bárbaros que fugiam dos Hunos. No fim do ano 405, o limes é dessa forma forçado em vários lugares. Em face desse maremoto, Roma vai jogar a divisão dos Bárbaros, utilizando os serviços de contingentes godos ou hunos: Teodósio I, Honório, Estilicão recorreram a esses auxiliares para lutar contra outros bárbaros. No decurso do século V, Aécio, protegido de Estilicão, depois patrício e coman­dante geral dos exércitos de Valentiano III, foi quem melhor se utilizou da aliança com os Hunos. Estes obtiveram a Pannonia Prima, atual planície húngara do Danúbio, mas em contrapartida, colo­caram-se ao lado dos Romanos contra seus inimi­gos internos e externos. É assim que eles com­bateram, por conta do Império Romano, os Visi­godos, instalados na Aquitânia e os Burgúndios da Renânia. Em 437, ajudaram Aécio a controlar a rebelião dos Bagundes, camponeses gauleses revoltados contra os grandes proprietários.

ÁTILA, O “FLAGELO DE DEUS” AVASSALA O IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE
As relações de coexistência que ligavam os Hunos e os Romanos envenenaram-se sensi­velmente após a morte de Roua, o soberano que havia elaborado com Aécio; seus dois sobrinhos, Bleda e Átila, lhe sucederam, mas o primeiro mor­reu pouco tempo depois.

Priscus deixou-nos um retrato daquele que iria tornar-se popularmente o "flagelo de Deus": "Ele avançava orgulhosamente "e deixava seu olhar correr aqui e ali, enquanto que a marca do sentimento de sua força dava firmeza a todo o seu corpo. Ele gostava da guerra, mas sabia im­por períodos de trégua. Imperioso no conselho, não recuando diante da violência, atendia, no en­tanto, às súplicas. Embora pouco admitisse entre os seus súditos, era capaz de atos de bondade. De baixa estatura, peito largo, cabeça avantajada, olhos rasgados, barba rara e cinzenta, nariz chato, tez escura, tudo nele denunciava sua origem de huno..."

O novo soberano adotaria imediatamente uma atitude hostil para com o império romano do Oriente, que no entanto lhe pagava pesados tributos desde 435. A profanação de tumbas dos hunos pelos habitantes de Margos, uma pequena vila, próxima do límes do Danúbio, foi o pretexto invocado por Átila para iniciar a guerra em 445. Margos, a cidade culpada, foi arrasada e sua popu­lação degolada ou reduzida à escravidão. Vimina­cium, Singidunum, Sirmium, as belas praças fortes romanas do Danúbio, foram tomadas e desapare­ceram da História. No interior do Império, Naissos, Filipolis, Marcianopolis caíram; cavaleiros hunos apresentaram-se várias vezes até mesmo diante das muralhas de Constantinopla. A paz foi resta­belecida em 448, em condições bastante duras para o império romano do Oriente: um verdadeiro no man's land seria estabelecido entre a fronteira do Danúbio e o extremo setentrional dos Balcãs; o imperador de Constantinopla devia deixar toda a parte norte de seus Estados aberta a novas in­vasões. Os Hunos permaneceram tranqüilos du­rante alguns anos e não deixaram seu domínio panoniano, essa planície húngara propícia à cria­ção, cobrindo grandes espaços, que Ihes lembra­va as paisagens familiares das estepes da Ucrâ­nia ou do Kuban.

DETIDOS NOS CAMPOS CATALÚNICOS
Depois as relações dos Hunos com Constantinopla melhoraram sensivelmente e as condi­ções da paz de 448 foram aliviadas. Esta mansi­dão com relação ao império romano do Oriente se explica, na verdade, pelos projetos agressivos de Átila contra Valentiniano e Aécio, respectiva­mente imperador e comandante-geral do império romano do Ocidente. O soberano bárbaro tinha a idéia de extorquir um tributo do Império do Oci­dente; queria também, a mão da princesa Honó­ria, a própria irmã do imperador. Diante da recusa de Valentiniano a seus desejos, Átila decidiu ata­car o Ocidente. No princípio de 451, um gigan­tesco exército constituído de Hunos, Ostrogedos e Gépidas atravessa o Reno. Metz cai em abril, mas Orléans sob a direção de seu bispo, santo Aignan, resistiu, o que permitiu a Aécio dispor do tempo necessário para reunir na Champanha, um exército não menos considerável que o dos invasores. A batalha decisiva teve lugar em ju­nho de 451, nos Campos Cataláunicos, provavel­mente a uns 20 quilômetros de Troyes. Aécio ga­rantiu-se com ajuda dos Visigodos e dos Francos. As cargas dos Visigodos de Teodorico foram tão furiosas que os hunos precisaram recuar e consti­tuírem, com suas carroças, um campo entrinchei­rado. Bateram em retiradas com os favores da noi­te. Teodorico encontrara a morte na luta, mas a vitória cabia aos exércitos romanos e germânicos.

A derrota sofrida por Átila foi grave. A cor­te de Constantinopla cessou imediatamente de pagar o tributo devido aos Bárbaros. A imbecili­dade dos Hunos nada mais era do que um mito. Na primavera de 452, Átila quis lançar, contra o Ocidente, uma nova ofensiva. Os Hunos atravessaram os Alpes orientais e invadiram o Vêneto. Aquiléia cai, apesar de uma brava resistência. É então que tem lugar o encontro, talvez lendário, entre o Bárbaro pagão e o papa Leão, que veio pedir-lhe para poupar Roma e deixar a Itália.

Mas são as notícias provenientes do Orien­te, mais do que as exortações do papa, que levam os Bárbaros a partir para o Leste. Aproveitando­-se da ausência de Átila, os exércitos romanos do Oriente haviam retomado a ofensiva, atravessado o Danúbio e instaurado a desordem na parte das hordas de Hunos mantida no local. O rei Bárbaro morreu miseravelmente durante uma noite de or­gia, tão logo chegou à Panônia.

Em seguida à morte do soberano, o rei gépida ArdaricO, e o rei ostrogodo Walamir se recu­saram a reconhecer a autoridade dos seus sucessores. Os revoltados foram apoiados pelos, Suevos e os Hérulos, também dissidentes. Ellao, primogênito do conquistador, e trinta mil guerreiros foram vencidos e massacrados na Panônia. O império dos Hunos iria se desagregar rapida­mente com os vencedores repartindo os territó­rios que até recentemente o constituíam. Duas tentativas de outros filhos de Átila foram nova­mente fracassadas e os Hunos foram, rechaçados para o leste do Dnieper, de agora em diante" ater­rorizados diante das armas dos Godos", segundo Jordanes. O que restou dos guerreiros de Átila colocou-se a serviço do Império do Oriente, sem­pre em busca de mercenários. Um pequeno prin­cipado huno chegou a se manter na "Pequena Cítia", isto é, na atual Dobroudja, na altura do delta do Danúbio. Na época de Justiniano, reen­contramos os Hunos fixados do Danúbio ao Cás­pio. Eles se dividem em duas tribos: os Kurtigurs, do Danúbio ao Don, os Outigurs, mais a leste. Eles são submetidos pelos Ávaros nos séculos VI e VII. Um reino huno efêmero reaparece no fim do século VII, mas é rapidamente subjugado pelos Khazars. No nordeste, os Hunos mais afas­tados fundarão a “Grande Bulgária" na confluên­cia do Volga e do Kama, e vão se dissolver entre elementos ugro-fínicos que povoam esta região. Na região do Danúbio, os últimos descendentes dos cavaleiros de Átila serão assimilados pela população eslava em formação.

OS HUNOS ORIENTAIS DEVASTAM A BACTRIANA E A ÍNDIA
Enquanto as hordas de Átila devastavam a Europa, uma outra parte do povo huno, fixada no Turquestão, voltava-se para as zonas sedentárias do Afeganistão e da índia. Os Hunos Heftalitas, às vezes batizados Hunos brancos, eram um clã turco-mongol de linhagem real, separados da grande horda que se dirigia para o Ocidente durante o século IV. Por muito tempo, não se ouviu falar dessas tribos, mas durante a primeira me­tade do século V, quando as grandes invasões irrompiam sobre a Europa, seu poder estendeu-se sobre a Ásia Central, do IlI ao mar de Ara!.

Em meados do século V, eles invadiam as terras tradicionalmente sedentárias Transoxiana e da Bactriana, atualmente o Uzbequistão e norte do Afeganistão. No decorrer dos anos seguintes, eles atacaram o Khorassan e o Irã norte-oriental então em mãos de soberanos sassânidas. O rei da Pérsia, Peroz, foi vencido e morto, Balkh e Herat, antiga Alexandria da Aria, ocupadas. O Estado sassânida representava ainda uma força con­siderável e os invasores voltam-se para os prin­cipados do atual Afeganistão Central e Oriental, preferindo atacar Kabul a Ctesifonte. Atravessan­do o Hindu-Cuxe, eles submeteram, sem dificul­dade, os pequenos Estados indo-europeus ali for­mados pelos Saces ou Yue-Tchés durante suas, últimas migrações.

A partir dos altos planaltos afegãs já era muito forte a atração pelo mundo indiano. O Pend­jab e todo o norte da índia eram dominados então pelo império gupta que sucedeu o Estado Indo­Cita dos Kuchanes. O soberano indiano Chandra­gupta rechaçou-os por duas vezes entre 450 e 460.

Se a Índia foi poupada, o mesmo não acon­teceu com a Bactriana e o Afeganistão, antigas terras de civilização greco-budista onde floresceu a delicada cultura do Gaudhara. As populações foram massacradas, o budismo perseguido, os movimentos destruídos. Nesse país de civilização sedentária, os Bárbaros continuavam a viver co­mo nômades, deslocando-se com seus rebanhos e carroças, sem terem o menor interesse nas cidades e nas culturas.

Aproveitando as divisões que enfraque­ciam a índia depois da morte de Chandragupta, os Hunos brancos prosseguiriam sua expansão nesta direção. O príncipe heftalita de Kabul con­quistou a bacia do Hindus. Seu filho Mihirakoula, fixado no Pendjab, continuou a conquista, subme­tendo o Cachemir e depois o Gandhara onde rei­nou de forma cruel e tirânica a religião budista.

Os ocupantes deviam ser muito pouco numerosos e terminaram por se mesclar com a po­pulação local.

Vencidos várias vezes pelos príncipes indianos, eles pareciam ter desaparecido no século VII sem deixar vestígios, a não ser nos massa­cres cometidos numa antiga terra civilizada onde gênio grego e a espiritualidade budista estavam harmoniosamente misturados.

Por CONRAD, P. As civilizações das estepes. Rio de janeiro: Ferni-Otto Conrad, 1979