Do Escravismo à Servidão

O problema das "origens" do feudalismo gerou inúmeras polêmicas sobre o fim do Império Romano no Ocidente (século V) e o surgimento das instituições feudais. Comumente, aceita-se a tese da junção de formas sociais romanas e germânicas que, justapostas, engendrariam as bases da sociedade feudal. Este ponto de vista destaca o fato de que a Idade Média, em suas origens, assiste ao encontro de povos e civilizações em estágios bastante desiguais de desenvolvimento. Teríamos, por um lado, sociedades com estruturas econômicas e sociais bastante complexas no interior do Império Romano e, de outro, os germanos com sua organização tribal e nômade (M. Bloch, 1947). Assim, o fim do império e a "quebra" da economia antiga se explicariam como resultado do "assalto germânico", que teria como conseqüência a destruição de boa parte das forças produtivas e a regressão econômica e social (Piganiol, 1965).

Outros historiadores têm procurado ver na própria crise interna do império, particularmente a partir do século IV, as causas da decadência romana e sua fragilidade em face dos bárbaros (F. Lot, 1950). É ao longo das crises, e das soluções encontradas pelos imperadores e juristas romanos, que se esboçarão as tendências que marcam o feudalismo: ruralização/latifundização e nivelamento social e jurídico dos trabalhadores, de um lado, e, de outro, a decomposição do poder público, com sua efetiva distribuição entre representantes do príncipe. De qualquer forma, a maioria dos autores contemporâneos concordaria com a afirmação de que "o império estava condenado" (G. Bloch, 1921), sendo que a presença das tribos germânicas teve o papel de tornar complexa uma crise em pleno curso. Assim, pode-se buscar no mundo romano os elementos constitutivos fundamentais do feudalismo: os latifundia, o colonato e a adscrição geral dos trabalhadores, enquanto os germanos contribuiriam com a noção de fidelidade pessoal, o patrimonialismo e a inexistência da noção de res pública (F. Lot, 1950).

Um outro aspecto da mesma polêmica, talvez mais ideologizado, reside na dificuldade em identificar o "motor" da crise. Para historiadores como Lot e G. Bloch, o expansionismo militar e sua crise, com a conseqüente dificuldade de refazer os contingentes de escravos, assim como o colapso das estruturas fiscais e financeiras e da administração municipal, teriam um papel central na crise romana. Já para outros, principalmente os historiadores reunidos em tomo da revista soviética Vestnik Drevnei lstorii, o motor da crise residiria nas sucessivas revoltas antiescravistas e camponesas (como as bagaudes) que assolam os últimos anos do Império. Para estes autores, as "causas" só poderiam ser internas e, sem dúvida, relacionadas diretamente às lutas de classes que oporiam senhores (potentiares) e a grande massa de trabalhadores rurais (humiliores). Tanto S. L Kovaliov quanto E. M. Schtajerman, mal grado as diferenças de ênfase, centram suas análises no que denominam a "revolução social antiescravista" que teria marcado, com vagas de intensidade crescente, a história romana dos séculos III, IV e V (Schtajerman, 1955).

Mais recentemente, esta mesma tese foi retomada por vários historiadores preocupados em demonstrar que, sob uma aparente calma, o Império era, em verdade, varrido por uma surda vaga de revolta social, normalmente enfrentada com incrível rigor pelas autoridades romanas (E. A. Thompson, 1952; J. Gagé, 1964; M. E. Mazza, 1970). Pela construção teórica mais elaborada, destacam-se dois historiadores contemporâneos: Perry Anderson (1977) e Pierre Dockès (1979), que denunciam a visão "de classe" da historiografia tradicional sempre disposta a ver nos movimentos populares manifestações de banditismo ou simples "tumultos". Dockès denuncia estudiosos como Le Glay (1975) que, mais preocupados com "a ordem social romana e sua manutenção" num mundo assaltado pela barbárie, não vêem, ou não querem ver, a profunda miséria das próprias populações romanas submetidas aos potentiares.

Para muitos destes autores, à história impunha decidir entre a civilização, ou seja, a ordem romana, ou a "anarquia bagaudes", como escreve Rémondon (1964). Neste sentido, parece fora de dúvida que Dockés está correto ao denunciar grande parte da literatura sobre a "crise" como apologética do Império e da sua ordem social. Na verdade, esta mesma ordem social estava seriamente abalada desde o reinado de Cômodo (180 D. C. ca*), quando surge um profundo movimento insurrecional na Gália. Este movimento, que se estende até o século V, parece ser conseqüência imediata da pauperização crescente das massas trabalhadoras do campo.

No seu conjunto, todo o Império parecia empobrecer: fora as grandes construções de Diocleciano (284-303) em Roma e as reformas feitas, talvez com excessivo luxo para a época, por Constantino (323-337) em Constantinopla nada mais se faz nas províncias; as cidades destruídas pelas primeiras invasões mal são reconstruídas; as minas são abandonadas e (sinal máximo do empobrecimento romano) os jogos circenses são interrompidos. Junto ao povo a situação é bem mais dramática: nos campos, a miséria lança sobre as grandes rotas bandos de vagabundos e desocupados que, em busca de trabalho, dinheiro ou comida, se transformavam em bandidos (O. Bloch, 1921). Daí era um passo para, em bandos mais ou menos armados, surgirem como real ameaça à ordem estabelecida. Não devemos esperar grupos organizados politicamente e agrupados em torno de uma ideologia qualquer. Os motivos da revolta são comuns a todos, e a organização inicialmente é acidental, fatos que talvez expliquem a força e persistência da revolta. Na Gália estas revoltas são denominadas bagaudes, antecessoras da tradicional jacquerie francesa. O movimento empolga, em pouco tempo, toda a Gália, forçando Diocleciano a enviar Maximiniano para reprimir o movimento de forma extremamente violenta. Depois de ficar restringido a Saint-Mar e Paris, o movimento bagaude retoma fôlego e expande-se novamente, inclusive para a Hispânia (Península Ibérica), e embora seja vencido não foi realmente derrotado, como bem assinala Georges Duby.

Paralelamente, também a Africa do Norte assistia a um amplo movimento de rebeldia social. Os camponeses pobres escudados em movimentos religiosos, como o cisma donatista (separação do bispo Donato, de Cartago, em 315, rompido com os cristãos que claudicaram durante as perseguições de Diocleciano), chegaram a contar com o apoio de 300 bispos (F. Lot) que constituíram uma seita - milites Christi -, que assume uma feição reformista no campo.

Estes circuncelliones pedem o fim da escravidão, a divisão dos bens e das propriedades e a abolição das dívidas, promovendo, para tal, uma verdadeira "guerra aos ricos" (G. Bloch), só interrompida pela invasão vândala no norte da África.

Tais revoltas, associadas à penetração, violenta ou não, dos bárbaros, provocam uma profunda sensação de insegurança e de crise nas autoridades da época. Como não poderia deixar de ser, esse sentimento é expresso também pela "inteligência" da época, normalmente cristãos, e mesmo pelos bispos. São obras como as de Salviano ou Agostinho que se constituem em fontes para os historiadores, que podem, assim, correr o risco de ler a história da época através destes homens. Salviano (Do Gubernatione Dei) é particularmente sensível às associações entre rebeldes e bárbaros, que transformavam algumas regiões em "lugares onde se vive freqüentemente a lei natural e onde tudo é permitido".

Devemos entretanto concordar com Duby quando escreve que tais revoltas permanecerão sempre "mal conhecidas, deformadas". Nada sabemos sobre as origens sociais destes movimentos; nem mesmo sabemos se seus protagonistas eram camponeses livres associados a escravos ou apenas homens livres. De qualquer forma, Dockès tem razão em pedir um maior espaço para os movimentos sociais da época (e não só as doze linhas de Lot no seu excelente livro). Mas isso não é tudo, pois inferir daí que o Império romano sucumbiu ao peso da revolta social, como quer, por exemplo, Kevaliev, é ir longe demais. Na verdade, a mesma série de fenômenos que deu origem às revoltas sociais parece ter impossibilitado, ao Império, manter a ordem interna e a defesa dos limes contra a pressão germânica. Desta forma, entenderíamos que um Estado forte e rico não seria derrubado nem "por dentro" nem "por fora".

Historiadores como A. Boack, caminhando um pouco nessa linha, têm buscado outros elementos para explicar a "queda" do Império. Surgiu, assim, amplo debate sobre o movimento populacional do Império, opondo, de um lado, Boack com a tese de despovoamento maciço (em virtude das pestes e das guerras danubianas) e, de outro, M. Finley que considerava o termo despovoamento muito forte para ser aplicado a Roma e seu Império. Para Finley (1966) há uma extensa inter-relação de fenômenos que abrangem da pressão bárbara nas fronteiras à necessidade de maiores impostos e mais homens para manter um exército contra estes mesmos bárbaros. A. Bernardi (1965) também destaca o peso do exército no conjunto da estrutura estatal romana, assim como da burocracia responsável por instituições próximas de um "wellfare state" (distribuição dos alimenta, a anona etc...). Diante de tantas necessidades, o sistema fiscal teria falhado, permitindo que o mais rico segmento social do Império evadisse e deixasse de pagar impostos. Excluídos os potentiores, coube à grande massa do povo, principalmente no campo, arcar com as despesas do Estado. Ao mesmo tempo, anunciavam-se duas conseqüências imediatas: as revoltas (mas também o encomendatio) e a bancarrota do Império.


Avanço social dos escravos, recuo jurídico dos homens livres.

E intensos conflitos de classe da época do Baixo Império acabam por se condensar em torno dos séculos IV-V, quando sob efeito da desorganização interna, gerada pelas comoções sociais, o Império cederia sob a pressão externa. Assim, o século V marcaria o fim do Império e o fim do escravismo, que cederiam lugar, respectivamente, a uma constelação de reinos bárbaros mais ou menos romanizados e ao desabrochar de relações sociais de novo tipo como as diversas formas de servidão. Estariam se constituindo os fundamentos da Idade Média e do regime feudal.

As revoltas sociais e a queda do Império não foram, entretanto, suficientes para extinguir uma instituição como o escravismo que, numa sociedade rural, garantia a mão-de-obra mínima necessária aos grandes domínios. Afirmações como as de G. Hodgett (1971), de que "as grandes propriedades não funcionavam bem quando trabalhadas por escravos", daí sua substituição por colonus, padecem de excesso de simplificação. Tanto as grandes propriedades funcionavam com escravos que estes continuarão a aparecer nos documentos dos domínios até quase o século XI.

Para resolver esta dificuldade, P. Dockès elaborou um sofisticado esquema explicativo, onde mostra não o "fim" do escravismo antigo, mas os "fins". Segundo ele, o escravismo teria ao menos três fins ou crises: a primeira, ao longo do século III, quando se daria um movimento de reforço do grande· domínio rural (villae) com a montagem do sistema de colonato e o "estabelecimento dos escravos", agora homini casati (utilizaremos, doravante, a expressão "estabelecimento dos escravos" e "escravos estabelecidos" como correspondentes a casati, housed, chasés, em vez de casamento ou casado em face da óbvia confusão dos termos). Após a crise, como é sabido, deu-se todo um movimento de reconstrução da ordem imperial, com os governos fortes do século IV, particularmente com Diocleciano (284-303) e Constantino (323-337), responsáveis pelo restabelecimento das condições sociais anteriores. A escravidão volta a avolumar-se, embora o colonato e os homini casati comecem a representar o início das transformações em direção a relações sociais de produção de um tipo novo, como veremos mais tarde.

Passado o período de tranqüilidade, a ordem imperial é quebrada e a România é submergida pelas vagas germânicas que provocam a extinção (apenas momentânea, conforme Dockès) da economia antiga com a desaparição das villae, e conseqüentemente do escravismo, em face das invasões, fugas maciças e revoltas como as que anteriormente descrevemos. Desta forma, o século V assiste ao segundo fim do escravismo antigo. A vaga germânica traria em seu bojo formas de organização da produção estranhas ao antigo mundo mediterrâneo, como a comuna rural. O período que se estende do século V ao VII é visto como "terra arrasada", de onde brotam as novas formas sociais, o que, sem dúvida, entra em choque com o conhecimento mais aceito acerca da continuidade da economia antiga e, em particular, das instituições latinas.

Por fim, com as guerras imperiais dos carolíngios, teríamos o último movimento de escravização, com o restabelecimento de fornecimentos mais ou menos regulares de escravos à Itália e ao Reino franco, provenientes das fronteiras saxônias, da Britânia e dos limites eslavas. Este movimento, entretanto, torna-se insignificante com o fim do império unificado no Ocidente (e das conseqüentes guerras), impedindo um reabastecimento regular dos mercados escravistas. Simultaneamente, a expansão dos ideais cristãos, a mortalidade, as fugas e o movimento geral em direção à servidão dariam um fim definitivo ao escravismo (séculos X ou XI).

Um primeiro problema que a tese de Dockès coloca é a questão das fontes. A afirmação do desaparecimento "momentâneo" das villae e do escravismo, a partir do século V, parece traduzir a dificuldade documental e não uma realidade que, de resto, permanece bastante mal conhecida. Duby chama nossa atenção para o fato de que a documentação mais exata sobre o problema só começa a aparecer em termo do ano 800 e, assim mesmo, nas províncias do Império Carolíngio, ou sob sua influência, como Lombardia, Reno, Neustria e Austrásia. Pode-se, desta forma, tomar com alguma facilidade a ausência de documentação como uma ausência das formas sociais romanas no período. Por outro lado, nada parece apoiar a tese de que a penetração germânica tenha gerado a desaparição da villae. A grande maioria dos autores parece concordar com a relativa continuidade entre os latifundia, ou seja, a grande propriedade fundiária escravista, a villa e o domínio medieval. Moses Finley descreve uma nítida tendência ao aumento do tamanho das explorações rurais romanas ao longo do Baixo Império, chegando alguns autores, como Clamette, a afirmar que na maior parte dos casos é a villa da época galo-romana ou bárbara que fornece seu quadro à senhoria, com o que concorda Duby ao dizer que o quadro dominial é antigo embora os documentos só o revelem com clareza no século IX.

Assim, parece ter havido uma justaposição de instituições e culturas, com as formas germânicas convivendo, lado a lado, com as formas latinas.

Charles Parain (C.E.R.M., 1971), retomando Marx e Engels, procura mostrar que "sob uma camada de romanidade" sobreviviam, particularmente na Gália, velhas estruturas herdeiras de relações sociais de cunho tribal e coletivista e que teriam sido reativadas com a penetração bárbara. Esta é, sem dúvida, uma proposição com a qual M. Bloch concordaria: a velha comunidade celta - e Bloch acreditava nela - não teria desaparecido inteiramente em face das noções de propriedade trazidas pelos romanos. Tais "sobrevivências" teriam adquirido importância através da recriação de um campesinato livre a partir da população germânica. O importante é o fato de que este novo campesinato se organizará sob formas comunais, estendendo sua área útil, através de um continum agrário, aos bosques e prados. Tal apropriação coletiva de bens naturais criará uma barreira bastante eficaz à completa expropriação do camponês, e garantirá a ele, apesar da sua pouca terra, condições de sobrevivência.

Fustel de Coulanges e R. Latouche negam categoricamente a origem germânica do uso comunal da terra, acusando seus oponentes de utilizarem fontes tardias (século XI ao XV) para provar suas teses. Para ambos os autores, as práticas comunais eram desconhecidas dos germânicos, entre os quais já existia a propriedade privada da terra. Obviamente, a questão assumiu um caráter "político-ideológico", já que colocava em questão teses defendidas pelo marxismo. Marx e Engels (particularmente este, na Origem da Família...) retomam o erudito alemão Von Maurer, que procura, através dos poucos documentos disponíveis (César, Tácito e Plínio, o Velho), comprovar o caráter coletivo da exploração da terra entre os antigos germanos. Entretanto, os historiadores, e mesmo R. Latouche (1956), concordam em que a forma mais antiga de propriedade conhecida entre os germanos tinha o caráter familiar e não individual.

O mais importante, porém, é que o sistema de cultivo germânico era de caráter comunal. Junto à aldeia, cada família possuía uma faixa de terra estreita e longa, correspondente à ação da velha charrua germânica. Tais faixas de terra obrigavam a uma estreita solidariedade entre os diversos vizinhos, dando origem ao sistema denominado campo forçado, onde os diversos vizinhos possuíam cultivos homogêneos que facilitavam o trabalho comum. Também eram de exploração comunal os bosques e prados, sendo completamente desconhecida a apropriação de seus recursos. Estas práticas, apoiadas numa vigorosa tradição costumeira, parecem ter se alastrado por toda a antiga România, ou ao menos às partes não diretamente incluídas na economia mediterrânea. Várias tradições célticas teriam sido reavivadas pelo costume germânico, garantindo ao novo campesinato condições de sobrevivência como homens livres. Mesmo com o processo de sujeição em massa à servidão, tais práticas tornaram-se uma garantia de recursos extras aos trabalhadores rurais.

Assim teríamos convivendo, lado a lado, o trabalho escravo e o camponês livre com o trabalho comunal e a propriedade familiar. O processo que deve ser aclarado é o seguinte: como é que homens livres, com pleno acesso à terra, perderam sua liberdade e escravos ascenderam a uma situação de semiliberdade, igualando-se aos camponeses antes livres? Melhoria social e sujeição jurídica são termos de uma única equação. Conforme o escravo melhorava sua situação como "homem estabelecido", os demais segmentos sociais de trabalhadores rurais iniciavam uma curva descendente na escala jurídica da sociedade, perdendo sua condição de livres.

No final do Império Romano, a total liberdade poderia ser tão desastrosa para um homem desprovido de riquezas e sem garantias políticas quanto a escravidão completa. O ato de libertação do escravo não lhe dava acesso imediato à cidadania (em alguns casos tinha que esperar duas gerações) e, ao mesmo tempo, o tornava bastante vulnerável. Um documento lombardo, datado deste período, exemplifica esta situação: "seus filhos e filhas... não querem os quatro caminhos (expressão que representava a completa liberdade) e se contentam... com a tutela e proteção dos padres e diáconos de Santa Maria Maggiore de Cremona" (M. Bloch, 1947). Assim, podemos deduzir que havia graus diferentes de liberdade: os documentos da época falam em manumisio cum obsequio e manumisio sino obsequio. No primeiro caso, o ex-escravo permanecia sob o patronato do antigo senhor, fazendo parte de sua clientela (com uma série de obrigações estabelecidas), enquanto no último, abriam-se para ele os "quatro caminhos do mundo", o que era bastante raro. O mais corrente, porém, era o senhor alterar o caráter do trabalho escravo, em vez de simplesmente extingui-lo. A maioria dos senhores tratava de substituir as grandes equipes de escravos, ou seja, a grande economia agrária escravista, por um sistema mais adequado, economicamente, às novas condições. Os grandes exércitos escravos, divididos em decúrias, não mais compensavam. Principalmente, não compensava ajustar o contingente escravo a partir dos momentos de "pique" da produção cerealífera, gerando no restante do ano uma imensa capacidade ociosa, que diminuiria os rendimentos e manteria o cálculo econômico do domínio em permanente tensão.

Pelo exposto, não se pode deduzir que a escravidão, em geral, era antieconômica. Afirmações como "a escravidão não compensava e por isso morreu" (F. Engels, 1884) não devem ser levadas ao pé da letra. Morreu a grande exploração escravista, que é substituída por pequenas equipes de escravos cujo trabalho é complementado, nos momentos de "pique", com trabalho remunerado e/ou compulsório. A simples afirmação de que a escravidão era antieconômica, como já vimos, esbarra num fato: sua continuidade ao longo da Alta Idade Média. Alguns exemplos são esclarecedores: a Capitulare de Villis et Curtis, no primeiro terço do século IX, afirma que " ... se devem confiar vacas aos nossos escravos para que levem a cabo os serviços que devem" (Ed. Boretius, 1881); já o Políptico da Abadia de Saint-Germain-des-Prés informa que " ... a mulher escrava tece sarjas com lã do senhor e alimenta as aves do curral ... ", e o Políptico de Irminou enumera 220 escravos... (Nota: políptico é uma palavra proveniente do latim e quer dizer registro das contas, bens ou rendas). Mesmo as pequenas equipes de escravos não são mais mantidas como na época romana. Os senhores passam a entregar a seu escravo um pequeno lote de terra (casa) que garantiria a reprodução da família escrava e, simultaneamente, desobrigaria o senhor e aliviaria o cálculo econômico do domínio. Este escravo estabelecido, agora homo casatus, deveria entregar ao seu senhor uma renda in natura (produtos variados), possuindo uma certa autonomia em relação a sua terra. Sob influência do cristianismo, adquire o direito de contrair casamento, poupar um pequeno pecúlio e mesmo comprar terras. Entretanto, fazia parte do domínio e podia ser vendido ou doado com o mesmo. Mas, principalmente, tinha a obrigação de fornecer trabalho gratuito ao senhor a qualquer momento que fosse solicitado, mesmo em prejuízo do seu próprio cultivo.

O processo de estabelecimento dos escravos não foi imediato e geral. A própria legislação carolíngia distinguia entre os "mancipia non casata" ou "servi manuales" e os "jam casati". Mesmo nos domínios, onde existia um grande número de casata (escravos estabelecidos em lotes por seus senhores), coexistiam outros escravos ainda na situação de bens móveis, também chamados de prebendados (ou seja, que recebiam sua manutenção diretamente do senhor), embora seu número decresça rapidamente. Havia, ainda, escravos que trabalhavam no campo sem casa. Na abadia de Prüm, os tenentes de mansos livres punham seus escravos à disposição do senhor em vez de pagarem eles mesmos as obrigações devidas. A maioria, porém - devemos reafirmar -, era constituída de escravos estabelecidos no interior do domínio em lotes denominados mansus servilis. O manso era a unidade econômica e fiscal básica no interior dos domínios (um domínio estava dividido em vários mansos livres ou servis, como veremos proximamente).

Paralelamente ao estabelecimento dos escravos expande-se o colonato, ou seja, a adscrição do antigo trabalhador livre à terra, o que é definido por F. Lot (1950) como um arrendamento perpétuo e hereditário, para quem a sujeição à terra era um direito e uma necessidade.O colonato é, inicialmente, inaugurado pelos próprios imperadores nos seus imensos domínios africanos, expandindo-se mais tarde para a Itália e Gália, imitado pelos grandes senhores e, após o século V, pela aristocracia germânica e a própria Igreja. Visando inicialmente evitar o despovoamento do campo e a fuga ao fisco, o colonato transforma-se de um instrumento privado em uma prescrição de direito público, que assegurava a cobrança dos impostos, principalmente in natura. Os colonos estavam submetidos a dois tipos de obrigações: as prestações in natura, cujo montante era submetido a uma convenção coletiva denominada Lex Saltus (saltus ou fundus é um nome dado comumente ao grande domínio), e as corvéias, ou seja, trabalho obrigatório devido ao senhor. Devemos notar que em matéria de obrigações as diferenças entre o homo casatus e o colono são de forma e intensidade. Enquanto o escravo estabelecido não possui qualquer anteparo jurídico e, portanto, é suscetível a uma exploração desenfreada, embora mantida no nível do possível, o colono possui um texto jurídico e/ou um conjunto de tradições que evitam uma superexploração. A generalização do colonato parece se dever fundamentalmente à insegurança geral da época e, fundamentalmente, à tomada de consciência por parte dos camponeses da sua fragilidade perante o fisco.

Os camponeses livres (rusticus, vicanus ou agricola) também se tornam objeto de exploração fiscal por parte dos curiales (indivíduos encarregados da arrecadação dos impostos e de quem Salviano, o bispo de Marselha no século V, dirá: "Tantos curiales, tantos tiranos"), obrigando-os a buscar junto aos senhores (potentiores). Tal proteção se concretizava através de um contrato denominado precária, pelo qual o pequeno proprietário oferecia sua terra, que lhe era devolvida como concessão vitalícia ou hereditária por uma vida (ou seja, incluso o filho do precarista), findo o que tornava-se necessário renovar o ritual de sujeição. Algumas vezes, o camponês obtém o gozo de uma terra muito mais ampla do que seu antigo alodio (palavra proveniente de alod: terra de plena propriedade do seu ocupante), o que faz com que o contrato perca seu caráter leonino. Quando o motivo fiscal desaparece, com o próprio fim do Império, o contrato de precária continua sujeitando amplos segmentos camponeses, principalmente na época merovíngia. Tal fato se deve à preeminência, agora, de outros fatores, como: a) os meios de subsistência restritos dos camponeses; b) a persistência das dívidas com os senhores; e c) o clima geral de insegurança que fazia do camponês pasto para todo o tipo de disputas. A extensão do regime de precária, para aqueles que ainda tinham um lote de terra, e o colonato, para aqueles que nada tinham (ao lado do movimento do estabelecimento dos escravos), contribuíram para a sobrevivência do grande domínio.

Os mesmos fenômenos promovem a homogeneização da condição social – e mais tarde jurídica – dos trabalhadores rurais, camponeses e escravos (e mesmo libertos e bárbaros), lançando as bases de um novo tipo de relação de exploração: a dependência servil.

Todas as três categorias passam a dever ao senhor o pagamento de rendas in natura, chamadas em latim agrarium, o trabalho gratuito denominado corvéia. Obviamente, o grau de exploração do trabalhador depende de sua situação anterior, o que até o século X será mais ou menos lembrado. Desta forma, um camponês tornado tenente de uma terra dominial, seja isoladamente ou com toda a sua aldeia (vici), não tem as mesmas obrigações que um escravo estabelecido. Porém, não são as rendas in natura que caracterizam novo regime. A relação econômica fundamental que caracteriza o regime dominial, base da sociedade feudal, são as prestações de trabalho que garantiam o cultivo das terras do senhor: "de fato... os donos de grandes propriedades concedem tenências, não para receberem rendas, mas sobretudo para conseguirem serviços regulares dos trabalhadores agrícolas" (G. Duby, 1964). Estas doações de lotes de terras aparecem como a forma inicial de doação de um feudo.

Vejamos como era a organização, no domínio, dos diversos mansos (mansi). O domínio ou senhoria estava dividido em três grandes partes: a reserva indominicata, as tenências camponesas e as terras comuns. A reserva, terra indominicata ou manso senhorial, era a parte do domínio pertencente diretamente ao senhor. Aí se localizava a sede senhorial chamada curtis, em latim medieval; corte em italiano; Hof em alemão e manoir ou manor pelos normandos (que introduziram a expressão na Inglaterra). Sua administração era realizada pelo senhor ou um encarregado (major ou villicus, em latim; maire, em francês; mayer, no baixo alemão e stewart ou bailiff em inglês). As terras dos camponeses, fossem eles homini casati ou colonos eram denominadas mansos (mansus, em latim; hufe, em alemão; hide, em inglês e masia, em catalão), e correspondem a tenências (tradução de tenure, proposta por Pedra Moacyr Campos e que mantém a fidelidade à raiz latina, tenire), ou seja, terras em uso pelos cultivadores, doravante tenentes (do francês tenancier), sobre as quais não possuíam a plena propriedade (franc-alleu, alod, alódio). Estes mansos (em latim lar ou fogo, no sentido de moradia) estavam divididos conforme a condição jurídica de seus ocupantes. Assim, tínhamos mansos livres (mansus ingenuilis) e mansos servis, como podemos ler no Políptico da Abadia de Saint-Germain: “... Focaldo, escravo, e sua mulher, escrava chamada Ragentisma, homens de Saint-Germain ocupam um manso servil...” Dependendo da situação anterior do seu ocupante, o manso impunha uma série de obrigações e alguns direitos que aos poucos são confundidos, a ponto de no século XI não mais existirem diferenças entre mansos livres ou servis. Entretanto, até esta época o manso continuará como a unidade econômica básica e a chave para a compreensão do funcionamento da economia dominial. Marc Bloch (in Seigneurie Française et Manoir Anglais, Paris, A. Colin, 1960) nos dá a mais clara descrição de um manso: prédios (no sentido de benfeitorias), campos, prados, hortas freqüentemente dispersas sobre uma área centralizada numa casa (lar ou fogo, donde mansus) e que se constituía numa unidade fiscal e de administração para o senhor, primitivamente associada a uma família – conforme era compreendida na Idade Média.

Assim, o domínio ou senhoria aparece como "uma empresa econômica fundada sobre a colaboração do domínio (agora no sentido restrito do curtis) e das tenências (os mansos), tendo estas últimas como fornecedoras de mão-de-obra" (M. Bloch), ou como prefere R. Latouche "uma grande propriedade trabalhada por pequenos cultivadores". A divisão da antiga Villa entre pequenos cultivadores explicar-se-ia através da necessidade de: 1) manter o trabalhador preso à grande propriedade, através de usufruto de uma terra, e 2) o interesse em expulsar da empresa rural os custos de reprodução da mão-de-obra necessária, particularmente no caso dos escravos. Na verdade, o baixo nível técnico obrigava ao uso intensivo de mão-de-obra (o Monastério de San Giulia de Brescia dispunha de cerca de sessenta mil jornadas de trabalho por ano, no começo do século X), que obviamente não podia ser mantida através de salários ou com moradia e alimentação garantidas pelo senhor (como no caso dos escravos). Desta forma, os mansos forneciam todo o trabalho necessário para o senhor (que poderia ter alguns escravos e assalariados), evitando o desembolso de numerário, seja na compra de escravos (cada vez mais difícil), seja no assalariamento. Inversamente, ao longo de toda a Alta Idade Média, os camponeses tenentes de mansos estavam obrigados à entrega de ovos, galinhas, leitões, como uma renda devida ao senhor, além do que deviam também algumas moedas de prata, requisitadas como pagamento pelo uso de benfeitorias senhoriais ou antigos impostos que os senhores recolhiam. Porém, um ponto deve ficar claro: a relação econômica fundamental era a prestação de corvéias, ou seja, trabalho gratuito. As rendas não eram suficientes para sustentar a classe senhorial, constituindo-se num ganho suplementar e nunca na relação básica.

O modelo que acabamos de descrever é considerado a forma clássica de funcionamento do regime dominial: a profunda associação entre a reserva indominicata (a terra do senhor) e as tenências (mansos) através da prestação de trabalho gratuito (corvéia) por parte dos camponeses tenentes. Tal modelo foi construído a partir da documentação francesa, particularmente de Saint-Germain próximo a Paris, publicada por B. Guérard. Entretanto, conforme avançamos em direção ao século X e às regiões periféricas ao Império Carolíngio, parece-nos difícil reafirmar o modelo parisiense. Na Germânia, por exemplo, a associação entre a curtis ou reserva senhorial e os mansos só parece real no caso dos mansos servis, cujo trabalho é complementado por equipes de escravos (ainda numerosos nas áreas periféricas, como a fronteira eslava ou a Inglaterra). Na Itália, as prestações in natura e trabalho são logo substituídas por pagamento em dinheiro: os tenentes de San Giulia vendiam seda no mercado de Brescia, no século X, e entregavam ao senhor cinqüenta soldos por cada dez libras de produto vendido (G. Luzzatto, 1950). Por outro lado, o sistema parece desabar em face da confusão entre mansos livres e servis, com a tendência à equiparação das obrigações de ambos em face da pressão interna causada pelo crescimento da população e da produção agrícola.

Em suma, o modelo de funcionamento clássico do domínio tem apresentado sérias dificuldades em face de uma documentação mais recentemente publicada. Sobretudo a visão de uma economia fechada ou natural parece estar sendo colocada em dúvida, já que a publicação de novos documentos mostra a presença marcante do comércio local e da moeda na vida camponesa durante a Alta Idade Média. O próprio documento-base do modelo dominial francês, a Capitulare de Villiset Curtis, já apontava para este fato. O item 28 deste documento estabelece que a cada Quaresma "no domínio do Ramos cuidem (os camponeses) de acordo com nossas prescrições de trazer o dinheiro proveniente dos nossos benefícios...”. Ao mesmo tempo, pode-se constatar, através do convite à compra de melhores sementes, a existência de um mercado local voltado para as necessidades de uma comunidade rural. Já o Políptico da Abadia de Irminon refere-se à distribuição diária de ao menos quatro dinheiros aos pobres, movimentando um total de mais de mil e quinhentas peças por ano. Sem dúvida, são sinais da reforma monetária empreendida pela monarquia franca, no século VIII, e do renascimento – na verdade retomada – da vida urbana e do comércio interno entre 750 e 850, na região entre o Sena e o Reno. As listas de ofícios existentes para os séculos IX e X mostram uma sociedade mais diferenciada no seu aspecto profissional, menos modelisticamente polarizada entre camponeses e senhores. Em Saint-Germaindes-Prés, a lista de trabalhadores considerados necessários engloba as seguintes profissões: ferreiros, prateiros ou ourives, sapateiros, curtidores, carpinteiros, fabricantes de escudos, pescadores, passarinheiros, roupeiros, "gentes que saibam fazer cerveja", padeiros, "gentes que saibam fabricar redes para a caça, a pesca e a captura de enxames”...

Parece difícil aceitar o modelo produzido a partir do conceito de economia natural, como Dopsch, Pirenne e os historiadores soviéticos, e mesmo o conceito de "consumo agrário direto" proposto por Slicher Van Bath parece colocar idênticos problemas. Entretanto, o que chamamos de "regime dominial clássico" - villa, composta pela casa do senhor com a reserva (indominicata) mais as terras e bens comunais rodeados pelas tenências, livres ou servis, que deviam rendas, em dinheiro e/ou em espécie, além das corvéias que garantiam o cultivo das terras senhoriais (a reserva indominicata) - deve ser mantido como o melhor modelo para a compreensão da economia da Alta Idade Média (França Carolíngia).


Reis fracos, senhores fortes num tempo de guerras.

Nos séculos IX e X a economia e a sociedade no ocidente cristão sofrem profundas modificações. De um lado, dá-se uma homogeneização da condição jurídica das camadas pobres da sociedade, com a confusão entre a condição de livre e de escravo, de colono e de homem (escravo) estabelecido. Tal confusão acabará por nivelar as obrigações que ambas as categorias deviam aos seus senhores. Ao mesmo tempo, os camponeses livres, proprietários alodiais de suas terras, sofreram dura pressão objetivando sua colocação sob "proteção" de um poderoso. Os próprios direitos que distinguem o livre (franc) do resto da população acabarão se tornando um fardo: a obrigação de comparecer aos tribunais e de acompanhar o senhor nas suas expedições militares são encargos por demais pesados para quem deve cuidar de suas próprias terras, que ao somar-se à insegurança produzida pelas invasões húngaras e normandas explicarão a generalização da condição servil.

Os camponeses preferiam colocar-se sob a proteção de um senhor, ao qual entregavam seu alódio, recebendo-o de volta como uma tenência e pagando direitos e serviços, em troca de proteção e dispensa de uma série de dispendiosas obrigações. Em troca desta segurança, no mais relativa, o antigo camponês alodial equiparava-se com o antigo colono e, mesmo, com os homini casati. A desaparição das diferenças entre livres e não-livres anuncia uma mudança essencial na sociedade: o aumento do poder dos senhores, às expensas do Estado.

O antigo Estado romano – o onipresente Império – foi substituído, a partir do século V, por reinos bárbaros de estruturas diversas e frouxas em face das instituições políticas romanas. Entretanto, as próprias necessidades da guerra e da conquista de terras levam ao fortalecimento dos laços que uniam o chefe do bando armado com seu próprio povo. A base deste novo Estado é um juramento de fidelidade pessoal entre o chefe e seus companheiros de guerra (os comes), o que é um fato novo. Em Roma, a fidelidade era devida ao Estado e às Instituições, e quando se desvia para o Imperador é através do culto imperial, ou seja, a divindade que encarna o poder do Estado. Com os bárbaros, a fidelidade é um problema pessoal, de homem a homem. Assim, o rei manterá relações de fidelidade com cada um de seus grandes nobres, procurando reduzir a influência da aristocracia guerreira, sempre muito influente nos negócios do "povo". O caminho escolhido pelo rei é a compra da fidelidade através da doação de terras, que ademais impunha deveres aos que as recebiam em face de quem as davam. Para os reis bárbaros, o reino é compreendido como uma posse patrimonial que pode ser partilhada ou dada em usufruto quando o rei deseja retribuir um serviço ou doar condições para que um servidor se sustente e mantenha os serviços de que a realeza necessita.

O mecanismo, desta forma, encerra em si uma profunda contradição: permite ao rei comprar a fidelidade de seus servidores mas, a longo prazo, fragmenta o reino. Ao mesmo tempo a nobreza guerreira mantém uma presença importante nos conselhos que assessoram o rei, e que representam o povo. Não é o rei que encarna o, povo, pois esse não é um magistrado. Seu poder provém do fato de ser chefe da guerra e da conquista. A representação popular fica a cargo do mallus, conselhos locais que cuidam da administração e da justiça e que, mais tarde, são reduzidos a funções judiciais e aprisionados por um senhor que passa a presidi-Ias. Este mallus vai do nível local ao do Reino. A assembléia geral, que se torna o mallus do palácio, é presidida pelo chefe guerreiro (judex), inicialmente o rei e, a partir dos últimos merovíngios, o conde (comes ou maire) do palácio. Significativamente a extensão da noção de monarquia patrimonial às finanças impede a existência da noção de erarium, o erário, ou seja, o tesouro do Estado independente do tesouro do rei, o que possibilitava – como no caso das terras – a doação pelo rei de uma fonte fiscal sob a forma de beneficium, visando manter ou retribuir um servidor.

Também a justiça sofre profundas mutações: o rigor romano na punição dos crimes (particularmente com Constantino) cede lugar a uma noção "privada" da lei. Para os germanos não há uma idéia de que o crime fere o Estado mas, sim, a família da vítima. Assim, o culpado é obrigado a pagar uma multa (o wergeld) à família da vítima, sendo que o tribunal deve atuar como intermediário entre as partes. A existência de um Estado com tais características é fundamental para a compreensão da vassalagem e do uso do benefício. Para a monarquia franca, particularmente sob os merovíngios, a única forma disponível de pagar por um serviço ou de garantir que um servidor tenha condições de cumprir com suas obrigações foi através da doação de um benefício (beneficium, henner), a um ponto tal que alguns autores (J. Calmette, 1947) afirmam que a base do regime feudal é a concessão do benefício.

Mas, o que era o benefício? Na verdade, tudo poderia ser transformado em benefício, desde uma terra até um imposto devido ao rei, e que este cedia a um terceiro. O benefício deveria garantir a manutenção do servidor do rei, num momento em que cargos e serviços não podiam ser remunerados com salários. Assim, o rei usando suas prerrogativas patrimoniais cedia um fisc (ou feudo) que possibilitasse ao beneficiado cumprir com certas obrigações (militares, administrativas, judiciais ou de qualquer outro tipo). Tal prática foi continuada pelos carolíngios, embora alguns deles tenham se esforçado para manter sob seu controle os mecanismos de autoridade. As invasões dos séculos IX e X, porém, acabam por pulverizar os últimos esforços nesse sentido. Ao doar um benefício, o rei normalmente cedia com as terras os seus direitos sobre a população local, de forma tal que o beneficiado substituía o rei em seu domínio. O risco de autonomização dos diversos domínios era teoricamente evitado com o juramento de vassalidade, ou seja, o devotamento pessoal, contrato entre doador e receptor de um benefício. Tal juramento fazia do beneficiado um homem do seu senhor, para com quem doravante teria obrigações estipuladas contratualmente. A quebra da lealdade devida (felonia) implicava, automaticamente, a perda do benefício recebido. Este liame pessoal, prática germânica que unia o chefe da guerra aos seus guerreiros, passa a ser intimamente associado à doação de um benefício, como garantia de lealdade.

A união entre benefício e vassalidade é considerada, pela maioria dos historiadores, como início da época feudal. Os carolíngios vão incentivar a doação de benefícios em plena posse mediante a vassalagem, o que implicava o juramento de fidelidade, permitindo que seus "fiéis" possam por sua vez fazer doações, multiplicando, assim, a "espessura" da hierarquia feudal. Este desejo, nítido a partir de Carlos Martel (prefeito ou judex do mallus de 715 a 741), tem uma finalidade básica: aumentar o número de vassalos que deveriam comparecer à guerra com seus vassalos (os chamados "vavassalos"), ou seja, o número de vassalos pertencentes à categoria dos miles (cavaleiros), pequena elite constituída de ginetes (nem todos os nobilis, senhores com um benefício ou feudo, eram cavaleiros, miles). Sob outro aspecto, o desejo do soberano, ou dos seus prefeitos, vai de encontro ao dos senhores: a eles interessa a vassalagem, pois, como pagamento dos serviços prestados, o soberano entrega-lhes terras em benefício.

Havia duas formas básicas de o soberano conseguir os serviços de que necessitava, ou ainda recompensar as pessoas de sua confiança: mantê-los no seu palácio, sustentando-os, ou doar benefícios, com o que eles se sustentariam (no início poderia ser dinheiro, rendas ou terras). Logo formar-se-á uma distinção entre estas duas formas: os primeiros vão ser considerados vassus pobres, portanto, inferiores aos segundos, principalmente quando estes recebem terras como benefício. A doação de benefícios (a expressão será substituída por fief ou feudum por volta de 1080 em Francia, enquanto na Alemanha continuará a vigorar a expressão beneficium aos poucos substituída por Lahen), como forma de pagamento e manutenção dos laços de fidelidade, vai ser grandemente incentivada pelos carolíngios, que procuram utilizá-la como forma instantânea de ação, sem se aperceberem de suas prováveis conseqüências.

A união entre benefício e vassalagem progride rapidamente com os carolíngios (714-987), particularmente sob Pepino I (741-768), em face das crescentes necessidades militares e políticas (a unificação dos francos). Marc Bloch identifica este momento como sendo fundamental para o estabelecimento da sociedade feudal: agora temos a conjugação da grande propriedade, com uma elite militar e o trabalho compulsório por parte dos camponeses. É interessante notar que se esta união favorece, de imediato, a ação dos carolíngios, a partir de um rei menos enérgico ela dará origem a inúmeros problemas de autoridade: o surgimento de uma vassalagem ampla e a difícil distinção de quem é senhor lígio (de lidig, principal), ou ainda o abandono da vassalidade real pela de um nobre mais rico em terras. Por outro lado, a identificação entre vassalidade e benefício é tão forte que os nobres obedecem o soberano porque são seus vassalos beneficiados e não por serem seus súditos.

por TEIXEIRA, F. C. Sociedade Feudal. São Paulo: Brasiliense, 1984.


Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira

Neste texto o autor busca de uma forma simples e concisa expor as origens das relações de trabalho e da sociedade feudal. Com base na discussão de vários historiadores, com pontos de vista nem sempre concordantes, traça as modificações destas relações e seu impacto desde a desagregação do império romano até o império carolíngio. Sua análise contradiz algumas idéias como a do fim do escravismo com o fim do império romano. Na verdade, a relação entre senhor e escravo apenas foi alterada, de escravo, visto como propriedade e totalmente sustentado pelo senhor, passou a servo com obrigações de busca de sustento próprio, ao mesmo tempo produzindo o sustento do senhor em sua propriedade. Estas alterações influenciaram também as relações com o camponês livre, que para fugir do peso dos impostos passou a trabalhar também como servo nas grandes propriedades.

A origem dos feudos foi baseada na junção das culturas romana e germânica, os romanos contribuíram com suas noções de colonato e latifúndio, enquanto os germanos com suas noções de propriedade e fidelidade pessoal a um rei ou general. Assim estabeleceu-se o feudo: colonos agricultores com fidelidade ao senhor proprietário das terras então arrendadas.

Nesta nova forma de relação, o senhor beneficia com a terra enquanto o colono fornece seu trabalho. No final tem-se a sociedade feudal: a grande propriedade com sua elite militar e o trabalho compulsório do camponês.



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