A Herança do Mundo Antigo

O grande Pã está morto.
(Plutarco (50?-125), Da defecção dos oráculos.)

A idéia de que a Idade Média foi a guardiã de todo o conhecimento produzido na Antiguidade greco-romana solidificou-se com o tempo, mantendo em seu bojo uma sé­rie de imprecisões. Ela pressupõe, por exemplo, que a heran­ça greco-romana formava uma totalidade homogênea e coerente, dotada de uma continuidade linear. Assim, às grandes elaborações do pensamento grego, Roma teria acrescentado suas não menos brilhantes contribuições, resultando daí o te­souro intelectual que a Antiguidade nos legou. Os herdeiros diretos dessa sabedoria antiga - os medievais - teriam portanto recebido um conjunto de conhecimentos e concepções, harmonicamente estruturados, que representaria o fruto ma­duro do pensamento antigo.
Caberia aos monges guardar essa relíquia, tarefa a que se entregariam a um só tempo com zelo e ignorância. Conse­guiram salvá-la, é certo, da destruição bárbara que se seguiu à queda do Império Romano do Ocidente e preservaram-na, na medida de suas forças, durante toda a Idade Média. Porém, ao contrário das outras relíquias tão apreciadas, expos­tas, disputadas e adoradas, a jóia do pensamento antigo mantinha-se intocada, oculta e esquecida a não ser por aquelas almas piedosas que no refúgio dos mosteiros copiavam-lhe as formas. Mesmo estes copiadores dedicados mantinham­-se indiferentes ao seu conteúdo, perdidos no deleite das ilu­minuras ou no fervor das preces.

Por dez séculos a semente do saber permaneceu em som­bras, enquanto se discutia o sexo dos anjos, e foi necessário que os humanistas do Renascimento fizessem tremer o mun­do para que, redescoberta, ela voltasse a germinar. Pobre Idade Média! Jazia em trevas, guardando o lume ... Toda essa visão, tão correntemente difundida ainda hoje, pode ser questionada em mais de um aspecto.

DA NATUREZA A METAFÍSICA
Em primeiro lugar, não foi toda a riqueza do pensamen­to antigo, em suas diversas vertentes, legada aos pensadores medievais. Considerar, por sua vez, a filosofia antiga como um corpo de idéias cujas partes eram da mesma natureza, es­tando estreitamente ligadas entre si, não deixa de ser uma sim­plificação empobrecedora. Não havia, com efeito, um mo­delo único e os diversos sistemas filosóficos que floresceram em Grécia e Roma, embora tivessem vários pontos de seme­lhança, guardavam consideráveis diferenças e eram dotados de problemáticas próprias.

Por outro lado, a contraposição de um período medie­val onde a fé e a religiosidade sufocavam todo e qualquer es­forço de inteligência a uma Antiguidade dominada pela ra­zão não passa de outro mito simplificador. Nem tão radian­te foi o clarão da herança, nem tão cegos os herdeiros.

Muito distantes estavam já os anos da Grécia Clássica, onde surgiram os grandes sistemas filosóficos, especialmente os de Sócrates, Platão e Aristóteles, considerados seus maiores expoentes. A conquista macedônica difundiu a cul­tura de Atenas pelo mundo antigo, estabelecendo uma ponte entre esta e os novos e mais florescentes centros como Pér­gamo, Antioquia e Alexandria. Desse contato surge a cultu­ra helenística que, embora imensamente tributária ao pensa­mento grego, terá caracteres que lhe são estranhos.

É já no período helenístico que, a par das escolas fun­dadas por Platão e Aristóteles, surgem novas correntes filo­sóficas como o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo. Ale­xandria transformara-se no maior centro de intercâmbio co­mercial e espiritual do Oriente, unindo todas as correntes oriundas dos diferentes povos que o Império de Alexandre reunira; o misticismo oriental vai aos poucos impregnando a consciência helenística, preparando a passagem da filoso­fia à teologia, da razão à fé. Esse será o butim de Roma e, embora os textos clássicos se mantivessem fartamente disponíveis, foi principalmente a filosofia helenística que se difun­diu e prosperou no novo Império que surgia. As escolas pós-­aristotélicas, com exceção da epicurista, tendem ao ecletis­mo, abandonando assim as primitivas posições de puro con­traste.

ELOS QUE SE ESTREITAM
A própria Roma não fica imune às transformações que o estabelecimento de seu Império lhe impõe. Já no século I d. C., a relativa paz, segurança e estabilidade conquistadas fazem-se acompanhar de um desequilíbrio que não é apenas social, mas também moral, e que tende a agravar-se nos sé­culos posteriores. Se as mudanças nos costumes, causadas pela nova situação, o abandono de suas tradições mais típicas são vistos por alguns como evolução benéfica, muitos outros consideram-nos um claro sinal de corrupção. A crise de consciência modifica profundamente a religiosidade romana - até então prática e utilitária - e novas questões são coloca­das ao paganismo ocidental: o sentimento de degeneração leva a um profundo pessimismo em relação ao futuro, a um sen­so aguçado da fragilidade humana, e a idéia da morte torna­-se obsessiva.

A esta sede de sobrenatural que germinava, nem a reli­gião romana - com seu culto oficial ou a crença nos peque­nos deuses domésticos -, nem as correntes filosóficas que até então haviam predominado - o epicurismo e o estoicis­mo - eram capazes de satisfazer.

Buscava-se um Deus que se pudesse amar, que prote­gesse nesse mundo e ao mesmo tempo garantisse a salvação eterna. Os romanos voltavam-se de novo para o Oriente, de onde já irradiava o vigor intelectual que mantinha o Império: Cibele, Ísis, Osíris, Dioniso, Mitra e outros deuses aden­travam o Panteão. Eram divindades universalistas, que so­freram e venceram a morte, que recordavam a fecundidade agrária, renovando todos os anos a vegetação, e sugeriam o renascimento. Difundiam-se, ao mesmo tempo, os monoteís­mos judaico, cristão e persa.

O cristianismo propaga-se rapidamente; apoiando-se na antiga tradição judaica e apresentando um Salvador cuja exis­tência histórica, milagres e triunfo sobre a morte eram con­firmados por testemunhas irrefutáveis, a nova religião tornou­-se em breve uma ameaça, pregando a obrigação da caridade, a igualdade espiritual de todos os homens e anunciando a vi­da futura.

O paganismo politeísta subsistiria ainda por muito tem­po, mas o encontro dessas diferentes religiões tendia ao sin­cretismo, com exceção do judaísmo e do cristianismo, que mantinham-se intransigentes em matéria de fé.

Essa obcecante preocupação com o destino da alma, a exigência de sua salvação, penetra, corno não poderia deixar de ser, a filosofia, que já perdera aliás grande parte do seu Prestígio. Também aí, a maioria e os maiores filósofos do período eram orientais de nascimento e, imbuídos daquele mesmo misticismo, dedicavam-se cada vez mais à especula­ção metafísica. A filosofia transformara-se gradativamente em ética e religião, abandonando o espírito de investigação que a caracterizara.

Em resposta a essas novas exigências - que substituem o ideal do santo ao do sábio, a meditação da morte à da vi­da, a aspiração de Deus à contemplação do mundo - sur­gem outras vertentes filosóficas, como o estoicismo romano, a escola judaico-alexandrina, o neopitagorismo, que tendem a desenvolver suas especulações religiosas sob a autoridade dos grandes filósofos antigos, particularmente Platão e Pi­tágoras, numa mescla que guardava poucas semelhanças com as doutrinas originais.

Pressionados pela expansão cristã, os defensores do pa­ganismo, cujo campo de ação estava sendo progressivamen­te estreitado, mobilizaram deuses e filósofos ilustres para a defesa de sua causa, permanecendo, contudo, no campo da antiga cultura e do velho politeísmo. Elaboraram assim uma sistematização de toda filosofia religiosa pagã - o neopla­tonismo. O conflito entre essas duas concepções (paganismo e cristianismo) seria marcado a um só tempo pela ação Recíproca e pela assimilação de elementos doutrinais.

EOS DEUSE SE OFUSCAM
O neoplatonismo é a última escola filosófica do mundo antigo. Surgiu no século II d. C. e reuniu em seu sistema ele­mentos derivados não só do platonismo mas também do neo­pitagorismo, do aristotelismo, dos estóicos, dos judaico­alexandrinos e até dos eleatas. Foi assim a expressão máxi­ma do sincretismo da idade alexandrina, agregando quase to­da a metafísica religiosa que continha a especulação anterior. Esse sistema conheceu três fases: a alexandrino-romana (séculos lI/IIl), cujo principal representante foi Plotino; a síria (séculos IV /V), iniciada por Jâmblico; e a ateniense, representada por Proclo (séculos V/VI).

Os neoplatônicos representavam o mundo como ema­nação da força divina, proveniente de um absoluto inalcan­çável (Uno). O primeiro passo dessa emanação era o mundo da razão, o mundo espiritual das idéias; o segundo, era o mundo psíquico, da alma; e o último era o mundo material. Cada passo representava uma queda sucessiva da força pro­veniente do Uno e por esse motivo ao mundo material só che­gava um pálido reflexo de sua luz. A matéria seria, portan­to, fonte de todo o mal, absoluto não ser, e o descenso dos seres encontra aí seu último limite, cessando a decadência. Por outro lado porém, o mundo corpóreo é vivente e seu ver­dadeiro ser é a alma que, por sua natureza, tende a retomar à fonte original (Uno). Reinicia-se desse modo o ascenso até que se atinja o ponto de partida e o círculo se feche.

Os neoplatônicos colocavam em cada fase da emanação os deuses e os demônios das religiões orientais e greco­romanas, dando vida a um sincretismo complexo e fantásti­co, última etapa do desenvolvimento da religião e da filoso­fia antigas. A mística, a adivinhação, os jejuns e as preces, levados até o êxtase com o fim de "fundir-se" com o Uno, tinham também muita importância, e algumas dessas práti­cas seriam adotadas pelos cristãos, particularmente pelos eremitas.

Embora vencido, o neoplatonismo sobreviveu, de certa forma, ao seu próprio tempo. Vários de seus temas foram fonte de inspiração para os primeiros pensadores cristãos. A caracterização do Uno enquanto simplicidade, auto­suficiência, infinitude e absoluta liberdade; sua identificação como causa primeira e bem supremo de onde tudo provém e do qual depende, aproximava-se surpreendentemente da idéia cristã de Deus.

Outros temas ainda reforçavam essa proximidade: a Na­tureza entendida como vestígio do saber divino; a presença do Uno na humanidade e sua visão como luz interior que re­comendava o "Conhece-te a ti mesmo"; a alma como pos­suidora de dupla natureza - intelectiva e sensitiva - etc. Por tais semelhanças, era comum passar-se dos filósofos neopla­tônicos às Escrituras, a tal ponto que certos autores chega­ram a considerar o neoplatonismo uma antecipação pagã do cristianismo.

Esse portanto o verdadeiro legado que o mundo medie­val recebeu diretamente dos Antigos. Uma síntese refinada sob certos aspectos, mas também empobrecida. No vasto tra­balho de amalgamar tantas correntes de pensamento, de tingi­-las com um misticismo e uma religiosidade que lhe eram es­tranhos, de adaptá-las a circunstâncias completamente diver­sas daquelas em que foram originalmente criadas, o neopla­tonismo despojou o pensamento clássico de algumas carac­terísticas preciosas. A reflexão já não era em si filosófica mas metafísica; o homem e a natureza já não eram o centro das especulações, mas apenas intermediários em um processo de conhecimento que tinha no Uno sua origem e seu objetivo último; a matéria, o mundo natural, não eram senão fonte de todo erro, de todo mal, de todo pecado...

Antes mesmo que o cristianismo triunfasse e que o gran­de Império ruísse, tudo levava a crer que Pã, o antigo deus da Natureza, morrera.

A TRADIÇÃO CRISTÃ
Recolhamos as excelentes palavras que pronunciaram ... po­deríamos receber dos gregos muitas coisas que nos dão for­ças contra os gregos. (São João Damasceno, Da fé ortodoxa, século VIII)
Apesar de seus esforços, a filosofia neoplatônica não conseguiu atribuir um sentido à perpetração do círculo de ascenso e descenso do universo. A emanação não correspondia a um ato da vontade divina e, logo, não permitia o estabelecimento de uma relação pessoal entre o homem e a di­vindade.

Nessa medida, afirmava-se a superioridade do cristia­nismo, ao postular a existência de um Deus que tornara-se Criador por um ato de vontade e bondade. A matéria, en­quanto uma de suas criações, não poderia ser princípio do mal e isto significava atribuir à personalidade individual do homem (e à sua livre vontade) a responsabilidade pelo mal e pelo bem, pelo pecado e pela redenção. Assegurava-se as­sim a possibilidade de salvação e refúgio eterno da alma, ofe­recida por um Deus preocupado com as debilidades, sofri­mentos e aspirações de suas criaturas.

Por outro lado, o cristianismo apresentava-se como re­velação de verdades sobrenaturais, que não resultavam das reflexões humanas, e embora contivesse uma concepção da vida e do destino do homem garantida pela revelação divina, não podia afirmar-se como filosofia. O conteúdo do Evangelho era um saber de salvação e não de conhecimento pois a rigor dispensava, para ser compreendido e aceito, o auxílio de qualquer filosofia.

Desde muito cedo, uma dupla atitude desenhou-se en­tre os padres da Igreja: uns rejeitaram em bloco a herança dos filósofos pagãos; outros esforçaram-se para salvar dela tudo o que poderia ser preservado sem dano para a autori­dade da revelação. Esta última postura foi gradativamente fortalecendo-se à medida que os cristãos viam-se obrigados a tomar posição em face da sabedoria pagã, fosse para combatê-la, absorvê-la ou utilizá-la na formulação do dog­ma e na defesa da fé. Colocava-se assim o grande problema das relações entre fé e razão que iria permear todo o período medieval.

Compelidos, na luta contra o paganismo e as heresias, ao esforço de formulação conceitual do dogma, os escritores cristãos dos primeiros séculos recorreram aos instrumentos de que dispunham (pensamento helenístico), tratando de uti­lizar a filosofia a fim de aprofundar o conhecimento das Sa­gradas Escrituras ou para resistirem com a sua ajuda às in­vestidas dos adversários que dela se valiam nos ataques ao cristianismo.

A patrística pode ser caracterizada como uma tentativa de apresentar o cristianismo como doutrina não oposta às ver­dades racionais do pensamento helênico. Partindo do pres­suposto de que a sabedoria pagã era obra da razão e, enquan­to tal, também uma obra de Deus, os Santos Padres utiliza­ram a filosofia a serviço da fé, tentando elaborar uma filo­sofia cristã.

As características do pensamento patrístico decorrem das circunstâncias históricas em que surgiu. A doutrina elabora­da difundiu-se no ambiente cultural do helenismo durante o Império Romano; os mestres e os missionários cristãos envolveram a apresentação dos ensinamentos evangélicos nas roupagens culturais da tradição greco-latina e, dessa simbio­se do elemento religioso de origem oriental com o legado he­lênico, formou-se o patrimônio cultural cristão que impreg­nou a Idade Média.

Ironicamente, o neoplatonismo - elaboração mais re­finada que o mundo antigo produziu em defesa do paganis­mo - apresentou-se aos Santos Padres como capaz, com li­geiros retoques, de auxiliar a fé cristã a tomar consciência de sua própria estrutura interna e difundir-se com argumen­tos racionais, elaborando-se como teologia.

Na confluência do pensamento helenístico do Império Romano e do cristianismo, vivendo em momento de crise e ruptura, os Santos Padres foram testemunhas da morte de um mundo e da gestação de outro.

De todos os padres da Igreja que a Idade Média leu, o que exerceu a influência mais profunda e mais decisiva foi incontestavelmente Santo Agostinho.

INÁCIO, I. & deLUCA, T. O pensamento medieval. São Paulo: Ática, 1994.


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