Uma Nova Antropologia

Passar das elites do período antonino do século II e do começo do século III d.c. ao mundo do judaísmo tardio a partir do século II a.c. equivale a deixar para trás uma moral tranqüilamente arraigada no sentimento da distância social e penetrar no mundo de uma nação aflita. Já não são as fronteiras que separam uma elite incontestada e coerente de seus inferiores tradicionais situados no núcleo da ansiedade moral, mas a sobrevida da totalidade de um grupo muito distinto.

DA SOLIDARIEDADE...
A perpetuação das tradições de Israel, a lealdade constante dos judeus para com essas tradições e entre si constituem a ques­tão central, comum a personalidades judias tão variadas como os discípulos de Jesus de Nazaré, são Paulo e os sábios rabinos ulte­riores, sem falar das experiências comunitárias dos essênios e de Qumran. Raramente se encontra na história do mundo antigo um sentimento tão explícito da necessidade de mobilizar todo o eu a serviço de uma lei religiosa e da necessidade concomitante de mobilizar plenamente um sentimento de solidariedade entre os membros de uma comunidade ameaçada.

Mas agora os justos foram reunidos, e os profetas adormeceram,
e nós também deixamos a terra, e o Sião nos foi arrancado,
e doravante nada mais temos, exceto o Todo-Poderoso e sua lei.

Mais raramente ainda encontra-se na literatura antiga a ex­pressão clara e persistente do lado sombrio da preocupação de leal­dade e de solidariedade, o medo permanente de que os partici­pantes não consigam se dedicar totalmente a uma empreitada tão exigente. Pois somente por essa lealdade se poderia inverter a infe­licidade de Israel:

Se, pois, governarmos e ordenarmos nossos corações, receberemos tudo que perdemos,

O "coração", no qual repousa tão grande esperança torna-se o objeto de exames melancólicos e minuciosos, Como engenheiros que, diante da massa incerta de um edifício, concentram-se nas menores fendas, observam com atenção as estruturas cristalinas ainda não examinadas dos metais que a Sustentam, assim os escritores judeus antigos perscrutam com constante atenção o coração hu­mano. Ainda como engenheiros, atentos ao desgaste e aos Pontos de ruptura de seus metais, esses autores notam com inquietação e minuciosa precisão as "zonas de intimidade negativa", as peri­gosas opacidades do coração que ameaçam suplantar as exigências de Deus e dos correligionários judeus (ou cristãos) com relação à coerência interna do eu.

...À INTIMIDADE
O que emerge desses séculos de insistente interesse na solida­riedade de um grupo ameaçado é um sentimento violentamente negativo da intimidade. O que há de mais privado no indivíduo, os sentimentos e motivações mais recônditos, os motivos da ação que permanecem impenetráveis para o grupo, os "pensamentos do coração" são examinados com uma atenção particular como fonte possível de tensões que só podem provocar fendas na solidarieda­de ideal da comunidade religiosa.

É um modelo diferente da pessoa humana. O ponto de partida é o "coração", apresentado como um núcleo de motivações, refle­xões e objetivos imaginários; idealmente deve ser simples e unívoco, quer dizer, transparente às exigências de Deus e do próximo. O co­ração, como facilmente se percebe, o mais das vezes é duplo: as pes­soas de coração duplo se apartam de Deus e do próximo retirando-se para essas zonas perfídias da intimidade negativa que as subtraem a suas exigências, Daí as características agudas das relações do judeu - e, mais tarde, do cristão -, com o mundo sobrenatural, Protegi­do do olhar dos homens pela “intimidade negativa", o coração pa­rece ser completamente público ao olhar de Deus e seus anjos:

Quando alguém comete uma transgressão em segredo, é como se rechaçasse a Presença divina.

Durante o século I d.e, esse modelo foi escorado, com diver­sos graus de urgência e rigidez, pela firme crença de que através da ação de Deus um estado social atualmente governado pelas opa­cidades destrutivas da "duplicidade de coração" cederia lugar en­tre os autênticos herdeiros de Israel a um tempo de transparência absoluta com relação aos outros e a Deus. Em tal comunidade, ver­dadeira e resgatada, as tensões do "coração malvado" foram eli­minadas. Reforçada por uma crença viva no fim dos tempos e no Juízo Final, essa grande esperança afirma que um estado de soli­dariedade completa e de transparência aos outros é o estado pre­destinado e natural do homem social, um estado infelizmente per­dido ao longo da história, mas que será reconquistado no fim dos tempos. Numerosos grupos acreditam que as condições ideais que serão definitivamente adquiridas no fim dos tempos já se anun­ciam numa comunidade religiosa atual. Um grupo como a primeira comunidade cristã crê na presença do Espírito Santo entre os au­tênticos herdeiros de Israel. Seus adeptos podem esperar experi­mentar - ainda que sob a forma confusa e fugaz da posse - esses momentos solenes em que “as coisas ocultas do coração" são reve­ladas, assim como a comunhão dos "santos" se mantém inteira, corações desvendados, na presença de Deus. Essa é a visão de uma solidariedade sem falha (e, por conseguinte, da permeabilidade total da pessoa privada às exigências da comunidade religiosa) que ob­ceca o mundo antigo em seus últimos séculos.

UMA COMUNIDADE COM PROBLEMAS
Quando mencionamos a ascensão do cristianismo nas cidades mediterrâneas, falamos de uma fração do judaísmo das seitas cu­jas estruturas são excepcionalmente hábeis e instáveis. A missão de são Paulo (de 32 a 60 aproximadamente) e dos outros “apóstolos" consiste em "reunir" os gentios num novo Israel colocado à sua disposição no fim dos tempos pelo messianismo de Jesus. Na prá­tica esse novo Israel compõe-se primeiro de pagãos atraídos, segundo variáveis graus de envolvimento, para as comunidades judias in­fluentes das cidades da Ásia Menor e do mar Egeu e pela vasta co­munidade judia de Roma. O novo Israel se vê como uma "reu­nião"; Jesus enquanto Messias "lançou por terra" os "muros de separação''.

Paulo enumera em suas cartas a lista tradicional dos grupos antagonistas - judeus e gentios, escravos e homens livres, gregos e bárbaros, homens e mulheres - para declarar que todas as cate­gorias foram apagadas no interior da nova comunidade. A inicia­ção ao grupo, um simples banho purificador, consiste, segundo Pau­lo, em despojar-se das "vestes" de todas as categorias religiosas e sociais anteriores e "revestir-se" de Cristo; com isso Paulo entende a aquisição de uma identidade única e não estanque, comum a todos os membros da comunidade, como convém aos' 'filhos de Deus" recém-adotados "em Cristo".

É a miragem poderosa de uma comunidade unida numa no­va solidariedade obtida graças à miraculosa eliminação de todas as formas precedentes de diferenciação. Mas vacilam no horizonte grupos de mulheres e homens cuja presente situação na sociedade romana faz da obtenção de tal solidariedade uma esperança ina­cessível e que, por isso, a têm mais dramaticamente incrustada no centro de suas preocupações morais. Aos primeiros cristãos convertidos falta a situação social que teria viabilizado o poderoso ideal de Paulo: uma solidariedade indiferenciada "em Cristo". Os pro­tetores e os discípulos de Paulo e de seus sucessores não são almas simples, nem humildes e oprimidos, como deseja a romântica ima­ginação moderna. Se o fossem, o ideal de Paulo teria se realizado mais facilmente. São, antes, pessoas medianamente ricas e que em geral viajaram muito; por isso acham-se expostas a um leque de contatos sociais e de ocasiões de escolha e, daí, ao conflito poten­cial da "duplicidade de coração" em domínios muito mais nume­rosos que os pobres rurais do "movimento Jesus" da Palestina, por exemplo, ou os membros da colônia judia sedentária e fechada de Qumran. "Seguir Jesus", indo de aldeia em aldeia na Palestina e na Síria, ou "escolher a Lei", abandonando "a vontade do próprio espírito", num grupo monástico instalado nos confins do deserto da Judéia, expõe os crentes a escolhas evidentemente mais restritas que as daqueles que afrontam os homens e as mulheres das “as­sembléias de santos" nas grandes cidades prósperas, como Corin­to, Éfeso e Roma. Ao longo da história das Igrejas cristãs dos dois primeiros séculos, descobrimos um veio muito rico de material hu­mano, sensivelmente diverso dos "bem-nascidos" das cidades co­mo dos aldeões dos Evangelhos.

HERMAS
Basta observar a comunidade cristã de Roma por volta do ano 120 tal como a revelam as visões reunidas no Pastor de Hermas pa­ra compreender o que isso significa. Esse grupo religioso contém todos os elementos que o estudioso de religiões antigas percebe que são contrários a uma comunidade' 'pauliniana" urbana; e tal foi o caso.

Hermas é um profeta obcecado pelo desejo de preservar a so­lidariedade do "coração simples" entre os crentes. Com pungente ardor deseja que em sua comunidade reine uma inocência ''infan­til", livre de astúcia, de ambição e da ansiedade própria dos "co­rações divididos". Entretanto os receios de Hermas revelam um gru­po cujos pecados são proporcionais a seu sucesso na sociedade. Em Roma a Igreja é mantida por ricos protetores cujos contatos com a comunidade pagã em seu conjunto lhe valeram proteção e pres­tígio. Conforme se podia prever, o coração dos cristãos influentes está dividido entre as exigências de solidariedade e intercâmbios sinceros entre cristãos e a preocupação com a condução de seus ne­gócios, e, pois, de seus contatos com os amigos pagãos. A opulência de sua casa e o futuro de seus filhos os preocupam. Embora sejam uma perpétua fonte de ansiedade e da tensão inerente aos "corações divididos", Hermas não duvida de que tais homens de­sempenham um papel crucial numa comunidade cristã próspera: são a madeira seca e sólida ao redor da qual se enrosca a vinha lu­xuriante de uma comunidade religiosa próspera e bem articulada.

"Paciente, pouco dado à indignação, sempre sorridente", Her­mas, o profeta, não é, contudo, um "coração simples". Escravo prós­pero e corrompido de uma residência citadina, experimentou uma atração sexual por sua senhora que, apesar de boa cristã, sempre esperava que ele a ajudasse a sair nua de seu banho no Tibre. Her­mas testemunhou devastações provocadas pelas ardilosas relações dos “corações divididos" entre os ricos protetores cristãos, os pa­dres e os profetas rivais. No entanto redige boa parte de sua men­sagem num cenário de idílio arcádico; e, embora desprezando o contágio da riqueza no "coração dividido", recebe suas visões nu­ma pequena e bem cuidada propriedade vitícola que possui nos arredores de Roma.

Como bem o disse Ortega y Gasset, "as virtudes que não pos­suímos são as que mais contam para nós”. Grande parte da histó­ria das primeiras igrejas cristãs é a história da urgente procura de um equilíbrio entre pessoas cujo ideal - a lealdade do "coração simples" com relação aos outros e a Cristo - é constantemente atacado pela complexidade objetiva de sua inserção na sociedade mediterrânea. Vejamos rapidamente o que a busca de solidarieda­de significa nas comunidades cristãs citadinas anteriores ao ano 300, dispensando especial atenção à maneira como a moral sexual cris­tã suporta a carga de representar, no âmbito da Igreja e diante do mundo exterior, um novo ideal de solidariedade numa nova forma de comunidade religiosa.

INVENÇÃO DA DISCIPLINA
Na primavera do ano 54 provavelmente, Paulo escrevia à co­munidade de Corinto que “Deus não é gerador de confusão, mas de paz; como em todas as Igrejas dos santos [...]". Como acontece com freqüência, Paulo escreve para impor sua interpretação de uma situação extremamente complexa; nesse caso, para sublinhar a ne­cessidade de pregar as Escrituras em línguas inteligíveis para todos. Conforme vimos, as Igrejas cristãs nas cidades dependem de chefes de família respeitáveis e prósperos. Membros de sua família podem acolher favoravelmente certos rituais da solidariedade in­diferenciada. No entanto, a menos que seja permanentemente vivida no meio dos desgarrados e dos marginais, o que não é o caso nas comunidades cristãs urbanas dos três primeiros séculos, a vida num ambiente urbano não pode se basear em momentos tão fortes. Se a "simplicidade do coração" deve sobreviver nas Igrejas cristãs e sobreviver, num mundo pagão desconfiado, na cena da vida coti­diana feita de confrontos permanentes, somente sobreviverá na fixação de uma vida de grupo conscientemente estruturada segun­do normas muito condescendentes.

Daí o paradoxo da ascensão do cristianismo como força moral num mundo pagão. Essa ascensão altera profundamente a textura moral do mundo romano tardio. Contudo os dirigentes cristãos pou­co inovam em matéria de moral. O que fazem é muito mais cru­cial. Criam um novo grupo cuja excepcional insistência na solida­riedade face a suas tensões internas garante que seus membros pra­tiquem o que os moralistas pagãos e judeus já começaram a pregar. Essa ''simplicidade do coração", à qual Hermas aspirava na comunidade próspera de Roma, será alcançada menos através das obras indiferenciadas do Espírito que pela disciplina íntima de um gru­po estreitamente coeso, cujas atitudes morais de base não diferem daquelas de seus vizinhos pagãos e judeus senão pela insistência com que são adotadas e postas em prática.

Desde já, porém, é importante notar a diferença crucial entre a moral geral, que os grupos cristãos fizeram sua, e os códigos de comportamento vigentes entre as elites cívicas. Muito do que se reivindica como deliberadamente "cristão" na moral das primei­ras Igrejas é, na verdade, a moral distintiva de uma fração da so­ciedade romana diferente daquelas que conhecemos através da li­teratura dos "bem-nascidos".

É a moral do homem socialmente vulnerável. Nas casas mo­destas, agir com autoridade não constitui um modo de controlar os escravos e as mulheres. Daí serem maiores as preocupações rela­tivas à ordem íntima, às reservas íntimas de comportamento, à fi­delidade entre esposos e à obediência dentro da casa, obtidas "na simplicidade do coração temente a Deus' '. A obediência por parte dos domésticos, as boas relações entre parceiros e a fidelidade dos esposos contam muito mais para homens suscetíveis de serem mor­talmente feridos pela infidelidade sexual, pelas trapaças e pela in­subordinação do pequeno número de seus escravos, do que para os homens verdadeiramente ricos e poderosos. Fora da família desenvolve-se um sentimento de solidariedade com um número maior de concidadãos; contrasta fortemente com a atitude dos no­táveis cívicos que durante algum tempo continuam a ver o mundo através das estreitas janelas de sua definição "cívica" tradicional da comunidade urbana. Um sentimento de solidariedade consti­tui o complemento natural de uma moral do homem socialmente vulnerável. Por conseguinte nada há de estranho e ainda menos de especificamente cristão na inscrição gravada no túmulo - sem dúvida pagão - de um imigrante grego, mercador de pérolas, na Via Sacra de Roma: "[Aqui] jazem encerrados os ossos de um ho­mem bom, um homem de misericórdia, um apaixonado pelo pobre".

A MORAL DOS VULNERÁVEIS
Por isso a divergência das atitudes de doação e partilha com outrem entre as classes superiores e os cidadãos médios oferece um contraste singularmente gritante. Os cidadãos notáveis "alimen­tam" sua cidade: espera-se deles que gastem largas somas para man­ter o sentimento de contínua alegria e prestígio dos cidadãos nor­mais. Se tais generosidades por acaso aliviam alguma aflição dos pobres da cidade, o fato é visto como um efeito secundário pura­mente acidental do alívio do qual se beneficia o corpo cívico no conjunto, os ricos como os pobres, pelo fato de serem cidadãos. Grande número dos habitantes da cidade - e mais comum ente os verdadeiros pobres, como os escravos e os imigrantes - não se beneficiam com tais larguezas. E sobretudo elas são dadas à "cida­de" e a seus' 'cidadãos" para enaltecer a condição do corpo cívico no conjunto mais do que para aliviar um estado particular de afli­ção humana numa categoria especial de "pobres". Tais doações individuais podem ser comparadas a magníficos fogos de artifício: celebram as grandes ocasiões, o poder e a generosidade dos protetores, o esplendor da cidade. A idéia de um fluxo regular de doa­ções, sob a forma de esmolas, para a categoria permanente dos afli­tos, os pobres, ultrapassa o horizonte desses homens.

O modo de ver das pessoas socialmente vulneráveis é mais rea­lista. Cotidianamente elas percebem que existe uma relação entre o "supérfluo" de que desfruta a gente modesta e a "falta de meios" dos seus vizinhos mais pobres. Melhor ainda, tal desequilíbrio po­de ser eliminado, ou pelo menos atenuado, com a redistribuição de pequeninas somas, ao alcance de qualquer modesta família ci­tadina ou de um próspero cultivador entre os pobres rurais. Como muito antes haviam observado as comunidades judaicas, as comunidades cristãs sabem que para os humildes a manutenção de uma margem de independência financeira num mundo hostil é possí­vel graças a modestas medidas de ajuda mútua. Oferecendo esmo­las e uma oportunidade de emprego aos membros mais desprovi­dos de sua comunidade, judeus e cristãos podem proteger seus cor­religionários do empobrecimento e, portanto, de uma vulnerabi­lidade total face aos empregados ou aos credores pagãos. Nesse con­texto bem definido compreendemos melhor como a prática da es­mola aos pobres logo se torna um sinal evidente da solidariedade dos grupos ameaçados de crentes. A substituição final de um mo­delo de sociedade urbana, que ressaltava o dever de os "bem-­nascidos" "alimentarem" sua cidade, através de um modelo ba­seado na noção de solidariedade implícita dos ricos com relação aos pobres na desgraça permanece como um dos mais claros exem­plos da transformação de um mundo clássico num mundo pós­-clássico cristianizado. Essa transformação iniciou-se no século II en­tre as comunidades cristãs.

De resto, independentemente das Igrejas cristãs, podemos de­tectar a lenta emersão, paralela aos códigos ''cívicos" dos notáveis, de uma moral de faro diferente, baseada num mundo diverso de experiência social. Já no começo do século III, muito antes do es­tabelecimento da Igreja cristã, aspectos da lei romana e da vida de família são afetados por uma sutil mudança das sensibilidades morais da maioria silenciosa dos provincianos do Império. Uma vida conjugal respeitável torna-se uma norma que inclui até as famílias de escravos. Os imperadores posam como guardiães da moral pri­vada. Até o suicídio, essa orgulhosa asserção do direito do "bem-­nascido" de dispor da própria vida, se necessário, é aviltado como um "distúrbio" contra a natureza.

NOVA MORAL SEXUAL
Entretanto é a Igreja cristã que se apossa dessa nova moral e a submete a um sutil processo de mudança, tornando-a ao mesmo tempo mais universal em sua aplicação e muito mais Íntima em seus efeitos sobre a vida privada. Os cristãos adotam uma variante melancólica de moral popular para facilitar a busca obsti­nada de novos princípios de solidariedade que visam a incutir ain­da mais profundamente no indivíduo o sentimento do olhar de Deus, o medo do julgamento divino e um forte sentimento de com­promisso na coesão da comunidade religiosa.

Basta voltar-nos para as famílias cristãs e examinar as estrutu­ras do casamento e da disciplina sexual que surgem ao longo dos séculos II e III para avaliar a extensão das mudanças nos ideais mo­rais ocorridas nas Igrejas.

Observador das comunidades cristãs do fim do século II, o mé­dico Galeno se surpreende com sua austeridade sexual: "Seu des­prezo pela morte a cada dia nos é evidente, assim como sua mode­ração em matéria de coabitação. Pois elas se constituem não só de homens como também de mulheres que durante toda a vida se abstêm de coabitar; contam-se entre eles igualmente indivíduos que, pela autodisciplina e pelo autocontrole, elevam-se à altura de autênticos filósofos”.

Ao que parece os cristãos praticam uma moral sexual austera, facilmente reconhecível e bem aceita pelos pagãos: renúncia sexual completa para alguns, ênfase na harmonia conjugal (que já come­çou a impregnar a conduta pública das elites, embora por motivos muito diversos), severa desaprovação de um segundo casamento. É um lado das coisas que constantemente se oferece aos pagãos. Fronteiras rituais precisas, como as que a circuncisão e as regras die­téticas fornecem ao judaísmo, não existem entre os cristãos; estes procuram fazer com que sua excepcional disciplina sexual atinja seu objetivo: exprimir a diferença que os separa do mundo pagão. A mensagem dos apologistas cristãos é semelhante àquela dos fu­turos admiradores do celibato clerical, como Nietzsche o descre­via; invocam “a crença segundo a qual uma pessoa que constitui uma exceção nesse ponto igualmente constituirá uma exceção em outros aspectos”.

Por essa razão é importante ser claro a propósito das novas es­truturas internas que suportam o que pareceria apenas uma moral austera, admirada pelo homem médio. Os fatos ordinários da dis­ciplina sexual são sustentados por uma estrutura mais profunda de preocupações especificamente cristãs. Desde são Paulo espera-se dos parceiros casados que constituam um análogo em microcosmo da solidariedade “simples de coração" do grupo. Mesmo se às vezes são perigosamente perturbadas pelas obras do Espírito Santo nas "assembléias dos santos" indiferenciadas, as relações entre mari­do e mulher e entre senhor e escravo reafirmam-se de modo ine­quívoco na família cristã; pois tais relações investem-se do senti­mento de que semelhantes fidelidade e obediência manifestam de forma singularmente transparente o ideal muito apreciado de uma "simplicidade de coração" que de jeito nenhum é fingida.

PRIMEIRA RAZÃO DA CASTIDADE
Com o entusiasmo moral característico de um grupo que ati­vamente procura oportunidades para testar sua vontade de coesão, as comunidades cristãs urbanas abandonam os modos nos quais os homens judeus e pagãos se fiavam para disciplinar e satisfazer suas mulheres. Rejeitam o divórcio e desaprovam um segundo ca­samento de viúvas. As razões que invocam, freqüentemente em­prestadas das máximas dos filósofos, satisfariam Plutarco: uma moral conjugal excepcional, praticada doravante por homens e mulheres modestos, testemunha uma vontade de ordem excepcional: "Um homem que se divorcia de sua esposa admite que não é capaz nem de governar uma mulher”. As comunidades cristãs poderiam ter se contentado com isso.

A moral conjugal podia ser apresentada como uma manifestação particularmente reveladora da vontade do grupo de alcançar a "sim­plicidade do coração", sendo o adultério e as intrigas sexuais entre parceiros casados sintomas por excelência da "zona de intimidade negativa" ligada à "duplicidade do coração' '. Sem o espaço de to­lerância que a cidade antiga proporcionava aos homens das classes superiores, autorizados a procurar um exutório para suas pulsões adolescentes numa prática relativamente livre da sexualidade, os jovens púberes se casariam o mais cedo possível a fim de controlar, graças a uma vida conjugal lícita, as tensões explosivas da atração sexual. As mulheres e - conforme as circunstâncias também se deseja isso - os homens seriam disciplinados por um casamento precoce e pelo sentimento de que o olhar penetrante de Deus de­vassa os recantos da alcova. Evitando um segundo casamento, a co­munidade poderia garantir-se uma reserva permanente de venerá­veis viúvos e viúvas disponíveis e suscetíveis de dedicar suas ener­gias e tempo ao serviço da Igreja. Menos expostos que os notáveis às tensões ligadas ao exercício do verdadeiro poder - corrupção, perjúrio, hipocrisia, violência e furor -, esses tranqüilos cidadãos de "condição mediana" poderiam testemunhar sua preocupação com ordem e coesão na esfera mais doméstica da autodisciplina sexual.

Ademais, a perturbadora facilidade com que os sexos se mis­turam nas assembléias dos cristãos constitui uma fonte de sincera repugnância para os pagãos respeitáveis. Esses estranhos evitam fa­lar aos cristãos por essa razão, e um cristão contemporâneo de Ga­leno solicita ao governador de Alexandria permissão para se cas­trar: somente esse meio lhe permitirá, assim como a seus correli­gionários, livrar-se da acusação de promiscuidade! Num nível mais modesto, a dificuldade de arranjar os futuros casamentos dos jo­vens e sobretudo das moças cristãs numa comunidade preocupada em evitar os casamentos mistos com pagãos fazia com que as me­didas de controle sexual fossem postas em prática com maior in­tensidade que em comunidades mais bem assentadas e que moral resultante fosse mais bem compreendida pelos estranhos e mais ri­gorosamente aplicada pelos crentes.

Tais pressões explicam em grande parte a tonalidade moral da comunidade cristã média da Antiguidade tardia. O que elas não podem explicar é a revolução suplementar pela qual a renún­cia sexual - tanto a virgindade desde o nascimento como a casti­dade adotada após o casamento pelos cônjuges ou pelos viúvos ­torna-se o fundamento da dominação masculina na Igreja cristã. Nesse ponto a cristandade escolheu il gran rifiuto. Precisamente ao longo dos séculos em que o rabinato adquire sua preeminência no judaísmo aceitando o casamento como critério quase obrigató­rio de sabedoria, os dirigentes das comunidades cristãs se orien­tam num sentido diametralmente oposto: o acesso aos cargos de direção nessas comunidades identifica-se com o celibato quase obri­gatório. É raro que uma estrutura de poder se erija com tal rapidez e acuidade sobre um ato tão íntimo como a renúncia sexual. O que Galeno havia percebido no fim do século II é o que distin­guirá a Igreja cristã do judaísmo e do islã ao longo de todos os sé­culos vindouros.

Comecemos por descartar uma explicação muito difundida des­se estado de coisas. Diz-se que já se divulgara amplamente pelo mundo pagão uma forte aversão ao corpo humano. A partir disso supõe-se que, quando a Igreja cristã se afastou de suas raízes judaicas, nas quais prevaleciam atitudes otimistas com relação à se­xualidade e ao casamento considerados como partes da criação di­vina, boa no conjunto, os cristãos adotaram os sombrios princípios de seu ambiente pagão. Tal visão não se sustenta. O fácil contraste entre o pessimismo pagão e o otimismo judaico negligencia a im­portância da renúncia sexual como meio de chegar à "simplicida­de do coração" no judaísmo radical do qual surgiu a cristandade. Ademais, as origens possíveis de tal tendência podem ser extrema­mente diversas, mas, em si, não explicam sua função, quer dizer, a constelação distintiva de idéias que a renúncia sexual cristalizará como um sinal de dominação especificamente masculina nas co­munidades cristãs dos séculos II e III.

Em vez de nos perguntar por que o corpo humano foi consi­derado com tal inquietação no decorrer da Antiguidade tardia, fa­çamos a pergunta inversa: por que o corpo foi escolhido e apresen­tado como o lugar recôndito de motivações especificamente sexuais e como centro de estruturas sociais que são apresentadas em ter­mos sexuais, quer dizer, como sendo formado sobretudo de uma energia fatal e especificamente sexual, orientada para o casamento e a gestação? A partir daí podemos nos perguntar por que se ad­mitiu que essa constelação particular de percepções do corpo pe­sasse tanto sobre os primeiros círculos cristãos. É a intensidade e a particularidade da "carga" de significado que contam, e não o fato indubitável de que esse significado freqüentemente se exprimia em termos tão negativos que despertam a atenção do leitor moderno, chocado, como imaginamos, com tal linguagem.

É aí que se torna mais evidente a linha divisória entre cristan­dade e judaísmo. Tal como os rabinos preferem apresentá-la, a se­xualidade constitui um complemento permanente da personali­dade. Se bem que a priori impulsiva, ela é suscetível de moderação, assim como as mulheres são ao mesmo tempo honradas como necessárias à existência de Israel e firmemente impedidas de inter­ferir nos assuntos sérios da sabedoria masculina. E um modelo ba­seado no controle e no isolamento de um aspecto irritante porém necessário da existência. Entre os cristãos ocorre exatamente o con­trário: a sexualidade torna-se um ponto de referência de forte car­ga simbólica precisamente porque se julga possível seu desapareci­mento no indivíduo comprometido e porque tal desaparecimento deve provar, de modo mais significativo que qualquer outra trans­formação humana, as qualidades necessárias à direção de uma co­munidade religiosa. A supressão da sexualidade ou, mais humil­demente, a retirada da sexualidade significa um estado de dispo­nibilidade decidida com relação a Deus e ao outro, ligado ao ideal da pessoa de "coração simples".

por BROWN, P. "Antiguidade Tardia" in ARIES, P. & DUBY, G. (orgs.) História da Vida Privada. vol. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


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Comentário de Mayte Vieira

Neste texto, Peter Brown, destaca as peculiaridades do cristianismo que possibilitaram sua sobrevivência ao Império Romano tornando a permanência da Igreja Cristã uma das características mais visíveis da Antiguidade Tardia. Esta preservação deveu-se a sua forma de conduzir os cristãos que faziam parte da sua comunidade, num primeiro momento por sua busca de equilíbrio através da negação do indivíduo em favor da comunidade, da solidariedade com os mais necessitados, da modificação da estrutura do casamento, as restrições ao divórcio, ao segundo casamento, a sexualidade e, principalmente, a dominação no imaginário dos crentes pelo preceito que Deus tudo vê e tudo sabe, portanto cometer um pecado em segredo é desrespeitar Deus. Assim não há mais privado, tudo é comunitário, o que a comunidade cristã não vê, ele está vendo. Esta ideologia tem como fim a unidade e a disciplina destes cristãos que, por fim, temem a Deus acima de tudo e de todos.