Naturalmente a ruína do mundo antigo não é um fato isolado na história: em outras ocasiões o espírito do homem se viu às voltas com vicissitudes crepusculares - lentos desgastes de organismos estatais ou destruições violentas. A história do Oriente antiqüíssimo pode nos oferecer o confronto mais característico. Enquanto a crise do mundo antigo entre os séculos V e VII d.C. levou, sobretudo no Ocidente, da unidade imperial romana à fragmentação, uma evolução de certo modo oposta levara - três milênios antes, e numa região de enorme importância para a história da civilização humana (a baixa Mesopotâmia) - da pluralidade feudal dos Estados sumérios à monarquia universal do Estado semítico de Akkad. Em outras palavras: da mesma forma que entre os séculos V e VII d. C. uma parte considerável do Estado supranacional romano se dissolveu, por volta de 2500-2300 a.c. as numerosas cidades sumérias, que nunca tinham concebido a idéia de um império universal, entraram numa sofrida agonia devido exatamente a essa sua incapacidade.
Acontecimentos extremamente longínquos no tempo, diferentes e até mesmo opostos em termos de estrutura, e ainda assim semelhantes, uma vez que em ambos os organismos novos brotavam sobre um terreno revolto e as antigas estruturas cediam sob o peso de sua própria antigüidade. Ninguém podia assistir sem um mínimo de emoção ao grande ocaso que ocorreu nesses dois episódios e ainda em outros comparáveis a eles: a vida dos contemporâneos, quase rompida ao meio, movia-se agitada entre o velho e o novo. Por isso, diante do fato altamente dramático que arranca os demónios do passado à antiga veneração, a humanidade sempre se perguntou com ansiedade se por acaso seria possível afastar a dura prova. Aqui está a gênese do conceito de decadência, que em certo sentido coincide com o de culpa coletiva, de "grande pecado". Entretanto no caso do fim do mundo antigo há mais: não apenas os contemporâneos, como também os pósteros consideraram tal crise algo exemplar e paradigmático: uma advertência que trazia consigo a chave para a interpretação de toda a nossa história. Por isso mesmo pode ser interessante o confronto, ao qual já nos referimos, com a crise dos Estados sumérios, quase três mil anos antes.
A passagem dos pequenos e decadentes Estados teocráticos dos sumérios para o grande Estado universal de Akkad por volta de 2500-2300 a. C. foi marcada pelos esforços dos sumérios de Uma, que, comandados por Lugal-zage-si e prestes a desaparecer, tentaram instaurar aquele Estado universal que apenas os semitas de Akkad em breve criariam. Um grande contemporâneo, Urukagina, governador da cidade suméria de Lagash, acreditara combater a decadência de seu Estado com reformas que ao mesmo tempo constituíam um retorno às instituições sumérias originárias; e condenara com um protesto vigoroso a tentativa "universalista" dos sumérios de Uma. Assim, a interpretação de Urukagina para a crise que abalava de alto a baixo o velho mundo sumério, criador de elevadíssimos valores culturais e artísticos, prendia-se ao passado. Ele julgava encontrar as causas de tal ocaso na avidez da classe dirigente, em especial dos sacerdotes; vangloriava-se por acabar com as injustiças, adotando de novo a ordem antiga e obrigando os sacerdotes a renunciar a seus bens para devolvê-los ao deus Ningirsu (ou seja, no fundo, ao Estado).
Fiel a seu deus Ningirsu, Urukagina denunciava as violências e as ambições dos homens de Uma. No entanto a idéia do império universal que os sumérios de Uma não puderam realizar foi mais tarde a grande idéia que ao longo de milênios o Oriente ântero-asiático realizou em diversas formas: do Estado de Akkad (pouco depois de Urukagina) aos impérios da Assíria e da Babilónia e, por fim, ao grande império persa destruído por Alexandre Magno em 334-327 a.C. A partir de Alexandre Magno ela foi transmitida ao Ocidente.
O império romano também se baseava nessa idéia. Depois de suas grandes conquistas mediterrâneas, conciliou a antiga idéia de cidade-estado com a outra - tão antiga quanto o Estado de Akkad -, do império universal acima da cidadeestado e das "nações" que vivem no império. Da Europa à Ásia e à África, o novo Estado renovou a vida nas cidades antigas; novas cidades surgiram, sobretudo na Europa e na África; o império se sobrepôs às nationes, como no Oriente os grandes Estados universais (em especial o aquemênida) haviam se sobreposto às diversas "línguas" dos povos acima mencionados. No ódio ou no amor, Roma dominou as consciências. De maneira que a crise do mundo sumério sob Urukagina apresenta-se à memória dos homens como um episódio, "redescoberto" há cerca de cinqüenta anos; enquanto a crise da unidade romana sempre apareceu como a chave para entender a história do mundo, quando as antigas formas começam a ser substituídas pelas novas. E, na verdade, com a consideração da crise do mundo antigo (e mais exatamente do mundo romano), o conceito de decadência atinge um conteúdo ideal eterno.
Há nele o drama das "nações" que, através de dificuldades e convulsões, começam a mover-se - a revelar-se, às vezes - por entre a estrutura do grande império que desmorona; e o aparecimento de novos povos na grande cena do mundo clássico; a passagem de uma administração centralizada e burocrática, à qual corresponde uma economia monetária, para uma economia que no Ocidente antecede o feudalismo e no Oriente procura conciliar serviço militar e trabalho nos campos; a lenta atrofia de uma agricultura que procurou alcançar o equilíbrio entre o trabalho servil e o dos colonos ligados à gleba. Ao mesmo tempo, o triunfo da cidade cristã de Deus, segundo a ideologia agostiniana. Há, em suma, a morte do mundo clássico: uma morte acompanhada pelo declínio de valores e das formas sociais em seu interior, pelo aparecimento de germanos, eslavos e árabes fora de suas fronteiras.
A crise do império romano tem ainda duas outras características, estreitamente relacionadas. A primeira pode ser formulada da seguinte maneira: em certo sentido, precedeu o fim do mundo antigo a grande crise que desde a Guerra do Peloponeso (e depois ainda mais no século IV a.C.) atormentou o mundo grego e que desde o início foi percebida pelo maior historiador de todos os tempos: Tucídides. A segunda é quase um corolário da primeira: a crise do poderio romano foi temida e, dir-se-ia, diagnosticada desde o século II a.C., ou seja, desde os tempos das grandes conquistas mediterrâneas. No estágio atual de nossos conhecimentos podemos dizer que o conceito de decadência se difundiu na Itália como decorrência da crise agrária que se seguiu a tais conquistas. Marcas e conseqüências da crise, entre o século II a.C. e os primeiros decênios do século seguinte: a proletarização dos camponeses romanos; a contração das terras cultivadas por pequenos proprietários[1]; a presença de mão-de-obra "importada e bárbara" em regiões agrícolas como a Etrúria[2]; a nova legislação agrária e a relativa aspiração de camponeses itálicos à cidadania romana.
O antigo ideal etrusco dos "séculos" - cada um com aproximadamente o tempo de vida de um homem, ou melhor, um pouco mais - forneceu um esquema à consciência de um crepúsculo de certos valores tradicionais. Já por volta de 100 a.C. (de acordo com alguns estudiosos, até mesmo 200 a.C.) foi escrita na Etrúria uma página dos livros "Vegóicos", sobre a qual pesa a previsão de uma decadência culpada:
Quando se atribuiu a terra da Etrúria, Júpiter quis que campos e terrenos fossem delimitados por marcos de fronteira ... No entanto, devido à avidez do oitavo século, prestes a começar e último[3], os homens, com aflita culpa, violarão aquelas pedras, tocando-as e removendo-as. Porém quem as tocar e ampliar o próprio terreno e diminuir o do outro será punido pelos deuses. Se isso ocorrer por culpa dos servos, eles terão amos mais severos. Se for por culpa dos amos, a estirpe do culpado será destruída, toda a sua gente morrerá, vítima de males e feridas, debilitada em seus membros. Tempestades e turbilhões arruinarão a terra; seus produtos serão atingidos por chuva e granizo, esgotados pela canícula, destruídos pela ferrugem. E [haverá] muitas dissensões no meio do povo. Saibam que isso ocorrerá caso tais delitos venham a ser cometidos.
Assim esse texto etrusco, que chegou até nós através da tradução para um latim popular, dava por volta do ano 100 a.C. uma voz sagrada - a da "ninfa" Vegóia - ao conceito do ocaso da "nação" etrusca; os etruscos acreditavam que à sua nação (ou, como costumavam dizer, ao seu "nome") estivessem destinados "ao todo oito séculos" (yÉvYn, na formulação grega de Plutarco); e o texto vegóico declarava que o último dos oito séculos, já próximo, teria encerrado a história etrusca em meio à ruína da agricultura, por culpa dos "delitos" de amos ou de servos (os "servos" etruscos tinham juridicamente o direito de posse).
O conceito de uma decadência da terra cujos produtos já não dão rendimento era difundido, mesmo que com um sentido diferente, também em outras regiões da Itália. Lucrécio, contemporâneo de Cícero, apresenta-nos o camponês de sua época atormentado pela surda resistência que a terra opõe. No entanto a lamentação do camponês torna-se em Lucrécio uma amarga constatação da decadência como fato materialisticamente determinado:
Eis que já nosso tempo decaiu (fracta est aetas). A terra, cansada, a muito custo cria pequenos animais - ela que criou todas as gerações humanas e deu à luz gigantescos corpos de feras. - Além disso, há tempos ela mesma espontaneamente criou para os mortais as douradas colheitas e as frondosas videiras; deu doces frutos e pastos verdes; e agora estes crescem a muito custo, com nosso esforço. Utilizamos bois e camponeses e arado; mas os campos mal e mal nos compensam, a tal ponto são avaros e exigem trabalho. E já, sacudindo a cabeça, o velho lavrador suspira com freqüência; lamenta seu vão trabalho e compara o tempo de hoje com os tempos que passaram; muitas vezes louva a sorte de seu pai. Triste, o plantador de uma videira envelhecida e lânguida acusa a ação do tempo e culpa nossa época; protesta que os homens de antes, cheios de piedade, encontravam vida fácil em pequenos campos, embora fosse bem menor seu pedaço de terra. Com suas lamentações, não percebe que todas as coisas apodrecem lentamente, caminhando para a sepultura, desgastadas pelo longo caminho do tempo spatio aetatis defessa vetusto).[4]
Não que Lucrécio negue o progresso (a experientia mentis pedetemptim progredientis, como costumava dizer: "experiência do espírito em marcha rumo ao progresso"); mas para ele a decadência é um fato da natureza, que diz respeito à natureza, e não à "mente" dos homens. O vir-a-ser leva ao que os homens chamam de morte: trata-se de um velho conceito de Empédocles, talvez mesmo de Leucipo (outro filósofo grego do século V), que no epicurista Lucrécio se reveste de sofrida amargura.
Porém os fatos humanos sempre procuram uma medida humana: o conceito de decadência não pode reduzir-se apenas ao esgotamento do solo. O próprio Lucrécio não dizia que os homens, impulsionados pelo falso terror da morte, derramam nas guerras civis o sangue fraterno? E que odeiam e receiam até mesmo a mesa dos consangüíneos? Sua época parecia-lhe dominada "pelo amor à riqueza e pelo cego desejo de honras, que induzem os míseros mortais a transgredir os limites do direito e muitas vezes a tornar-se cúmplices e ministros de culpas, procurando noite e dia galgar, à custa de enormes sacrifícios, os cumes do poder". Acompanhava seu determinismo naturalístico a consciência de viver" em tempos infelizes para Roma", patriae tempore iniquo. Esse drama humano que o epicurista Lucrécio reduzia ao falso terror da morte era também um drama histórico, uma conseqüência das grandes conquistas mediterrâneas e, aos olhos dos contemporâneos, o anúncio de uma decadência já não cósmica (como a crise da agricultura, segundo Lucrécio), e sim política e humana.
Dentre os contemporâneos de Lucrécio, Cícero também dava essa explicação política e humana; contudo, um século antes uma atenta consideração do drama agitara a consciência de pensadores e políticos no âmbito do círculo dos Cipiões. Aqui também vemos uma característica do problema "decadência de Roma": séculos e séculos antes de sua queda, o imperium supranacional dos romanos era objeto de ansiedade por parte dos homens que contribuíram para sua definitiva afirmação. Já no século II a.C. Comélio Cipião Nasica Corculum, o cônsul do ano 155 a.C., ficou famoso por sua tese anticatoniana, segundo a qual era preciso deixar Cartago de pé, pois a existência desta última se fazia necessária para evitar a decadência do Estado romano. Porém, o próprio conquistador de Cartago, Comélio Cipião Emiliano, teve o obscuro pressentimento da morte, próxima ou longínqua, de Roma. Na época, 146 a.C., Políbio, o grande historiador do círculo dos Cipiões, encontrava-se perto dele e captou o instante de tristeza do comandante. "Tomou-me a mão direita", conta ele, "e me disse: 'Políbio, sim, isto é lindo; entretanto, não sei como, receio e pressinto que outro venha a dar a nossa pátria a mesma notícia' (que agora é dada a Cartago)." Nascido na Grécia, Políbio não tinha Roma por pátria; na verdade, porém, apaixonara-se pela cidade dominadora com a intensa alegria de quem está consciente de assistir a um momento admirável e grandioso. Com esse estado de espírito, ele, historiador "pragmático", analisou as causas da futura "ruína" de Roma.[5]
É até por demais evidente que sobre todas as coisas pairam ruína (rprJopa) e mudança: a necessidade natural basta para nos dar tal convicção. Duas são as formas pelas quais cada tipo de Estado costuma perecer: uma é a ruína que vem de fora; a outra, ao contrário, é a crise interna (ev aUToí\-); difícil de prever a primeira, determinada a partir de dentro a segunda ... De fato, quando uma comunidade superou muitos e graves perigos e chegou a um poderio e a um domínio indiscutíveis, fatos novos ocorrem: a felicidade nela instala sua sede, a vida volta-se para o luxo, os homens almejam alcançar as magistraturas e as demais distinções. Seguindo-se nesta direção, a aspiração às magistraturas ou o protesto dos que se vêem repelidos originará a decadência (Ti'i, E7l'l Tà XEZpOV JLETCl'(3011..0,); a soberba e o luxo farão o resto. As massas populares darão seu nome à crise: sentir-se-ão ofendidas pelos que querem acumular riquezas; outros, cobiçando magistraturas, as insuflarão e adularão demagogicamente. Sobrevirá então a rebelião das massas; excitadas, cheias de esperanças, não mais quererão obedecer, nem permanecer nos limites do direito fixado pelos grandes; haverão de querer todo o poder ou o máximo de poder. Depois a constituição terá o nome mais belo que existe: democracia e liberdade; e na verdade será a pior possível, o domínio da massa (bxÀOKpaTía).
Assim, o historiador tinha como certa a futura cprJop& do Estado romano e considerava suas causas claramente previsíveis no tocante aos conflitos de classe internos. Com relação às "causas externas" ("as migrações dos povos", cinco a seis séculos depois), não ousava fazer previsões abertamente, ainda que tivesse muito a dizer sobre isso. Não limitava seu olhar a Roma: a potência do imperium de Roma e, ademais, o fim previsível encaixavam-se em sua visão dos Estados de alta cultura do Oriente: tanto dos que haviam desaparecido muito tempo antes, como dos que em sua época caíam sob os golpes de longínquos povos bárbaros. Políbio dizia que o império dos romanos era infinitamente superior a todos os antigos impérios universais:
O império dos persas foi um tempo grandioso... ; durante doze anos (os espartanos) com muito esforço mantiveram a hegemonia sobre os gregos... ; vencidos os persas, os macedônios acrescentaram a seu domínio o império da Ásia; ainda assim, apesar de parecerem donos de imensas regiões e de grande poderio, todos eles deixaram a maior parte do mundo fora de seus domínios. Mas tal não fizeram os romanos: não submeteram apenas algumas partes do mundo, e sim o mundo quase inteiro; e deixaram seu império invencível para os que vivem em nossos dias, insuperável para os que virão.
Políbio conhecia muito bem os Estados que a expansão da Macedônia criara na Asia; era amigo pessoal do rei selêucida Demétrio I. Esse decadente Estado selêucida, que já se estendera da Síria até o Irã oriental, poderia ter sugerido à sua inteligência uma confusa imagem do que na realidade foi a grande crise do mundo antigo: desmembrara-se pedaço por pedaço; dele se separara o Estado grego de Bactriana, consolidado em 206 a.C. sob o rei Eutidemo; por fim, em 130 a.C. os povos cavaleiros nômades, provenientes da Ásia central, aterrorizaram e "barbarizaram" a Bactriana grega, posto avançado nevrálgico do mundo helenístico. "Barbarizado": Políbio usava o termo. Ele refletia a respeito desses novos acontecimentos do ano 130 a.C., que atingiram um mundo espacialmente muito afastado do império romano, mas que, como este, expressava a cultura clássica antiga. As invasões dos bárbaros no mundo antigo anunciavam-se, assim, no Irã oriental, seis séculos antes da formação dos reinos romano-bárbaros no Ocidente. Políbio compreendeu, pelo menos em parte, a terrível lição; e numa passagem atormentada e significativa[6] colocou na boca de Eutidemo - o criador da potência bactriana - uma ponderada previsão da "migração de povos" novos Estados de alta cultura.
A mim, Eutidemo, cabe o título e a dignidade de rei (independente do Estado selêucida). Se Antíoco não está de acordo, nem eu, nem ele estamos seguros do poder. [Vale dizer: a barbarização ameaça tanto meu Estado como o dele.] De fato, não há poucas multidões de nômades, e ambos - Antíoco e eu - corremos sério risco com sua irrupção: se tivermos de enfrentar seu ímpeto, o país com certeza será barbarizado. Isto disse Eutidemo... E Antíoco (III, o Grande) compreendeu a importância dos argumentos acima mencionados e se dobrou à proposta de Eutidemo.
Podemos a esta altura resumir. Nas Histórias de Políbio já se encontram os dois motivos que até nossos dias sempre predominaram na interpretação do fim do mundo antigo: de um lado, a explicação "interna", que Políbio já aplica à estrutura constitucional do império romano, deduzindo sua futura ruína da impossibilidade de superar os conflitos de classe; de outro, a explicação "externa", que Políbio aplica à "barbarização" do Estado greco-bactriano, em que uma grande estrutura de cultura clássica, misturada à cultura iraniana, foi submergida por uma onda de nômades iranianos, estes impulsionados por uma vaga de hunos, encerrados em sua cavaleiresca armadura de ferro, atraídos para o Estado bactriano como ocorreu mais tarde (cinco a seis séculos depois) com os godos em relação ao império de Roma.
Entre as duas interpretações opostas da crise antiga - interpretação "interna" e interpretação "externa" - evolui no pensamento de Políbio a reflexão sobre a grandeza e a decadência de Roma. A época posterior à de Políbio abordou das mais variadas maneiras o tema da decadência. "interna"; o texto vegóico - já o vimos - com tons de comoção religiosa, relativos à Etrúria, e não a Roma; na verdade, as condições agrícolas da Itália eram então bem diversas nas diversas regiões (por exemplo, entre os etruscos predominava o latifúndio, entre os mársios a pequena propriedade; e assim os primeiros foram hostis, enquanto os segundos se mostraram favoráveis a Lívio Druso).[7] No entanto as guerras civis e a guerra de Espártaco revelaram a crise agrícola da Itália; Lucrécio, apesar de sua tese de que a decadência era um fato natural, devido ao cansaço da terra, não esqueceu o aspecto humano e os grandes problemas que agitavam a vida de Roma em decorrência das conquistas. Por isso é que ele, epicurista, não falava em "decadência", mas em "terror falso da morte". Diferentemente de Políbio, a ênfase de Lucrécio não recai mais sobre a rebelião das massas; o "terror da morte" atua no foro interior das ambições insatisfeitas.
Em Cícero o conceito da decadência de Roma assume um duplo aspecto: é decadência de costumes e falta de homens realmente grandes (virorum penuria). "Antes de nosso tempo o costume pátrio permitia o aparecimento de personalidades insignes, e o costume antigo e as instituições tradicionais eram conservados por personalidades eminentes. Em nossa época, ao contrário, o Estado é como uma pintura excelente, só que evanescente devido à idade; e não houve interesse nem em devolver-lhe as cores de antigamente, nem em conservar ao menos sua forma e suas linhas externas."[8] Até o "anticiceroniano Salústio, em suas tímidas análises,[9] volta-se para a consideração das classes dirigentes que sonham com riqueza e magistraturas; para ele a decadência está ligada ao desaparecimento da virtus (um motivo que voltará a aparecer em Maquiavel). Assim, em Salústio a crise dos costumes e o advento da luxuria têm uma evidente conseqüência política; como mais tarde em outro historiador, Veleio, situam-se, grosso modo, em 146 a.C. Esta era, de resto, a doutrina de Posidônio (já Calpúrnio Pisão datava em 154 a.C. o início da decadência moral; posteriormente Lívio afirmará que ela remonta ao ano de 188 a.C.), acompanhada, em Salústio, de uma participação apaixonada que mais se parece com uma polêmica. Foi nessa época que se utilizou pela primeira vez no mundo romano a palavra "declínio" no sentido de "declínio do Estado": inclinata res publica é fórmula de Cícero e de Salústio. E a visão salustiana da decadência tem um fundo de tristeza geral: a fórmula "tudo que nasce tem um fim" (omnia orta intereunt) aparece duas vezes nesse historiador. De resto, em seu pressentimento do fim de Roma há muito menos resignação do que em Políbio. Ele não renuncia à esperança; muito pelo contrário. Escreve a César:
Este é meu pensamento. Como o que nasceu morre, quando a fatalidade se abater sobre a cidade de Roma, os cidadãos entrarão em conflito com os cidadãos; e só então, cansados e esgotados, cairão nas mãos de algum rei ou de alguma nação. De outra forma, nem o mundo inteiro, nem todos os povos juntos poderão romper ou danificar este império de Roma. É preciso, portanto, consolidar os bens da concórdia, destruir os males da discórdia.
A hipótese segundo a qual o fim do mundo antigo se deva somente às guerras civis afasta, de certa maneira, o grande medo: um homem superior poderá trazer de volta a concórdia. É bem verdade que o reinício das guerras civis depois da morte de César reinstalou o desespero em muitos meios: no epodo XVI, Horácio fala - e aqui usamos termos polibianos - em "ruína interna" (suis et ipsa Roma viribus ruit) e "ruína externa" (barbarus heu cineres insistet victor et urbem eques sonante verberabit ungula). Entretanto a esperança no homem que iria colocar um ponto final nas guerras civis desfazia as ansiedades de muitos; fora a esperança de Salústio. (Um historiador italiano, Aldo Ferrabino, disse por isso que "Roma, aquela Roma que Salústio contempla, não tem seu fim na decadência".)
A perspectiva de um fim necessário ficou afastada até mesmo no plano religioso. Com relação à Etrúria foram abandonadas as antigas profecias que consideravam o oitavo saeculum como o último e estabeleciam seu início em 88 a.C.; o arúspice Volcácio acrescentou o século nono e o décimo, corrigindo todo o tradicional cálculo etrusco dos saecula. No entanto, sobretudo para Roma, o otimismo dos augúrios teve um significado profundo. A fé na vida triunfou sobre ogrande medo da morte iminente. Na época de Varrão, um certo Vétio chamara a atenção para o significado augural dos doze abutres vistos por Rômulo: uma vez que - disse ele - na época Roma tinha atravessado os primeiros 120 anos de sua fundação, lhe estavam destinados não mais doze dezenas de anos, e sim doze séculos, 1200 anos; para esse profeta amigo de Varrão a morte de Roma situava-se mais ou menos ( diríamos nós) na época de Átila.
A astrologia sugeriu ainda outras especulações. Ao conceito de uma "decadência" mais ou menos necessária e preestabelecida sobrepôs-se o da "nova fundação" de Roma em ciclos fixos: com a introdução do calendário cesariano de 365 dias, pensou-se em grandes ciclos de 365 anos, depois dos quais as comunidades encontram a morte ou a renovação. Concluiu-se, portanto, que, assim como no 365ª ano de sua fundação Roma havia "ultrapassado" o prazo de morte (o incêncio gálico) graças à intervenção de Camilo, novo Rômulo, assim também no final do novo ciclo de 365 anos a partir de Camilo encontrava em Augusto - honrado com o poder tribunício no ano de 23 a.C. - seu "novo Rômulo" .[10]
De fato, César e seu "filho" Augusto superaram o período das guerras civis; depois deles, graças ao estabelecimento do Estado de Augusto em 27 e em 23 a.C., o problema polibiano da decadência de Roma colocava-se em termos diferentes. O império romano viverá ainda cinco séculos no Ocidente (em algumas partes do próprio Ocidente, mais sete, oito, até mesmo dez séculos, tendo continuado em sua forma "romã" ou bizantina); no Oriente, como império "bizantino", terá sua grande crise no século VII e, amputado em regiões vitais, continuará até o império latino de 1204 e, mais tarde, depois do parêntese latino, até 1453. Uma perspectiva que se prolonga amplamente no tempo. Ainda assim o problema de Políbio continuará a ser colocado desde os primeiros séculos do império fundado por Augusto; ou seja, colocar-se-á o problema da morte de Roma antes mesmo que Roma de fato pereça.
A esta altura as categorias ideais do problema já estão deslocadas no espaço e no tempo. No espaço, porque Roma não mais se encontra no centro da cidade antiga ou da própria Itália; pontilhou suas províncias de colônias; e a partir de Trajano (98-117) poderá haver imperadores romanos que não nasceram na Itália; desde o ano de 212 todas as pessoas livres das províncias, excetuando-se os dediticii,[11] obtiveram a cidadania italiana. No tempo, porque a esta altura o problema da "rebelião das massas", colocado por Políbio, não pode ser apenas o das massas proletárias de Roma, nas quais pensava o historiador, ou da Itália; é o problema das massas camponesas sírias, ilírias, celtas, africanas, egípcias - enfim, das "nações", 'f.l3WIJ, que vivem nas províncias do imenso império romano. Não mais, como na época das guerras civis, a crise da classe dominante se acrescentava à insatisfação do proletariado romano ou italiano; no fim do mundo antigo, o império universal romano deverá analisar o problema das massas fanáticas na África donatista, na Síria nestoriana, no Egito monofisita; acrescente-se a isso a hostilidade dos camponeses celtas e panânios ainda não de todo romanizados, presos à terra por um vínculo extremamente forte. Problema, portanto, das nações. E havia, além disso, o problema da ameaça de "barbarização", que Políbio assinalara na longínqua Bactriana. Com o passar dos tempos ele agora amadurecia para a própria Roma: problema das "causas externas" de decadência, como teria dito o próprio Políbio.
O pressentimento de um fim "cientificamente" previsível, da forma como se encontra em Políbio (ou entendido em termos éticos, como em Cícero e Salústio), estabelecia, já na cultura da Roma republicana, uma estreita correlação entre o conceito da decadência e o da previsibilidade dos fatos históricos. Por esse motivo, a "profecia" polibiana tornou-se atual por excelência em outra época, na qual se acreditou ser possivel prever o curso fatal da história: a época do romantismo. Há um século, em 1858, surgiu um livro de Lasaulx, A força profética humana nos poetas e nos pensadores, obra romântica do início ao fim. Hoje em dia esse livro caiu em justo esquecimento, porém na época teve considerável sucesso, pois a tese que sustentava a da "previsibilidade da história" - contava ao mesmo tempo com aguerridos defensores e com adversários combativos, destacando-se entre os últimos Gervinus. Claro que Políbio era o grande trunfo da argumentação de Lasaulx: se o historiador do período republicano conseguira "prever" a crise do Estado romano, todas as demais "profecias", por exemplo a de Nicola Cusano a respeito da revolução contra os príncipes alemães, ou a de Leibniz a respeito da grande revolução "gerada pela crítica", adquiriram cidadania na história do espírito. Mas no fundo das hipóteses românticas sobre a "previsibilidade" da história estava sobretudo a teoria hegeliana dos tempos de realização e da velhice pacificadora. Assim, com toda a certeza, o Políbio dos românticos estava muito longe do autêntico Políbio, que preferia os fatos aos esquemas; entretanto a época polibiana e salustiana tem em comum com o preocupado romantismo de cem anos atrás a inquietante percepção de uma conexão entre o conceito de decadência e a previsibilidade da história.
Sob este aspecto Políbio está para a crise da república romana como Burckhardt e Nietzsche estão para a crise de nosso tempo. Em ambos os casos trata-se de homens que julgam viver numa época madura (a fundação do máximo império do mundo, para Políbio; a cultura do século XIX, para Burckhardt e Nietzsche), mas acreditam também vislumbrar densas sombras nos acontecimentos futuros. Iludem-se ao julgar que seu pessimismo tem justificativa "científica"; na verdade forçam os fatos a caber no leito de Procusto de algumas premissas. Já o mito da progressiva decadência, tal como se exprime (nos albores da civilização clássica) na doutrina de Hesíodo do progressivo afastamento da idade do ouro, tem uma origem religiosa inconfundível: é o conceito do "eterno retorno", que Mircea Eliade estudou num livro famoso. Um ponto de vista análogo, formulado de maneira cíclica, leva-nos ao conceito dos saecula que nascem e morrem; como vimos, ele deu lugar, na Itália antiga, à doutrina "vegóica" que colocava o fim da nação etrusca no oitavo saeculum e a interpretava como um castigo do deus Tinia ("Júpiter"). Diante do empenho histórico, o homem ainda tem outra atitude possível: julgar que a decadência pode ser superada através de uma retomada das organizações antigas; é - como mencionamos - a fórmula de Urukagina, já no terceiro milênio a.C.; pode-se compará-la à doutrina de Salústio segundo a qual "é preciso consolidar os bens da concórdia" para afastar a morte de Roma; mesmo o conceiro da "nova fundação" por mão de Camilo e de Augusto encaixa-se neste quadro. A interpretação naturalística de Lucrécio, segundo o qual a decadência se resolve no cansaço da terra, desloca o problema para um plano biológico-cósmico; ao contrário, a imagem ciceroniana do decadente Estado romano como de uma pintura envelhecida e evanescente traz à mente a idéia de velhice num plano ético-político. Cícero insiste na virorum penuria. No mundo antigo, como no moderno, o conceito de decadência evolui entre perspectivas muito diversas.
Notas
[1] Recentemente Tibiletti, in "Atti del X Congresso lnternazionale di Scienze Storiche", Rel. II (1955), 235 ss.; Kousitchin, in "Vestnik drevnej istorii", 1957, l, 64 ss.
[2] S. Mazzarino, "Historia', 1957, pp. 110 ss
[3] Sobre esta tradução, in "Historia", 1957, cit., p. 112.
[4] Lucrécio II, vv. 1150 ss.
[5] 5. Cf. recentemente Mioni, Polibio (1949), pp. 49 ss.; Ryffel, Mtm(3oÀ~ 7roÀLTELWV (1949),180 ss; Ziegler, R. E., XXI, 2 (1952), 1495 ss.; Sasso, in "Rivista storica italiana", 1958, 333 ss.
[6] Políbio XI, 34.
[7] O tribunato de Lívio Druso, em 91 a.C., tem importância capital para o entendimento da história romana. Distribuindo terras na Itália aos cidadãos romanos, Lívio Druso contrariava os interesses dos grandes proprietários de terras donos de escravos; por outro lado, dava certa vantagem aos pequenos camponeses da Itália, aos quais prometia a cidadania romana; dessa forma eles também poderiam participar da distribuição de terras (assim, Bernardi in "Nuova rivista storica" 1944-45,60 ss.; muito diferentemente Gabba, in "Athenaeum" 1954,41 ss.) ou pelo menos não ficariam prejudicados. Colocados diante da perspectiva aberta por Druso, os agricultores da Itália reagiram de duas maneiras opostas. Mársios, sanitas, lucanos - em especial os primeiros - alinharam-se com ele; viram na conquista da cidadania romana, entre outras coisas, uma forma segura de defender suas pequenas propriedades ou de participar - num futuro próximo - da fundação de colônias. Ao contrário, os camponeses etruscos, que em sua maioria eram lautni de origem estrangeira (por exemplo, egípcia: "Historia", 1957, 110 ss.), adotaram em geral uma posição de franca hostilidade a Druso, em obediência a seus patrões latifundiários. Concluindo: ao latifúndio etrusco-umbro opõe-se a pequena propriedade nas terras dos mársios, sanitas e lucanos. Esta diferença na agronomia italiana do século I a.C. poderia ter deixado marcas até no baixo império. De acordo com alguns estudiosos o Sul da Itália viria a ser no baixo império a terra ideal para a "exploitation de peu d'étendue", ou seja, o oposto da Itália setentrional. (Déléage, La capitation du Bas·Empire, 1945,219 ss.: onde porém erroneamente Codex theodosianus XI 12, I refere-se à Itália, e não à Gália; além disso a diferença de denominação iugum e millena não me parece que implica uma diferença de extensão.) De qualquer maneira, em algumas regiões pode-se constatar certa continuidade da agronomia italiana durante toda a época imperial (por exemplo, os vinhos de Cesena eram procurados tanto no século I d.C. como no IV d.C.: Codex theodosianus I, 6); houve uma cesura na Idade Média, com o sistema longobardo das "igrejas próprias", que atingiu o latifúndio toscano. [Observe-se, entre outras coisas, que no baixo império a Tuscia et Umbria enquadrase, em sua acepção normal, na jurisdição de Roma; é "Itália meridional".]
[8] Cícero, De re publica, V, 1,2.
[9] Recentemente Steidle, Sallusts Historische Monographien, in "Historia", Einzelschr. H. 3 (1958).
[10] Com esta hipótese eu explicaria o trecentesimus sexagesimus quintus annus agitur de Lívio, no célebre discurso de Camilo, para o qual sobretudo Hubaux chamou a atenção. Na explicação que proponho Lívio derivaria a idéia dos círculos de Augustos; supera-se, assim, a objeção, que sempre foi oposta a Hubaux, da impossibilidade de um "grande ano" de 365 anos antes do calendário de César. Cf. recentemente Hubaux, Rome et Véies (1958).
[11] Sobre esta constituição, promulgada pelo imperador Caracala em 212, cf. infra, cap. II. Infelizmente não sabemos com precisão quem eram os dediticii que Caracala excluía do benefício da cidadania. Em termos de puro direito, chamamse dediticii todos os habitantes do império não ligados a Roma por um tratado de aliança (foedus); mas em 212 o termo tinha uma acepção muito mais limitada. Todavia, de acordo com alguns estudiosos (entre eles o autor do presente volume), podia abranger consideráveis massas camponesas - por exemplo, no Egito - não assimiladas a cultura greco-romana; de acordo com outros, referia-se tão somente a bárbaros acolhidos no império em épocas relativamente recentes. (Outra categoria de dediticii compunha-se de escravos libertos que, por culpas anteriores, não podiam obter a cidadania romana ou latina.) A fórmula usada por Caracala que chegou até nós (Papyrus Gissensis 40) diz: "Concedo, portanto, a cidadania dos romanos a todo[s os peregrinos d]o orbe, cabendo [tal doação] a... exceção feita para os dediticii." (As diversas interpretações propostas pressupõem sempre um [/l]ÉVOVTOÇ intransitivo; eu o entendo como transitivo e, portanto, traduzo-o "cabendo". Recente literatura e discussão: D'Ors, in "Emerita" 1956, p. 10; Oliver, in "American Journal of Philology" 1955, p. 297.)
por MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins Fontes, 1991
Comentário por Alam Arezi
Numa minuciosa perspectiva de pesquisa, Mazzarino expõe as diferentes visões sobre o final do mundo antigo, dando ênfase a relatos de Historiadores que previam a queda de Roma e, o final dos tempos.
As diferentes formas de pensamento, divididas entre paganismo e cristianismo remontam a um cenário onde profecias providas de fatores diversos, como as invasões bárbaras, guerras e disputas internas pelo poder influenciam a dialética da época. O fim do mundo antigo é alcançado pelo medo que divide o império (Estado universal de Roma) em duas partes; a do ocidente e do oriente.
O que também exerce um enorme peso nesse pessimismo eminente são os contatos entre diferentes povos. Esse ‘aculturamento’, além de prejudicar a unificação do império, torna-se justificativa para guerras civis internas, o que causa um esfacelamento maior ainda da dignidade e vitalidade de um império que previa seu fim desde o começo: “Omnia orta intereunt” – tudo o que nasce tem um fim, frase dita por Salústio (século II a.C).
Assim, presume-se que foram vários os fatores que efetivaram caos na baixa idade antiga (mais especificamente no império Romano) e, o que Mazzarino traz com seu texto até nós, é epistemologicamente completo, entretanto, não existe verdade total.
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