Final dos tempos ou crise no Império

Com o advento de Augusto, a estrutura política se trans­formou e os grandes medos desapareceram: Roma e a Itália estavam salvas, as províncias organizadas de forma definitiva.

Muitas pessoas da geração que testemunhou tal renas­cimento - a segunda geração a partir de Augusto - não queriam mais ouvir falar em decadência dos costumes e ou­tras crendices do gênero. O poeta Ovídio pertencia a essa geração; os antigos protestos dos "ruminantes" como Var­rão o incomodavam. O que pretendiam esses apologistas da Antigüidade, críticos ferrenhos do luxo e da avaritia? "Há quem goste do passado", dizia Ovídio, "mas eu me sinto feliz por ter nascido agora; esta época convém à mi­nha maneira de viver." Longe de falar em decadência, ele gostava de falar em progresso técnico (as minas, o comér­cio) e cultural: "Hoje, percebe-se que há bom gosto (cultus); e nosso tempo procura escapar daquela rusticitas que ainda se notava entre os antigos antepassados."[1]

Entretanto velhos problemas ainda se arrastavam, so­bretudo de ordem econômica. O declínio da agricultura ita­liana acentuou-se diversas vezes: duramente atingida na época das guerras civis, arruinada - já no período da revolta de Espártaco - pelo sistema das plantações. Crises financeiras colocavam à mostra dificuldades evidentes. Se na época de Sila o poeta Lucrécio lamentara o cansaço da terra, procu­rava-se agora um remédio na sabedoria dos homens. No tem­po de Domiciano, um agrônomo célebre, Columela, vol­tou a lamentar a decadência da agricultura italiana. Elogia­va os velhos tempos: a mesma antiga querela que Ovídio julgara insuportável.

Havia outro problema que o otimismo de homens co­mo Ovídio não conseguia resolver. A fundação do princi­pado instaurou um regime monárquico baseado na auctori­tas do príncipe. A classe dirigente viu esfacelar-se a antiga tradição da liberdade republicana. Foi um golpe muito sé­rio, sobretudo no início. A amargurada saudade da antiga lIberdade, Juntamente com a idéia de que o novo regime monárquico é sinal de velhice, permeia uma amarga página de Sêneca pai, escritor que nasceu na era republicana e mor­reu durante o império de Calígula. Do fundo de sua dor, o venerável ancião sem esperanças sonhava com a antiga Roma republicana, e o olhar desiludido reevocou o trágico episódio das guerras civis.

A primeira infância de Roma se deu sob as ordens de Rômulo seu fundador e como que nutridor; depois transcorreu a adolescência sob os demais reis; quando começava a ficar adulta, não to­lerou a servidão; e, abandonado o jugo, preferiu obedecer às ieis antes que aos reis. Essa adolescência encerrou-se por ocasião do término da guerra púnica; então reforçou-se o poderio de Roma e teve início sua juventude. De fato, destruída Cartago, que du­rante longo tempo lhe dificultara o caminho do império, Roma estendeu seu poder sobre todo o mundo, por terra e por mar; até que, subjugados todos os reis e as nações, não tendo mais preocu­pações com guerras, empregou mal suas próprias forças e acabou por esgotar-se. Esta foi sua primeira velhice; quando, dilacerada pelas guerras civis e atingida por uma crise interna, recaiu no regi­me monárquico como numa segunda infância. De fato, depois de perder a liberdade defendida sob o comando e a iniciativa de Bru­to, envelheceu assim, como se não tivesse forças para se sustentar a não ser recorrendo ao apoio dos monarcas.


Nesta análise biológica da história de Roma,[2] percebe­se um retorno ao conceito ciceroniano do Estado romano como "pintura evanescente devido à idade"; porém no es­critor da época de Calígula o conceito de decadência "se­nil" é ao mesmo tempo um grito de dor e uma exaltação da liberdade - a liberdade como época da juventude. De­veremos nos lembrar de Sêneca ao recordar a doutrina hu­manista, segundo a qual caberia atribuir ao regime impe­rial a inclinatio de Roma, mesmo a doutrina de Seeck a res­peito da "eliminação dos melhores".[3]

Não é por acaso que nos séculos I e II os próprios cír­culos dirigentes do império começaram a utilizar o termo "declínio" (inclinare) para o que diz respeito aos costumes e à literatura; em Plínio encontramos inclinatis iam mari­bus e em Quintiliano inclinasse elaquentiam. Uma transfe­rência, portanto, do conceito de inclinare (que em Cícero se aplica ao Estado) para a esfera da cultura; é o período em que se fala de decadência das artes (Petrônio) e da eloqüência (Tácito e Quintiliano). Assim, a tradição romana, representada pelas classes senatoriais e pela alta cultura, ela­borou uma espécie de humanismo próprio: na história moderna o conceito de inclinatio será exatamente a grande des­coberta do século XV. Juvenal retomou o velho tema da luxuria geradora de males abordado por Varrão: "Pior que as armas, a luxuria nos oprimiu e vinga o mundo, sobre o qual triunfamos; desde que a pobreza romana desapareceu, não há delito que não seja cometido entre nós."

Fora do mundo da tradição, que se exprime de manei­ra admirável no conceito de Sêneca de velhice-monarquia, uma profunda revolução espiritual conferiu renovada tra­gicidade à crise que envenenava o mundo clássico: a revo­lução cristã. Em algumas de suas manifestações, ela pode ser comparada a certas expressões contemporâneas do mun­do judaico, humilhado e desarticulado pela conquista ro­mana e pela opressão resultante; por exemplo, pode-se men­cionar o Comentário de Hababuc, um dos textos que as des­cobertas do mar Morto trouxeram à luz, no qual se denun­cia o drama espiritual do judaísmo e se atribui a culpa disso a um sacerdote ímpio: "Aquele", identifica-o o Comentário, "que, por causa da ofensa cometida contra o Mestre de Justiça e os membros de sua comunidade, foi entregue por Deus às mãos de seus inimigos para que o destruíssem de um golpe, com amargura para sua alma: tendo agido de for­ma ímpia com relação a seus eleitos." O Comentário de Hababuc, condena esse “sacedorte ímpio” e todos os “que se calaram quando o mestre de justiça foi punido e não o ajudaram contra o homem de mentiras que ofendeu a Lei”: à condenção do “sacerdote ímpio” e do “homem de mentiras" o Comentário acrescenta uma implacável aversão aos romanos (Kittim), os quais "sacrificarão às suas insígnias, e seus instrumentos de guerra serão por eles adorados".

Ao conceito de decadência substitui-se aqui o de "cul­pa" religiosa; e os romanos, juntamente com os judeus que traíram, são os execrados autores da ofensa a Deus. Mais tolerante para com o império romano, o cristianismo pri­mitivo (que se formou, ainda assim, no mesmo âmbito do renascimento espiritual judaico) revelou, entre outras coi­sas, um gravíssimo aspecto da crise do mundo antigo: a opressão social que caracterizava o domínio romano sobre os camponeses das províncias. São Tiago, que como Jesus acabou condenado à morte, expressou nos primeiros tem­pos do império esta sua interpretação da crise do mundo, considerada a partir do atormentado ponto de vista do uni­verso palestino-judaico, onde se moviam poderosas as no­vas idéias que um dia fariam o mundo clássico dobrar-se sobre si mesmo.


Ó ricos, chorai gritando sobre vossas misérias, que estão prestes a chegar.
Vossa riqueza está apodrecida, e vossas roupas corroídas pelas tra­ças; enferrujados vossos ouro e prata, e sua ferrugem testemunha­rá contra vós e comerá vossas carnes, como fogo. Acumulastes te­souros nos dias do fim. Eis que a paga dos que fizeram a colheita em vossas terras, desembolsada por vós, grita; e o grito dos traba­lhadores chegou aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vivestes na Terra em meio ao luxo e aos banquetes, alimentastes vossos cora­ções no dia do sacrifício. Julgastes e matastes o justo, e ele não vos opõe resistência.


Nessas antiqüíssimas sinagogas de cristãos sentavam-se ao lado dos camponeses palestinos alguns cavaleiros roma­nos, "homens que tinham o anel de ouro", como os desig­nava São Tiago; uns e outros ouviam a dramática profecia de São Tiago sobre o fim de um mundo dominado pelo pri­vilégio. Podemos talvez imaginar os olhares acabrunhados dos cavaleiros romanos, a ânsia de libertação dos camponeses palestinos, em torno dos quais o domínio dos privilegia­dos erguera uma espécie de prisão invisível. Logo a nova fé conquistou enormes massas de fiéis; e o conceito do fim imi­nente do império romano com toda a probabilidade domi­nava o espírito daqueles cristãos que, incontável massa, fo­ram queimados como tochas e martirizados cruelmente na Roma de Nero. Aliás, para eles o conceito do fim de Roma estava intimamente ligado à idéia do fim do mundo: o Anti­cristo chegaria em breve, o sopro do Senhor o destruiria. Com o passar do tempo, uma vez que o fim do mundo não parecia mais iminente (e já São Paulo advertira nesse sentido), a ati­tude dos cristãos em relação à crise imperial diferenciou-se de forma acentuada: alguns, exaltando a obra da Providência, conciliavam, confiantes, império de Roma e cristianis­mo; outros desprezavam o império e procuravam, com dis­simulada alegria, uma explicação satisfatória para a queda imi­nente devido à chegada do Anticristo, Nero redivivo, pres­tes a ser derrotado pelo sopro do Senhor.

De qualquer maneira, dois textos sagrados inspiravam sua expectativa. Um era o Livro de Daniel, escrito entre 167 e 165 a.C. Este livro (citado também num discurso de Jesus no Evangelho de Mateus) parecia declarar que quatro monarquias se sucedem na história, dominando o mundo, re­presentadas nos membros da estátua sonhada por Nabuco­donosor, respectivamente na cabeça de ouro, no peito e nos braços de prata, no ventre de cobre, nas pernas de ferro; os dedos dos pés da estátua, de ferro misturado com argila. Além disso, a visão de Daniel contemplava quatro bestas - tam­bém interpretadas como as quatro monarquias. O fim do mundo era posterior ao desaparecimento da última monarquia: este era um ponto em que se concentravam temores e esperanças.

O outro grande livro, o Apocalipse de São João, via a ser­pente dar sua força a uma besta que emergia do mar com sete cabeças e dez chifres, senhora de cada estirpe e povo e lín­gua e nação, adorada por todos os habitantes da Terra; via um anjo indicar numa mulher triste "a cidade grande que tem o reino dos reis sobre a Terra" e outro anunciar o fim da "cidade grande, a forte Babilônia", cuja morte os mer­cadores choram... Neste simbolismo apocalíptico numero­sos exegetas viam prenunciar-se o fim do mundo, a queda de Roma, a maior de todas as cidades. Quase um século de­pois de São João, por volta do final do reinado de Marco Aurélio (morto em 180 d.C.), um poeta sibilino cristão ima­ginou o ocaso anticrístico de Roma, marcado pela impie­dade e pelo sofrimento, originado pela opressão que pesa sobre os provincianos e enche de riquezas as casas do impe­rador. Nesse poeta o fim do mundo romano é certeza reli­giosa, não pressentimento comovido; as imagens apocalíp­ticas misturam-se com a visão da iminente carestia e da guerra civil. Ele abomina a universalidade de um império em que, como num imenso cadinho, obrigavam-se diversas nações a uma única têmpera. Por isso mesmo, faiscante de ódio, sua evocação não é um exame de motivos que levarão à mor­te do império: trata-se antes de uma maldição, que com tu­multuosa ansiedade invoca o esfacelamento de um Estado injusto. No fundo, para esse poeta sibilino o César roma­no é o inimigo dos provincianos: a idéia das nações oprimi­das, que de algum modo transparecera, ainda que timida­mente, em escritos do período de Augusto, adquiria sob o impulso luminoso da nova fé uma grande força moral e combinava-se com a certeza da decadência e do iminente fim de Roma.

Um monarca velho [Marco Aurélio] terá longo domínio: tristíssi­mo rei, que encerrará todos os tesouros do mundo, conservando-­os em suas casas, para que depois, quando vier dos confins da Terra o fugitivo matricida [o Anticristo, Nero redivivo], sejam dados a todos, para grande riqueza da Ásia. Então chorarás, ó rainha so­berba, rebento da latina Roma: abandonado o laticlavo dos gover­nadores, vestirás o traje de luto; não haverá mais glória para tua soberba; nem poderás reerguer-te, infeliz, estarás dobrada. E, de fato, cairá a glória das legiões aquilíferas. Onde está então teu po­der? Que terra, injustamente submetida por tuas estultícies, será tua aliada? Entre os homens de toda a Terra haverá grande confu­são, quando o Onipotente, aparecendo no Tronco, julgar as almas dos vivos e dos mortos e o mundo inteiro. Nem então serão caros aos filhos os pais, nem aos pais os filhos, por causa do sacrilégio e do sofrimento desesperado. Seguir-se-ão ranger de dentes, e dis­persão, e cativeiro, quando as cidades caírem e se abrir a Terra. E quando o dragão vermelho vier sobre as ondas, com o ventre cheio, e atormentar teus filhos, e vierem carestia e guerra civil, será o fim do mundo e o último dos dias, e para os gloriosos cha­mados o julgamento de Deus imortal. Desapiedada ira haverá, em primeiro lugar, contra os romanos, época sedenta de sangue e vi­da infeliz.
Mal para ti, itálica terra, grande estirpe bárbara: não entendes­te de onde surgiste, nua e indigna, à luz do sol, para de novo cair nua, no mesmo lugar, e por fim vir ao Juiz, pois tu mesma injusta­mente julgas... Mãos gigantescas te farão cair sozinha, pelo mun­do, lá de tua altura; e jazerás embaixo da terra; desaparecerás quei­mada de nafta e asfalto e enxofre e muito fogo, e serás pó durante séculos; e quem quer que olhar ouvirá do Hades o grande gemido de dor e o ranger de dentes, e tu que batas no peito ateu com as mãos ...
Porque o império de Roma, num tempo florescente, antiga senhora das cidades ao redor, desapareceu. A terra de Roma flo­rescente não vencerá, quando o vencedor (Anticristo) vier da Ásia com Ares. Quando tudo isso estiver cumprido, ele virá para a Ur­be que se ergue: (ó Roma), completarás 948 anos, quando o desti­no de morte se abater violento sobre ti, cumprindo o valor numeral de teu nome.

O sibilino cristão pressentia como iminente o fim do mundo antigo (e, em conseqüência, do mundo): estabelecia o fim dos tempos 948 anos depois da fundação de Roma, ou seja, em 195 d.C. Porém, mesmo neste caso a ansiosa
espera apocalíptica não se concretizou. A Marco Aurélio, sob cujo reinado o sibilino escrevia, havia sucedido Cómo­do: jovem monarca cheio de contradições, fisicamente be­líssimo mas portador de uma doença senil, orgulhoso a ponto de se apresentar como o “Hércules romano” que sabe matar as feras e combater como um gladiador, e não obs­tante apaixonado por Márcia, uma cristã a quem concedera quase todas as honras de imperatriz. Mais uma vez, com ele, a idéia do fim do mundo ficava afastada: era um impe­rador pacifista, e pós um fim às guerras empreendidas por seu pai contra os bárbaros que ameaçavam as fronteiras romanas. Mas o conceito da decadência do império não che­gou a ser abandonado; as antigas classes dirigentes, pagãs e admiradoras de Marco Aurélio diziam que uma idade de ferro tivera início com o advento de Cómodo. Para elas os bons tempos terminaram com o falecido imperador. Cás­sio Dion, historiador que foi senador nesse período, dizia: "[depois da morte de Marco], a história passou de um im­pério de ouro para um de ferro, enferrujado." Herodiano, outro historiador (talvez um liberto imperial) que viveu em Roma nesse período, também achava que a morte de Mar­co Aurélio marcava o início de uma época de decadência:

Se alguém considerar o período a partir de Augusto, desde que o império dos romanos tomou forma monárquica, não encontrará nos anos - cerca de dois séculos - até Marco nem sucessões tão cerradas de reinos, nem acontecimentos de guerras civis e exter­nas tão variadas e movimentos de nações e ocupações de cidades em nosso império e fora dele; e terremotos, e perturbações atmos­féricas, e vidas fora do normal de usurpadores e imperadores, co­mo antes nãó há lembranças a respeito, ou são muito raras.

A decadência do mundo antigo apresentava-se aos dois pagãos, Cássio Dion e Herodiano, em termos de todo anti­téticos aos formulados nos últimos tempos de Marco pelo poeta sibilino cristão. No entender deste último a morte de Roma coincidia com o reinado de Marco; já os dois pa­gãos achavam que tal reinado fora a última idade de ouro do Estado. Na visão do sibilino, o fim de Roma representava a justa condenação da opressão tributária e das guerras de Marco Aurélio; na interpretação de Herodiano, ao con­trário, a grande crise tinha início no momento em que Cô­modo, o imperador pacifista, preferira as delícias de Roma à guerra e às geleiras sobre o Danúbio, e esta predileção por Roma inspirara sua vida "fora do normal", "paradoxal", para usar o vocábulo grego de Herodiano.

Depois de Cômodo, o ano dos cinco imperadores (193), a guerra civil, o império dos Severos. Continua, então, en­tre muitos cristãos, a grande espera, e Montano julga iminente a queda deste mundo. No Ponto, camponeses cristãos deixam seus campos, vendem seus bens, esperam o dia do Juízo; e para esta espera do fim iminente, homens e mu­lheres e crianças da Síria vão ao encontro do Reino de Deus no deserto. Tertuliano reza "para que o fim seja adiado", pro mora finis. A essa altura intervém um grande escritor cristão: Santo Hipólito. Naturalmente, em sua indagação a respeito do fim do mundo ele também parte do Livro de Daniel e do Apocalipse de São João. Em seu Comentário a Daniel, Santo Hipólito exptessa de uma forma inesquecível esse sentido do fim do mundo que coincide com o fim do império romano. Situa-o em 500 d.C.: uma data próxi­ma daquela já "prevista" pelo pagão Vétio (que, como vi­mos, previra para Roma doze séculos de vida). Contudo é enorme a diferença entre Vétio, pagão da época de Varrão, e Santo Hipólito, cristão da época dos Severos: Santo Hi­pólito atribui o fim de Roma ao surgimento das "democracias”.

Os dedos dos pés (da estátua no sonho de Nabucodonosor) pretendem mostrar as democracias vindouras, que se separarão umas das outras como os dez dedos da estátua, nos quais o ferro será misturado com a argila.

Estas "democracias" surgem das "nações": "enquanto dez reis", diz Hipólito em outra parte, "dividirão entre si o império segundo as nações". Sobre a forma e a data da morte de Roma, Hipólito previu corretamente; de fato, o fim do mundo antigo foi em grande parte uma vitória das partes sobre o todo, da periferia sobre o centro enfraqueci­do. A perspectiva apocalíptica atraía o olhar de Hipólito para as contradições internas e para o destino final do im­pério do mundo. De resto, o problema das "nações", "de­mocracias" que um dia dividiriam entre si o império de Ro­ma, sempre dominou o pensamento de Hipólito.

Uma vez que o Kyrios (Senhor) nasceu no 42º ano de Augusto, quando começou o florescimento do império romano, o Kyrios (Senhor) chamou, através dos Apóstolos, todas as nações e todas as línguas e delas fez uma única nação de fiéis cristãos, que tra­zem, em seu nome, o nome do Kyrios, o novo nome. O império que nos domina segundo o poder de Satanás pretendeu imitar tu­do isso; e assim também ele, reunindo os mais fortes de todas as nações, arma-os para a guerra, chamando-os pelo nome de romanos.

Esta visão acentuava um aspecto da crise: a condição das nações no Estado universal de Roma. Mais tarde outro escritor cristão examinou a crise da vida moral: um aspec­to mais genérico, porém igualmente interessante; um tema salustiano que se manifestou na dramática atmosfera do sé­culo III d.C. Tratava-se de um insigne retórico de Cartago: Cipriano. No grande império oficialmente pagão, os cris­tãos não constituíam uma diminuta minoria, mas eram parte considerável da população, cientes da força de sua fé; se na época de Cômodo a própria concubina do imperador, Már­cia, fora cristã[4], cinqüenta anos depois as comunidades cris­tãs se fortaleceram ainda mais; o próprio imperador Feli­pe, o Árabe, que governou de 244 a 249, era considerado cristão.

Na época de Felipe, o Árabe, Cipriano converteu-se ao cristianismo. A fúria da guerra tomara conta do império sob o antecessor de Felipe; o novo imperador, cristão ou próximo dos cristãos, estabelecera a paz. No entanto isso não bastava para tranqüilizar o ânimo angustiado de Cipria­no. O zeloso neófito julgava perceber um inexorável declí­nio dos valores no cotidiano da sociedade romana - o que equivalia a uma sentença de morte. Protestava contra as guer­ras: "Se alguém comete um homicídio, este é considerado crime; se o homícidio se realiza em nome do Estado, é con­siderado virtude." Na própria administração da justiça ele via se desfazerem as esperanças de uma sociedade melhor: "As leis estão inscritas nas doze tábuas, e os direitos nos editais públicos - mas o juiz vende seu voto a quem pagar melhor"; falsificam-se os testamentos; "o direito estabele­ceu uma aliança com o delito". Em 251 a tragédia se agra­vou: Décio, um imperador pagão, governava desde 249. Ci­priano, na época com cinqüenta anos, voltou à luta. Con­tra os pagãos que atribuíam os males do Estado à nova fé, pretendeu reafirmar, no escrito a Demetriano, seu concei­to de um decadência inexorável do mundo envelhecido. Este era uma tema lucreciano, como vimos; Cipriano, entretanto, retomava-o por conta própria; sentia em toda parte o cansaço senil e o toque frio da morte.

Deves saber que este mundo já envelheceu. Não tem mais as for­ças que antes o sustentavam; não mais o vigor e a força pelos quais antes se sustentou. Mesmo que nós, cristãos, não falemos nem ex­ponhamos as advertências das Sagradas Escrituras e das profecias divinas, o mundo já fala de si e com os próprios fatos documenta seu ocaso e sua queda. No inverno já não há abundância de chu­vas para as sementes, no verão não mais existe o costumeiro calor para amadurecê-las, nem a primavera se mostra alegre com seu cli­ma, e muito menos fecundo é hoje o outono. Reduziu-se nas mi­nas esgotadas a produção de prata e ouro; reduziu-se a extração dos mármores; empobrecidos, os veios a cada dia fornecem uma produção menor. Há falta de agricultor nos campos, de marinhei­ro nos mares, de soldado nas casernas, de honestidade no foro, de justiça no tribunal, de solidariedade nas amizades, de perícia nas artes, de disciplina nos costumes. Acreditas mesmo que um mun­do tão velho possa ter a energia que a juventude ainda fresca e no­va pode encontrar há tempos? É preciso que perca vigor tudo que, com a aproximação do fim, se volta para o acaso e a morte. Assim como em seu ocaso o sol envia raios menos luminosos e quentes, assim também menos luminosa é a lua em seu declínio; e a árvore, antes fértil e verde, à medida que os ramos secam, torna-se estéril e disforme em função da velhice.
Culpas os cristãos, se tudo diminui com o envelhecimento do mundo. Mas com certeza não é culpa dos cristãos se os velhos têm as forças diminuídas, se não ouvem mais como outrora, se não têm a rapidez e o poder visual do passado, a firmeza e a galhardia e a saúde de outra época; antigamente os longevos chegavam a oito­centos e novecentos anos, agora a muito custo atingem os cem. Vemos meninos encanecidos; os cabelos desaparecem antes de cres­cer; a vida já não termina, mas começa com a velhice...
Quanto à maior freqüência das guerras, ao agravamento das preocupações com o aparecimento de carestias e esterilidade, à fú­ria de doenças que deterioram a saúde, à devastação que a peste opera em meio aos homens - isso também, é bom que saibas, foi previsto: que nos últimos tempos os males se multiplicam e as ad­versidades assumem aspectos os mais diversos, e, com a aproxima­ção do dia do juízo, a condenação indignada de Deus decreta a ruína dos homens. Em tua tola ignorância da verdade, erras ao declarar que essas coisas acontecem porque não honramos os deuses; acontecem porque não honrais a Deus.

Dois motivos se fundem em Cipriano: De um lado, a análise da crise romana: ou seja, uma perspectiva pessimista com colorações retóricas (sobretudo salustianas), como motivos biológicos (a velhice, como Sêneca e em Floro; certas considerações climatológicas e geonômicas fariam pensar em modernos, como Huntington e Liebig). De outro lado, a idéia do iminente fim anticrístico do mundo. São as duas expressões da angústia humana nesse atormentado período do império romano: a observação pessimista e a apocalípitca certeza. A primeira aplica categorias que se relacionam, mais ou menos, com o quadro da tradição antiga: a segunda, que transforma o fim do Estado no fim do Tempo, encerra um conteúdo de tragicidade cristã e se lança para o futuro queimando o passado atrás de si.

Notas
[1] Ovídio, Ars Amatoria III, v. 121 ss.: uma verdadeira exaltação do progresso.
[2] Sobre este texto de Sêneca pai cf. Hartke, Römische Kinderkaiser (1950), 393 ss. A idéia da velhice de Roma encontra-se de novo em Floro: cf. P. Zancan, Floro e Livio (1942) 13-20 (fundamental para a história do conceito de decadência nesse período). Em geral, cf. Pöschl, in "Gymnasium", 1956, 190 ss.
[3] Com terminologia moderna, alguns diriam que para Sêneca pai a história é "história da liberdade". Diferentemente dos antigos, os modernos intérpretes da história como história da liberdade muitas vezes procuram evitar formulações biológicas: basta pensar em Croce e em Rüstow.
[4] Ou pelo menos muito próxima dos cristãos: o bispo Hipólito, que expri­me o mais intransigente cristianismo, chama-a 'PiÀóvos', "piedosa"; era devota do bispo de Roma, Vítor; cf. infra, cap. 7.


MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins Fontes, 1991



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