A Arte entre os séculos V e X

A tradição situa no século V a passagem da Antigüidade para a Idade Média. Nesse momento a Europa não existe. Praticamente tudo o que o historiador é capaz de conhecer ainda se organiza em torno do Mediterrâ­neo, no quadro do Império Romano. No entanto, um movimento em mar­cha há muito tempo tende a desarticular tal quadro, afastando progressiva­mente a parte grega de pua parte latina. De fato, é a leste que se encontram toda a vitalidade, toda a riqueza, toda a força, e ali a Civilização antiga prossegue a sua história sem rupturas, ao passo que se desagrega a oeste - desde sempre numa posição de fraqueza -, onde o desmoronamento é precipitado pelas migrações dos povos germânicos. Deste lado, instala-se a desordem por três séculos, durante os quais se misturam os ingredientes de uma nova civilização. De uma nova arte.

O próprio Ocidente é formado de duas partes. Uma, ao sul, está romanizada, um pouco mais ou menos. E nas províncias onde a marca da romanização foi mais leve, ressurgem os costumes nativos que a coloniza­ção imperial sufocara. No entanto, por todo lado as cidades subsistem. São, é verdade, cada vez menos numerosas à medida que nos afastamos do Mediterrâneo, mas uma rede de caminhos indestrutíveis liga-as de uma ponta à outra do Império, criando uma estreita comunidade cultural. Essas cidades despovoam-se. Os dirigentes afastam-se aos poucos, vão viver em suas casas no campo. No entanto, continuam vivas, imponentes, com suas muralhas, suas portas solenes, seus monumentos de pedra, estátuas, fontes, termas, o anfiteatro, o fórum onde se discutem os negócios públicos, esco­las onde se formam os oradores, colônias de negociantes orientais que usam a moeda de ouro, ainda sabem onde conseguir o papiro, as especiarias, os panos importados do Oriente, e, nas vastas necrópoles que se estendem extramuros, os mausoléus, os sarcófagos dos ricos cobertos de esculturas. Todas essas cidades se voltam para Roma, seu modelo. Roma, a cidade imensa, implantada na pró­pria fronteira que separa a latinidade do helenismo, Roma, em grande parte helenizada mas orgulhosa de sua grandeza passada e que, se apoiando nessa memória, na recordação de São Pedro, de São Paulo, de todos os mártires cujas sepul­turas acolhe, luta com todas as forças para con­ter os abusos da nova Roma: Constantinopla.

Ao norte, a oeste, nos pântanos e nas florestas onde as legiões nunca penetraram, vivem as tribos "bárbaras". Essas populações dispersas, semi-nômades, de caçadores, criadores de porcos e guerreiros têm costumes e crenças muito diferentes. Também sua arte é diferente: não é a arte da pedra, mas a do metal, das contas de vidro, do bordado. Não há monumen­tos, apenas objetos que as pessoas transportam consigo, armas, e essas jóias, esses amuletos com que os chefes se enfeitam na vida e que são postos ao lado de seus cadáveres no túmulo. Não há relevos, apenas o cinzelado. Uma decoração abstrata, símbolos mágicos entrelaçados em que às vezes se inserem as formas estilizadas do animal e da figura humana. Alguns desses povos, por terem se aproximado durante suas migrações dos territórios helenizados, foram evangelizados. São eles os primeiros, chefiados por seus reis, a se embrenhar no Império do Ocidente, assaltando o poder. Outros povos os seguem, sendo estes pagãos que em seu avanço pelas antigas fronteiras apagam nos territórios que ocupam os tênues vestí­gios da presença de Roma. É possível perceber a que ponto a cultura "bár­bara", nesses tempos conturbados, se sobrepôs à cultura romana e a sub­mergiu: a linha muito nítida que, curiosamente estável, cruza a Europa atual e separa a região das línguas românicas e a dos outros idiomas marca os limites desse avanço.

As duas culturas tinham um peso desigual. A do Sul, de longe a mais forte, foi ainda revigorada no século VI pelas incursões que, a partir do Oriente, o imperador Justiniano chefiou. Ele conseguiu repelir por algum tempo as monarquias germânicas e suas tropas ocuparam de novo a Itália. Em Roma, às margens do Adriático, em Ravena, ergueram-se em sinal de vitória, como emblemas da reconquista cultural, edifícios majestosos que ostentavam aquilo em que ia se transformando então a arte antiga sob a influência do pensamento plotiniano e de uma espiritualidade que, ao re­cusar a sombra como uma das manifestações da matéria, condenava a pro­fundidade - e conseqüentemente o pleno relevo - e era um convite a esmagar as imagens no espelhado dos mosaicos. Tal enxerto surgiu na hora exata. Sem ele, sem a presença das formas que então foram implantadas nas franjas orientais da latinidade, teriam as tradições clássicas conseguido resistir tão firmemente à degradação?

No entanto, as guerras também causaram grandes estragos, e dois inci­dentes vieram enfraquecer a cultura do Sul face a dos "bárbaros". Primeiro, a peste, que grassou brutalmente na segunda metade do século VI, e prosse­guiu com surtos esporádicos até meados do século VIII. Ao se propagar pelos litorais e pelas espadas, a epidemia afetou sobretudo as cidades, ou seja, ali onde estavam os alicerces das tradições antigas, enquanto poupava os campos e, ao que parece, todo o Norte da Gália e a Germânia. Por outro lado, uma vasta porção dos territórios meridionais passou para a esfera de influência da civilização islâmica. Os muçulmanos estenderam o seu domí­nio ao Magreb, a quase toda a Península Ibérica e à região de Narbonne; as ligações marítimas com o Oriente foram interrompidas; a partir de 670, o papiro deixou de chegar aos portos da Provença. A peste e as conquistas árabes conjugaram-se pára traçar o formato da futura Europa, ao transferir para o centro do continente os núcleos fortes do poder político e para as margens do mar do Norte os circuitos de trocas mais ativos. Essa transferên­cia apressou a decadência das cidades romanas do Ocidente; os filhos das grandes famílias Senatoriais juntaram-se, nos séqüitos dos reis, aos chefes dos bandos bárbaros; o poder dessa aristocracia mesclada significou uma opressão para a população camponesa e, num mundo ruralizado, acentuou a ascendência do modo germânico de pensar, de se comportar, de tratar a imagem.

Entretanto, a cultura romana conservou o seu prestígio. Fascinou os invasores. Foi para se alçarem ao seu nível, para participarem dessa espécie de felicidade que julgavam partilhada pelos cidadãos romanos, que os germanos atravessaram as fronteiras, que seus chefes, agora detentores do poder, não hesitaram em se auto denominar cônsules que moravam nas cidades, que favoreciam, como Teodorico, o desabrochar das letras latinas, que arrastavam os companheiros e, como Clóvis, mergulhavam nas águas do batismo. Tinham apenas um desejo: integrar-se. Para se integrarem de verdade, precisavam virar cristãos.

Com efeito, o que subsistia de mais vivo da cultura romana - e da arte antiga - estava conservado no seio da Igreja cristã, da Igreja latina, esta que não enveredara, pelos desvios heréticos e que venerava o bispo de Roma como o sucessor de São Pedro. No limiar do século IV, quando por decisão do imperador Constantino deixou de ser uma seita clandestina, suspeita e ocasionalmente perseguida, e se tornou uma instituição oficial do Império, a Igreja se instalou de imediato numa posição dominante dentro das estruturas do poder estabelecido, criando a sua hierarquia como um decalque da hierarquia da administração imperial. Em cada cidade o bispo passou a assumir o essencial das responsabilidades cívicas, erguendo suas próprias armas, intelectuais e espirituais, face às dos guerreiros. Triunfante, a Igreja apropriou-se de toda a herança cultural da antiga Roma. Anexou a escola, que era o núcleo do sistema de educação organizado a Fim de preparar a elite urbana para o uso da palavra pública. Tentou, mal ou bem, proteger do contágio dos linguajares rústicos aquele bom latim que São Jerônimo utilizava para traduzir a Bíblia. Assim como os magistrados evergetas cujos lugares ocuparam.'; os bispos, que por muito tempo foram todos oriundos das grandes famílias romanas, dedicavam-se, graças à pom­pa das liturgias, da música e das artes visuais, a realçar a glória de sua cidade e a de seu magistério.

Prosseguindo a obra de Magnificência inaugurada nos tempos de Constantino, quando o imperador ordenou que se erguesse um cenário suntuoso e monumental para as cerimônias de um culto do qual se tornara adepto e que ele apoiava em seu próprio interesse político, os bispos cons­truíram. Ampliaram os edifícios já existentes, erigiram novos, às vezes no próprio fórum, onde outrora se erguiam os templos dos falsos deuses, reutilizaram elementos de suas estruturas, em absoluta fidelidade às tradi­ções clássicas. Seguindo o modelo das salas onde os magistrados faziam justiça em nome do soberano, construíram basílicas, longas naves com cor­redores laterais que iam confluir na abside onde se erguia a cadeira episco­pal. Seguindo o modelo dos monumentos funerários, como o que Constantino mandou fazer em Jerusalém para abrigar o Santo Sepulcro, construíram batistérios na planta central, em volta do octógono da piscina de Purificação, símbolo de uma transição do terrestre para o celeste, do material para o espiritual. Os prelados adornavam com especial cuidado esses locais de conversão, de reprodução periódica de uma sociedade nova, esses lugares de integração. O batistério era de fato o símbolo esplendoroso da vitória do cristianismo.

Por natureza, as religiões monoteístas são iconófobas: não se represen­ta o Deus único. Sua presença é marcada por sinais. Monoteísta, o cristianis­mo tinha, além disso, de travar uma luta sem trégua para desenraizar as religiões rivais; os bispos da alta Idade Média, que destruíam as efígies dos antigos deuses, desconfiavam das estátuas. Por fim, a cultura "bárbara", que ganhava terreno incessantemente, também recusava a figuração. Portanto, durante séculos a fio desapareceu a grande escultura monumental. Contudo, nos monumentos que construíam os dirigentes da Igreja cristã coloca­vam figuras de homens e de mulheres. Na verdade, tal como o império a que substituíra, a instituição eclesiástica não podia deixar de exibir seu poder às massas que pretendia submeter, e nem de fazer essa demonstração recorrendo a imagens convincentes. Também tinha de divulgar sua doutri­na. Ora, o papa Gregório, o Grande, no limiar do século VII, estava absolu­tamente convencido de que aquilo que se ensina aos letrados pelo texto ensina-se aos que não sabem ler pela imagem. Por último, e sobretudo, o Deus dos cristãos fez-se homem, adotou um corpo de homem, um rosto de homem. Portanto, era possível representá-lo. Sua imagem tornou-se a partir de então mediadora, como o era o próprio Deus encarnado. Este símbolo que é a imagem passou a ser, no sentido primeiro do termo, um "sacramen­to", um vínculo entre a pessoa divina e a pessoa humana. E foi assim que, tal como a retórica e a arquitetura de pedra, a arte figurativa da Antigüidade mediterrânea sobreviveu no Ocidente. Mas tendeu a retirar-se para a proxi­midade dos túmulos. Pelo menos, esta é a nossa impressão, pois quase toda a arte da alta Idade Média desapareceu; a impressão sepulcral provocada pelo que dela restou não decorreria do fato de quase todos os seus vestígios terem sido exumados pela arqueologia? Seja como for, uma coisa é certa: a cultura das cidades romanas na sua recente evolução, as culturas nativas de base e as culturas bárbaras de importação em parte alguma confluem mais intimamente do que no culto dos mortos, e desses mortos especiais que são os santos. Os despojos destes heróis do cristianismo conquistador, que continuavam a viver no outro mundo, repousavam aqui na Terra. Graças às suas relíquias, podiam ser abordados, reverenciados e obrigados, justamen­te por essa reverência, a ajudar os respectivos devotos, a interceder em seu favor. O sagrado e o fervor encontravam melhor acolhida nos hipogeus do que na fria arquitetura das basílicas, e foi aí que preferiram se instalar as imagens, isto é, os espectros, as representações fantasmagóricas das forças tutelares. Nesses locais também se observa o implacável retrocesso da figu­ração ilusionista, um retrocesso apressado pela deslocação dos centros de poder para o Norte, para longe das fontes mediterrâneas, e pelo progresso da evangelização indo mais além dos antigos limites do Império.

Em meados do século VI, o cristianismo chegou à Irlanda. Cento e cinqüenta anos depois, Gregório, o Grande, dedicou-se à conversão da Inglaterra. A iniciativa pontifical estabeleceu no continente, entre a Grã­-Bretanha e Roma, uma ligação que foi um dos principais eixos da constru­ção européia. Nas ilhas, onde não restavam vestígios da cultura romana, os evangelizadores implantaram-na uma vez mais. Levaram livros. Esses livros eram escritos em latim clássico. Para os lerem, os novos conversos, agora monges ou padres, tiveram de aprender latim como um idioma estrangeiro, o que os obrigou a transplantar os métodos escolares utilizados em Roma para o ensino da bela língua. Esta, em regiões onde o povo não falava um latim abastardado, como acontecia na Gália, conservou sua pureza. Os livros foram recopiados. Em alguns deles, apareciam pintadas figuras huma­nas. Os copistas imitaram tais figuras. Interpretaram-nas à sua maneira, es­forçando-se para adequá-las às abstrações da arte nativa.

Nessas terras sem cidades, as instituições da Igreja assentavam no mos­teiro. Era lá que havia os livros, as imagens, todos os reflexos do espírito romano. Partindo dos desertos do Oriente mediterrâneo, a vida monástica introduzira-se na Irlanda sob formas severas, ascéticas e itinerantes. Os monges viajantes espalharam-se pela Gália desde começos do século VII. Mas nesse exato momento os missionários enviados por Roma fundaram na Inglaterra mosteiros regidos por urna regra muito diferente, esta que Bento de Núrsia criara na Itália central e que o papa Gregório introduzira em Roma em sua própria casa. Foi a fórmula que se impôs em toda a Europa. Seu êxito deveu-se ao fato de corresponder perfeitamente às expectativas da alta sociedade. De fato, o mosteiro beneditino assemelhava-se às gran­des casas aristocráticas, construídas numa vasta propriedade cultivada por lavradores dependentes. Era um estabelecimento rico, enraizado na prospe­ridade rural, e, como nas villae rústicas para onde se retirara a nobreza senatorial, conservava a recordação da cidade abandonada, da qual o mos­teiro beneditino era, alias, uma réplica reduzida, fechada sobre si mesma, mas dotada de todas as comodidades: fontes, termas e um conjunto de sólidos edifícios dispostos ao redor de um espaço central, o claustro, com pórticos enfeitados de capitéis semelhantes aos do fórum.

Os homens que ali se instalavam, afastados do mundo, tinham renun­ciado à propriedade pessoal e às relações com as mulheres. Formavam urna fraternidade guiada pelo abade, pai de todos eles e por eles eleito. Entrincheirados como guerreiros numa fortaleza, combatendo passo a pas­so as forças do mal, bem equipados, copiosamente alimentados para serem mais valentes, sua função consistia em cantar a todas as horas do dia e da noite a glória de Deus. Oravam pelo povo. Para ele recolhiam as graças do Senhor. Entre o povo e o poder divino, entre o povo e os santos cujas relíquias eram conservadas na abadia, esses homens puros, disciplinados, instruídos, desempenhavam o papel de intermediários titulares, o que lhes valia, como campeões da fé, serem recompensados com abundantes oferendas e gozarem, numa sociedade preocupada com a própria salvação, de um poder considerável, mormente o poder de criação que aos poucos se afastava das cidades abandonadas, empobrecidas e devastadas pela peste. Imperceptivelmente, o poder, e o dever, de consagrar a Deus as riquezas do mundo passaram para as mãos dos monges beneditinos. Estes o assumiram com naturalidade, uma vez que ornamentar o santuário lhes parecia o com­plemento necessário da salmodia... Promotores da obra de arte, mostraram­-se conservadores fiéis das tradições antigas. Foi de fato no mosteiro, nesse refúgio construído face a crescente corrupção do mundo, que o sistema escolar, adaptado ã busca silenciosa de uma perfeição espiritual, os livros, o bom latim e todas as reminiscências da estética clássica encontraram o abrigo mais seguro. E foi assim que os germes de todas as futuras renascen­ças se depositaram, durante os séculos VII e VIII, no interior da vida monás­tica beneditina, senhorial e letrada.

Os mais ativos artesã os da gênese de uma Europa - e de uma arte européia - saíram nessa época das abadias anglo-saxônicas, onde a regra de São Bento sofrera alguns retoques, atenuando a estrita obrigação de estabilidade. Com efeito, esses monges pretendiam prosseguir a obra de evangelização e, como outrora os irlandeses, muitos partiram para o conti­nente, para os pântanos da foz do Reno e para as florestas da Germânia, a fim de converter os povos ainda pagãos. Essas etnias guerreiras e saqueadoras ameaçavam o povo franco, cujos senhores sabiam que teriam muito menos dificuldade em subjugá-las depois que elas fossem cristianizadas. Por isso apoiaram os missionários. Os monges, por sua vez, os convenceram de que a Igreja franca, corrompida, devia ser reformada. Trataram de arrancá-la da barbárie, concentrando-se em em primeiro lugar nas abadias onde, com esse objetivo, restauraram o aprendizado das artes liberais, julgando-o indispensável para quem quisesse compreender o latim dos textos sagrados. Assim, embalsamada nas ilhas por decênios, a herança do classicismo romano regressou à Gália. E nessa região, o que dela ainda sobrevivia foi extremamente revigorado.

Por tradição, os beneditinos da Inglaterra estavam intimamente ligados a Roma. Intervieram para estabelecer a aliança entre o papada e os dirigen­tes da Austrásia, a província franca menos evoluída, mas também a mais viva, local de uma fusão fecunda entre as tradições galo-romanas e as dos povos germânicos. O papa precisava de um apoio militar para enfrentar os Lombardos. Em 754, ele foi a Saint-Denis, na França, sagrar Pepino, mordomo do palácio da Austrásia, como rei dos francos. Três anos antes, Bonifácio, o monge anglo-saxão agora bispo da Mogúncia, que dirigia a reforma eclesiástica e a conversão dos germanos, ungira pela primeira vez o corpo de Pepino com os santos óleos, veículo da graça divina. Era necessário: os soberanos merovíngios, cujo lugar Pepino vinha ocupar, descendiam em linha direta dos deuses d6'-panteão germânico, dos quais herdaram os respectivos carismas. Usurpador, o novo rei também devia ser imbuído de um poder sobrenatural. E o foi, segundo os ritos descritos no Antigo Testamento e que se aplicavam aos bispos. Aquelas palavras, aqueles gestos o tornaram o ungido do Senhor, o eleito do Deus dos cristãos. É dessa dupla sagração que podemos datar o nascimento da Europa. Afinal, não observa­mos associados ao ato político os principais atores da construção européia, o poder pontifical, os chefes guerreiros senhores da Gália, os renovadores anglo-saxãos da instituição eclesiástica, os evangelizadores da Germânia, cujo arcebispo era Bonifácio? Seja como for, na história da arte européia a sagração é um acontecimento capital. Sagrados tais como os bispos, os reis sentiram-se, doravante, seus colegas. Tinham consciência de que a metade de suas pessoas pertencia ã Igreja, o que os obrigava a pôr todo o seu poder a serviço de Deus, a glorificá-lo e, portanto, a participar diretamente da criação artística, já não de forma "bárbara", mas empenhando-se para frutificar o legado da romanidade cuja depositária era a Igreja.

Tanto mais que a sagração levou diretamente a restauração do Império do Ocidente. Sob a nova dinastia, restabeleceu-se na Gália uma relativa ordem. As devastações da peste haviam cessado um século antes. As baixas de população começavam a ser compensadas. Um clima mais clemente favorecia o desenvolvimento da agricultura. Depois de Pepino, seu filho Carlos Magno também fora combater na Itália em defesa do papa, fizera-se coroar rei dos lombardos, levara seus exércitos para lá dos Pireneus, inau­gurando a reconquista da Espanha islamizada. Constantemente ampliado, o poder do rei dos francos estendia-se agora a quase toda a cristandade latina. Não teria chegado o momento de reuni-Ia sob a mão de um único chefe que, ao lado do sucessor de São Pedro, a levasse à salvação? De realizar o sonho da ressurreição da Roma imperial e cristã? O clero romano pensava que sim, e empenhou-se em convencer Carlos Magno. Esse homem rude, que gostava sobretudo de combater, caçar e banhar-se em águas tépidas, aceitou ser coroado e saudado com o nome de Augusto na basílica pontifical, no dia de Natal do ano 800. Persuadiram-no de que, como her­deiro de Constantino, devia-assumir as mesmas responsabilidades quanto à Igreja e à cultura romana. Assim sendo, Carlos Magno decidiu construir e decorar edifícios de pedra, corno já havia feito o primeiro imperador cristão.

Vira os de Ravena e de Roma, que a seus olhos representavam a imagem mais convincente e a mais moderna de um império cristianizado, vivo. Quando resolveu fundar na terra de seus antepassados a sua própria capital, os mestres-de-obras encarregados em Aachen de erguer a capela onde, como imperador do Oriente, ele presidiria do alto da tribuna às cerimônias de louvor, inspiraram-se naturalmente em San Vital e no Panteão. De Roma Carlos Magno mandou vir alguns bronzes. E na corte que aos poucos se formou em torno de sua pessoa, onde ele próprio e seus comensais se empenhavam em falar, conversar e se portar copiando o que tinham visto na entourage do papa, a primeira das renascenças que haveriam de se suceder ao longo de toda a Idade Média dava timidamente seus primeiros passos.

Esta afirmou-se depois da morte de Carlos Magno, no reinado de seu filho, quando, numa segunda fase, a reforma eclesiástica se estendeu das abadias aos bispados. E ganhou todo o seu brilho na terceira geração, em torno de Carlos, o Calvo, rei dos francos ocidentais. A Gália do Noroeste era de fato a mais fértil região que os francos dominavam; conservava traços ainda nítidos das tradições antigas; penetravam-na revigorantes contribui­ções vindas das margens do Rena e das ilhas britânicas. A renascença a que chamamos de carolíngia floresceu ali, entre Reims, Compiegne, Orléans. Seus artífices foram os filhos da aristocracia do Império que, formados nos grandes mosteiros e depois instalados numa cadeira episcopal, mandavam copiar nas bibliotecas italianas tudo o que não se perdera da literatura latina clássica, salvando-a in extremis de uma destruição total. Todos primos, esses homens formavam um grupo homogêneo, unidos por constantes tro­cas epistolares e pelo dever que os obrigava a se encontrar periodicamente nas assembléias convocadas pelo soberano. Nutriam todos o mesmo desíg­nio: voltar a idade de ouro, reviver os esplendores de Roma. Na cidade, onde tinham sua residência principal, retomaram a obra empreendida no Baixo Império por seus antecessores e multiplicaram as construções ao redor da igreja matriz. Ordenaram a reconstrução das basílicas suburbanas. Talvez porque nada resta dessas construções a não ser os alicerces desco­bertos pelos arqueólogos, a grande arte desse tempo não parece ter sido monumental, e sim ter se aplicado, como outrora entre as tribos germânicas, a pequenos objetos portáteis. Símbolos, atributos do poder. Os bispos, os abades dos grandes mosteiros os mandavam fabricar em ouro, em metais nobres, no vidro, nas matérias mais preciosas onde parecia condensar-se toda a riqueza da terra, por artesãos muito habilidosos que eles alimentavam em suas casas e que se emprestavam mutuamente. Saídas dessas ofici­nas domésticas, as obras circulavam algum tempo, graças as doações, pelo círculo muito restrito dos amigos do príncipe, antes de se fixarem nos relicários dos tesouros dos grandes santuários.

Toda a busca de perfeição formal parece então se concretizar no livro, nesses numerosos livros que, protegidos pelo respeito que sua beleza provoca, chegaram até nós. Para um cristianismo que nas suas formas mais apuradas era antes de tudo cerimonial, uma questão de ritos e de proferições, o livro de fato merecia um tratamento privilegiado, pois conti­nha, qual um tabernáculo, a parte essencial do sagrado presente neste mundo: o Verbo, as palavras, essas palavras num latim preservado da conspurcação e por meio do qual se estabelecia a ligação mais direta entre aqueles homens e seu Deus, e que estão ali, diante de nós, no pergaminho, escritas com a caligrafia fantasticamente clara elaborada pelos letrados do palácio de Carlos Magno a partir dos manuscritos antigos que admiravam, e que se espalhou por toda a Europa e cujos caracteres são ainda hoje os da nossa imprensa. A arte do livro é uma arte privada, confidencial, livre, portanto, aberta às ousadias da inovação. Foi nesses objetos reservados ao uso dos sacerdotes mais esclarecidos e que permaneciam perto dos altares, longe dos olhares do povo, que ressurgiram com mais vigor as formas vindas da Antigüidade pagã, as quais durante muito tempo foram afastadas, temendo-se que favorecessem o retorno às crenças malditas. Os entalhado­res de marfim, encarregados de confeccionar, junto com os ourives, a enca­dernação, esse escrínio da palavra divina, foram convidados a tomar por modelo as obras de seus antecessores dos tempos de Constantino que os seus amos colecionavam. Reaparece aqui o relevo, uma verdadeira escultu­ra que mais uma vez representa o corpo humano respeitando as suas proporções, e por vezes não sem ternura. Por outro lado, para desenharem dentro do livro, contra um fundo de arquiteturas imaginárias, as efígies de imperadores ou de evangelistas, também os pintores copiavam dos artistas da antiga Roma os processos capazes de dar a ilusão de vida, de movimento e de profundidade.

No exato momento - meados do século IX - em que a renascença artística carolíngia atingiu o seu apogeu, a cristandade latina foi mais uma vez atacada, e de forma muito dura, por invasores. Já não se tratava, como quatrocentos anos antes, de povos em migração, mas de banditismo. Os ataques vinham de todo lado. Ao sul, quando se iniciava na Península Ibérica o recuo do Islã, aventureiros muçulmanos apoderavam-se pouco a pouco da Sicília; outros instalavam-se nas praias da Provença e assumiam o controle das passagens dos Alpes. Em 898 verificaram-se a leste as primeiras incursões das hordas húngaras, impelidas a avançar graças às tensões oriun­das do centro da Ásia. Havia mais de um século que os piratas vikings tinham surgido na Irlanda, meio século que começaram a subir os rios gauleses, e mais de vinte anos que os dinamarqueses tinham tentado con­quistar a Inglaterra.

Não se deve minimizar os estragos causados por essas agressões, as últimas sofridas por uma Europa ainda há pouco conquistadora. Seus reis regressavam das expedições periódicas carregados de botins, e do tributo pago pelos povos submetidos retiravam o suficiente para fazer a Deus, em ação de graças, magníficas oferendas. O ouro que nas catedrais e nas igrejas abaciais do Império brilhava nas paredes dos relicários, tomara-o Carlos Magno aos ávares que ele vencera na Panônia. Esse ouro, agora, outros pagãos cobiçavam. Estes não se lançaram sobre o Ocidente. para se integrar, mas para pilhar seus tesouros. Sitiaram as cidades, os mosteiros. Tomaram­-nos, saquearam-nos. Era lá que se encontravam não só as reservas de arte antiga onde se enraizavam as tradições, mas também as oficinas da nova arte. Muitas foram destruídas. A esses estragos veio somar-se a dispersão dos centros de poder, portanto, a dos núcleos de criação artística. Na verdade, o choque dessas incursões revelou a fragilidade do edifício político. Abalou-o, abriu-lhe fissuras, desmantelou-o. A unidade imperial conseguira reconstituir-se em meio ao entusiasmo de uma conquista frutuosa. Acuado na defensiva, o Império revelou de imediato suas fraquezas. A reunião do povo de Deus sob um único chefe mostrou-se o que era: um sonho de intelectual. Resistir a ataques furtivos, imprevisíveis, construir com esse objetivo fortalezas eficazes, montar guarda, pactuar com os assaltantes, con­tra-atacar foram ações que ficaram sobretudo a cargo de forças locais. No século x, à medida que se afirmava a autonomia das etnias regionais sob a chefia de príncipes que eram ao mesmo tempo cabos de guerra, protetores das grandes abadias e mandatários do santo padroeiro da província, iniciava-se o movimento que iria concentrar os poderes de comando em torno de cada castelo. E aí, nessa estrutura confinada, as necessidades da luta obriga­vam a desfalcar as somas outrora dedicadas à obra de arte para manter tropas de guerreiros profissionais, exigentes e devastadoras.

No entanto, as invasões também foram fator de rejuvenescimento. Var­reram uma boa parte do que estava vetusto, deteriorado, do que criava obstáculos à inovação. Favoreceram todo tipo de transferências, de trocas. Durante as tréguas, os acampamentos dos piratas tornavam-se locais de negócio, e os monges que fugiam diante dos saqueadores não partiam de mãos vazias: levavam os seus livros, os seus relicários, as suas lendas, os seus modos particulares de cantar os salmos ou de construir, e essas formas, transplantadas para as províncias onde se instalavam, misturavam-se com as locais, acelerando sua renovação. Como na época dos grandes deslocamen­tos populacionais da alta Idade Média, extinguiram-se as fronteiras que a norte e a leste separavam as terras cristianizadas das regiões ocupadas por outros povos. Escandinavos e húngaros acabaram por fixar-se; converteram­-se; introduziram-se na comunidade européia com seus patrimônios culturais, seu modo de entalhar a madeira, de decorar os tecidos ou os amuletos. Os historiadores deixam de referir-se a essa época como uma "idade obscura", um "século de ferro". Notam que a mola do crescimento, cujos sintomas foram sentidos no início dos tempos carolíngios, não se quebrou, muito pelo contrário. Vêem-no revigorado pela grande mestiçagem decor­rente das incursões. Distinguem já - mais ativos nas regiões que, como a Saxe, foram refúgios, ou naquelas, como a Catalunha e as margens do mar do Norte e da Mancha, onde se operaram encontros e fusões - os fermen­tos de criatividade que prepararam a brusca eclosão, depois do ano 1000, da grande arte medieval.

Por DUBY, G. História artística da Europa – A Idade Média. Vol. 1 São Paulo: Paz e terra, 1997.


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