O Islã

Considerado pelos muçulmanos o último profeta enviado por Deus, Muhammad nas­ceu por volta de 570 na tribo dos coraixitas, em Meca, cidade que hoj e faz parte do Reino da Arábia Saudita. Segundo a tradição, um anjo apareceu a sua mãe, Arnina (" aquela em quem se pode confiar"), para proclamar a chegada do profeta e ins­truí-Ia a chamá-Io de Muhammad ("o mais louvado"). "Com esse nome as Escrituras Sagradas o anunciaram e será louvado por todos os habitantes do Céu e da Terra", disse o anjo.

Seu pai, Abdullah ("servo de Deus"), morreu antes de ele nascer. As grandes famílias das cidades árabes tinham por costume enviar seus filhos logo após o nas­cimento para o deserto, a fim de que fossem amamen­tados e passassem parte da infância entre os beduínos. Meca não era exceção, sobretudo devido às epidemias e ao alto índice de mortalidade infantil. O ar fresco do deserto, seu idioma árabe puro e a sensação de liberdade também fortaleciam essa opção. Havia pouco tempo que a tribo dos coraixitas adotara um modo de vida sedentário; antes de ter construído suas casas em volta do santuário em Meca, ela era praticamente nômade.

Muhammad passou seus primeiros anos com a ama-de-leite Halimah, que inicialmente relutou em aceitar tomar conta dele e mais tarde insistiu em pro­longar um pouco sua permanência no deserto, após os dois anos previstos. A princípio escasso, o leite se tornou farto no peito de Halimah, o que fez com que ela descrevesse a criança como um "ser abençoado".

Aos seis anos, Muhammad ficou órfão de mãe e passou aos cuidados de seu avô - chefe da tribo coraixita e guardião do templo sagrado da Caaba -, morto dois anos depois. O menino foi confiado então ao tio Abu Talib, cujo filho - Ali - estaria entre os primeiros discí­pulos do profeta.

Quando adolescente, Muhammad fez diversas viagens à Síria em companhia do tio comerciante. Numa dessas ocasiões, entrou em contato com. um eremita cristão chamado Bahira, que morava em Bosra e reconheceu nele o futuro profeta que divulgaria o islamismo.

Muhammad, chamado à época de AI Amin ("o confiável", "o honesto"), continuou a trabalhar como mercador e foi contratado por uma viúva chamada Khadija, também da tribo dos coraixitas, para conduzir caravanas através da península Arábica, onde entrou em contato com crenças monoteístas e sobretudo politeístas - entre as vá­rias divindades, destacavam-se Al Uzza e Al Lat.

Quando o profeta tinha 25 anos, Khadija, que era 15 anos mais velha, propôs casar-se com ele. A união aproximou duas importantes famílias de Meca, e eles tiveram sete filhos, mas apenas as quatro meni­nas sobreviveram. Entre elas, Fátima, que se tornaria mulher de Ali.

Segundo a tradição, desde seus primeiros anos Muhammad estava predestinado à grandeza. Quando era criança e vivia no deserto, dois anjos totalmente vestidos de branco se aproximaram dele, abriram seu peito e dali tiraram um coágulo de sangue negro que lançaram ao longe. O coração de Muhammad foi la­vado com neve, retirada de uma bacia de ouro, e ne­nhuma marca foi deixada em seu peito. Contada no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, essa história se tornou uma parábola da purificação div\na a que Muhamnud estaria destinado.

REVELAÇÃO
Em 610, durante uma das meditações solitárias que costumava fazer em cavernas próximas a Meca, especialmente no monte Hira, Muhammad começou a ter visões. Segundo a tradição, o arcanjo Gabriel (Qibril, em árabe) apareceu diante dele e pediu que lesse caracteres árabes: "Iqra!" ("Lê!"), disse-lhe. Muhammad argumentou que não sabia ler, mas o anjo insistiu e pediu que repetisse com ele: "Lê, em nome de teu Senhor que criou, Criou o ser humano de um sangue coagulado. Lê. E teu Senhor é o mais generoso, Que ensinou com o cálamo, Ensinou ao ser humano o que ele não sabia". O primeiro versículo do Alcorão (do árabe Al Qur’an a leitura", "a recitação") acabava de ser revelado.

Antes de desaparecer, Gabriel o preveniu de que eles se veriam com freqüência, a fim de continuar a revelação corânica. Muhammad voltou para casa, transpirando e sentindo frio.

A tradição afirma que a oração e o testemunho de fé (shahada) da unidade divina foram os primeiros ensinamentos revelados ao profeta. Durante algum tempo, Muhammad só falou dessas revelações e de sua missão profética às pessoas mais próximas, começando por Khadija e depois incluindo Ali, filho de Abu Talib, e Abu Bakr, que viria a ser o primeiro califa muçul­mano. Seu círculo de seguidores, porém, foi crescen­do rapidamente, e as reuniões se tornaram constantes.

Os primeiros muçulmanos eram proibidos de ler o Alcorão em público, especialmente diante do templo sagrado da Caaba.

Certa noite, segundo as fontes sagradas, Muhammad foi levado de Meca a Jerusalém num animal celeste branco, "maior que um asno e menor que uma mula", denominado Buraq ("resplandecente"). Na cidade sagrada, encontrou profetas como Abraão, Moisés e Jesus e orou com eles. Duas vasilhas foram postas diante de Muhammad: uma com vinho e outra com leite. Ele tomou a que continha leite, mas ignorou a outra ­ainda hoje, muçulmanos não devem beber vinho nem tipo algum de álcool. Da rocha que hoje se encontra na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, ascendeu e atravessou os sete céus, revendo em todo o seu esplen­dor os profetas e o arcanjo Gabriel. Após ter descendido a Jerusalém, retornou a Meca pelo mesmo caminho e, quando chegou à Caaba, ainda era noite.

Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero contam, em O Livro dos Seres Imaginários, que "uma das tradições islâmicas menciona que Buraq, ao deixar a Terra, der­rubou uma jarra cheia d'água. O Profeta foi arrebatado até o sétimo céu e conversou em cada céu com os pa­triarcas e anjos que nele habitam e atravessou a Unidade e sentiu um frio que lhe gelou o coração quando a mão do Senhor lhe deu uma palmada no ombro. O tempo dos homens não é comensurável ao de Deus; em seu regresso, o Profeta levantou a jarra da qual ainda não se havia derramado uma só gota".

Segundo Richard Burton, um dos principais tradutores de As Mil e Uma Noites no século 19, muçul­manos da Índia costumam representar Buraq com rosto de homem, orelhas de asno, corpo de cavalo e asas e cauda de pavão.

A HÉGIRA E O INÍCIO DO CALENDÁRIO
Após perseguições e conflitos, parte dos adeptos da nova religião emigrou para a Abissínia (Etiópia). Um ano após sua "viagem noturna", Muhammad deixou Meca, em 622, com destino ao oásis de Yathrib (mais tarde, Medina), a cerca de 350 quilômetros, também na península Arábica. É a chamada Hégira (do árabe hijra: exílio, emigração), que marca o início do calendário lunar islâmico.

No caminho, Muhammad e Abu Bakr se refugiaram numa gruta, cuja entrada foi logo coberta pela teia de uma aranha, com o propósito de dissimulá-la aos olhos de soldados inimigos. Ali permaneceram três dias e três noites, antes de retomarem a viagem.

A chegada a Yathrib foi triunfal. Os árabes dispu­tavam o privilégio de receber o rassul Allah ("mensa­geiro de Deus"). No local onde Muhammad colocou a pedra fundamental de sua casa, surgiria a primeira mes­quita, chamada de masjid annabi ("a mesquita do profe­ta"), onde se encontra seu túmulo. Yathrib se tornou Medina, de madínat annabí ("a cidade do profeta").

É em Medina que se estabelece a oração da sexta-­feira, dia sagrado para o islamismo, em que os muçul­manos lotam as mesquitas para rezar e ouvir o discurso tradicional de reflexão. A chamada para a oração é feita pela primeira vez nessa cidade, pelo escravo abissínio Bilal, libertado por Abu Bakr no início do islamismo. Também ali se determina a direção da oração (qíbla). Até hoje, muçulmanos do mundo inteiro devem vol­tar-se para Meca quando rezam.

No plano político, começou a tomar forma a comunidade islâmica (Ummah), com sua legislação, sua assembléia e uma ordem social e política. Medina é, enfim, o emblema do novo poder: diversas expedições e batalhas contra politeístas, especialmente os mequenses, planejaram-se na cidade-estado, entre as quais a de Badr (624), Uhud (625) e Fosse (627).

No oitavo ano da Hégira (630), Muhammad reu­niu um exército de 10 mil homens e se dirigiu para Meca. Mas o patriarca da cidade, Abu Sufian, um dos principais inimigos do profeta, converteu-se ao islamismo antes que houvesse uma batalha. Muhammad retornou à cidade de onde havia sido expulso, e os mequenses foram convocados ao monte Safa para se tornarem muçulmanos. A nova religião passou a cres­cer e contar com mais adeptos, em detrimento do antigo panteão, composto de pelo menos 360 ídolos. As imagens das divindades que decoravam a Caaba foram destruídas.

Em marco de 632, Muhammad realizou seu último sermão, naquela que ficou conhecida como a "peregrinação do adeus": o profeta delineou os pilares do Islã e pediu que os muçulmanos se tratassem como irmãos, respeitassem as mulheres e seguissem o Alcorão e seu próprio exemplo de vida. De volta a Medina, Muhammad adoeceu e morreu no mesmo ano, em junho. Na cidade onde viveu no exílio foi também enterrado.

O ALCORÃO E O HADITH
Considerado a principal fonte do islamismo, o Alcorão é um livro sagrado cuja revelação completa levou 23 anos. O Alcorão é composto de 114 capítulos, denomi­nados suratas, com um número variado de versículos (ayas), somando 6.236.

Os capítulos, à exceção de um, iniciam-se pela expressão "Em nome de Deus, o Clemente, o Miseri­cordioso", comum na abertura dos mais diversos do­cumentos em países islâmicos, inclusive em livros, cartas e documentos oficiais.

Especialistas islâmicos sabem onde, quando e em que circunstâncias cada versículo foi revelado, mas a disposição dos capítulos não segue a linha cronológica da revelacão. O conteúdo do Alcorão começa a ser compilado e anotado já na vida do profeta, mas é fixado definitivamente durante o governo do califa Uthman binA:ffan (644-56). O texto do Alcorão em vigor atual­mente é o mesmo dessa edição, considerada autêntica.

O Alcorão é escrito em árabe, e todo muçulmano deve fazer suas orações nesse idioma, que funciona como um elo entre várias etnias adeptas do islamismo. A maior parte dos turcos, paquistaneses e indonésios, por exemplo, não tem o árabe como idioma nativo, mas reza seguindo o mesmo Alcorão de sauditas, jordanianos e argelinos. Em escolas e faculdades, muçul­manos estudam a recitação do Alcorão para pronun­ciar as palavras corretamente, desenvolver um estilo de leitura e controlar a respiração. Muitos decoram o livro inteiro. Trechos do Alcorão são recitados em várias solenidades, aí incluídos discursos, formaturas e jogos de futebol.

Ao contrário das línguas indo-européias, o árabe, de origem semítica, preservou uma forma bem próxi­ma à do século 7 na literatura, na imprensa, na TV e nas universidades. Atualmente, falam-se diversos dialetos locais nos países árabes, mas a língua escrita é uma só, com divergências muito sutis. O texto alcorânico, mo­delo essencial mas não único para o estudo da língua árabe, caracteriza-se pela presença de metáforas e ima­gens alegóricas.

Já antes do nascimento de Muhammad, os árabes organizavam concursos de poesia em Meca todos os anos. O poema vencedor era copiado em letras de ouro e pendurado no local que hoje abriga a Caaba, o que demonstra a importância que a literatura tinha à época - e continua a ter.

Além do Alcorão, outra fonte islâmica essencial é o Hadíth, ditos atribuídos a Muhammad que foram reunidos durante os primeiros séculos após sua morte. O termo original, al Hadíth - "os ditos e as ações do profeta" -, é usado freqüentemente sem o artigo defi­nido al. Os muçulmanos recorrem ao Hadíth quando não vêem no Alcorão uma instrução específica sobre como agir diante de uma situação.

Dos 6.236 versículos do Alcorão, poucos lidam com questões legais, especialmente temas relaciona­dos à família, ao casamento e à herança. Mas havia um registro oral do que Muhammad dissera e fizera como juiz e administrador. Como a maior parte de seus companheiros tomara nota desses dizeres e ações, estava aberto o caminho para a codificação da Sunnah ("prá­tica") do profeta quando o jurista Muhammad ibn Idris al Shafii (767-820) determinou que todas as decisões legais que não eram abordadas pelo Alcorão deve­riam ser baseadas numa tradição ligada diretamente ao fundador do islamismo. O resultado foi o Hadith, em que cada tradição é descrita por um texto e pela cadeia de transmissão que leva até a fonte original.

Os muçulmanos desenvolveram uma ciência especial que lida com a transmissão e a autenticação do Hadith, abrangendo a análise biográfica dos narrado­res e a comparação de parâmetros lingüísticos e geo­gráficos. Muitos Ahadith (plural de Hadith), submetidos a uma avaliação, revelaram-se falsos.

Como a lei islâmica se baseia não apenas no texto alcorânico, mas também no Hadith, interpretações diversas podem ser feitas, o que permite, com freqüên­cia, oferecer mais de uma resposta para uma mesma pergunta.

PILARES DO ISLAMISMO
Os muçulmanos seguem cinco pilares fundamentais:
1.Testemunhar "que não há divindade senão Deus e que Muhammad é o mensageiro de Deus".
2. Orar cinco vezes ao dia em direção a Meca ­berço do islamismo e lugar sagrado.
3. Pagar para caridade um tributo que corres­ponde a 2,5% da renda anual do muçulmano.
4. Jejuar no mês do Ramadã, época em que comer, beber e manter relações sexuais são atividades proibidas entre a alvorada e o anoitecer.
5. Fazer uma peregrinação (o Hajj) a Meca, pelo menos uma vez na vida, para aqueles que têm condi­ções físicas e financeiras.

Mais de 2 milhões de muçulmanos participam do Hajj anualmente. Eles passam o dia orando e pe­dindo perdão numa época reservada a um exame de consciência. Em Meca, o peregrino deve vestir um tecido branco sem costuras (chamado ihram), que sim­boliza o início de sua purificação. Muitas pessoas apro­veitam o Hajj para raspar totalmente a cabeça antes de começar os rituais, em que se incluem sete voltas em torno da Caaba e o apedrejamento da estela que sim­boliza o demônio.

"A peregrinação é uma instituição religiosa esta­belecida na época de Abraão, que foi encarregado por Deus de ir ao topo da montanha para chamar os fiéis", afirma o xeque saudita Ahmad ibn Sayfuddin, profes­sor de sociologia na Universidade Al Imam, em Riad, na Arábia Saudita.

Os muçulmanos rezam cinco vezes ao dia. Quan­do possível, a oração deve ser feita na mesquita, espe­cialmente na sexta-feira, o dia sagrado.

Entre as principais comemorações do calendá­rio lunar islâmico, destaca-se o Ramadã, mês sagrado em que Muhammad recebeu a primeira revelação divi­na. Esse período é marcado pelo jejum do amanhecer ao pôr-do-sol. O Eíd aI Pitr ("festa do desjejum") ce­lebra o um do jejum realizado durante o Ramadã.

O Eíd al Adha ("festa do sacrifício") comemora a disposição de Abraão de sacrificar seu filho por or­dem divina. Os muçulmanos acreditam que seu filho Ismael ia ser morto, mas foi poupado por Deus, que apenas queria testar a fé de Abraão. No Eid al Adha, os muçulmanos que podem sacrificam um cordeiro, que representa a fé e a submissão a Deus manifestadas por Abraão. Uma parte do animal é entregue a amigos ou familiares, e outra, aos pobres.

Em qualquer época do ano, os muçulmanos não devem comer carne de porco nem consumir bebida alcoólica.

A SUCESSÃO NO ISLÃ
Em 632, após a morte de Muhammad, um califa (sucessor) foi eleito para guiar os muçulmanos: Abu Bakr, que migrara para Medina com o profeta, na Hégira, e havia sido encarregado por ele de dirigir as orações comu­nitárias em seu lugar, num sinal de confiança.

Durante os dois anos de seu califado, Abu Bakr garantiu definitivamente o controle sobre a Arábia, re­cuperando a fidelidade das tribos árabes que tinham considerado enfraquecida sua relação com o islamismo devido à ausência do profeta e a problemas político­s e econômicos.

Omar ibn al Khattab (634-44), sucessor de Abu Bakr e segundo califa, conquistou a Síria e boa parte do Egito e da Mesopotâmia. A influência muçulmana se fortalecia cada vez mais.

Quando Omar morreu, os partidários de Ali ibn Abi Talib, primo e genro do profeta (casado com Fá­tima), esperavam que seu candidato a califa fosse eleito, mas o escolhido foi Uthman bin Affan (644-56), pertencente ao clã omíada (Banu Umayya), que era um dos mais poderosos de Meca e agrupara impor­tantes adversários de Muhammad. Mais tarde, os omíadas se tornaram muculmanos, conservando a posição influente.

Os conflitos internos se intensificaram. Grupos ligados a Alí entenderam que a linha sucessória devia ser formada com base em estreitos vínculos de pa­rentesco. Segundo eles, o califa devia ser coraixita e hachimita, ou seja, da mesma tribo do profeta, pre­sente em boa parte da Arábia, e do mesmo clã (Banu Hachim). Os que expressaram essa posição foram denominados xiítas (de xíaat Ali, "partido de Ali"), pois acreditavam que a liderança da comunidade islâmica devia ser formada por descendentes do pro­feta e de Ali.

Em 656, Uthman foi morto enquanto rezava em casa. Eleito califa, Ali teve de enfrentar dois inimigos que o acusavam de cumplicidade no assassinato: Mua­wiya, governador da Síria e filho de Abu Sufian (antes um dos principais inimigos do profeta, que depois se convertera), e o general Amr ibn al As, do Egito.

Além disso, uma parte importante dos segui­dores de Ali abandonou a lealdade ao califa. Os kha­ridjitas (dissidentes), que conferiam ênfase às ações e à retidão moral, retiraram o apoio a Ali quando ele aceitou uma arbitragem que o desfavoreceu numa batalha contra Muawiya, em Siffin. Na visão deles, Uthman não colocara em prática os princí­pios igualitários do Alcorão e beneficiara familiares num governo marcado pelo nepotismo. Em 651, um kharidjita assassinou Ali, primeiro homem a ter-se convertido ao islamismo e parente mais próximo do profeta. Cartas escritas por Ali, em que ele prega a neces­sidade de justiça e a importância de lidar de forma compassiva com outros povos, tornaram-se textos clás­sicos do islamismo.

Os que permaneciam leais a Ali em Kufa (Iraque) aclamaram seu filho Hassan, mas este chegou a um acordo com Muawiya e se dirigiu a Medina (Arábia), onde permaneceu até a morte, em 669. A Ummah entrou numa nova fase. O califa Muawiya (661-80), que inaugurou a chamada dinastia dos omíadas (661­750), fez de Damasco sua capital e tentou restaurar a união da comunidade islâmica, mas os muçulma­nos do Iraque e da Síria já se encontravam em po­sições antagônicas.

PRINCIPAIS CORRENTES ISLÂMICAS
Os quatro primeiros califas - Abu Bakr (632-4), Ornar ibn al Khattab (634-44), Uthman binAffan (644-56) e Ali bin Abi Talib (656-61) - foram chamados de rachídun ("bem guiados"). Os que aceitaram essa li­nha sucessória passaram a ser denominados sunitas, de sunnat annabí ("tradição do profeta"). Mais de 85% dos muçulmanos são sunitas. A Arábia Saudita, a Indonésia, a Síria, o Egito, a Tunísia, a Jordânia e o Paquistão são exemplos de países majoritariamen­te sunitas.

Já os que entenderam que apenas os descendentes do profeta e de Ali podiam ser verdadeiros líderes islâmicos (imãs) passaram a ser denomina­dos xiítas. Esse é o ramo do islamismo majoritário no Irã, no Iraque e no Bahrein. Há também importantes comunidades xiitas no Líbano e no Iêmen. Assim, pois, pode-se notar que, hoje em dia, o xiismo é essencialmente asiático.

De acordo com parte dos muçulmanos, Ali te­ria herdado do profeta algumas qualidades excepcionais; seu destino (o assassinato) simbolizaria a injustiça que há no mundo, e seus descendentes seri­am reverenciados como líderes religiosos. Milhares de muçulmanos recordam anualmente a tragédia de Karbala, a cidade iraquiana onde Hussein (filho de Ali e neto do profeta), boa parte de sua família e um pequeno grupo de seguidores foram massacrados pelo exército de Yazid (filho de Muawiya) em 680. Em locais chamados Husseinia, os xiitas recordam a morte de Hussein, às vezes com autoflagelação. Para os xiitas duodecimanos (que reconhecem 12 imãs), Hussein é considerado um mártir e o terceiro imã. O primeiro é Ali, e o segundo, Hassan. Os mauso­léus dos imãs são visitados como lugares sagrados, principalmente no Iraque.

SUFISMO
Os termos sufi e tassawwuf (sufismo) derivam prova­velmente dos trajes de lã (suf, em árabe) utilizados pelo asceta muçulmano, designado genericamente como dervixe ou Faqir ("pobre", "despojado", donde a pala­vra portuguesa "faquir").

O profeta Muhammad é considerado o primeiro adepto do sufismo, em virtude de sua estreita relação com Deus, das revelações que recebeu e de sua ascen­são aos céus. Um versículo corânico que os sufis cos­tumam citar para demonstrar a ligação do profeta com essa corrente islâmica é o que mostra Deus como um
ser "mais próximo ao homem que sua veia jugular" (Surata 50, versículo 16).

Outro aspecto que os sufis valorizam no Alcorão é a recomendação de praticar o dhikr, a invocação de Deus: "Por acaso não é a invocação de Deus que acal­ma os corações?" (Surata 13, versículo 28). Nas práticas sufis, o dhikr pode ser acompanhado de um controle sobre a respiração e do uso de um rosário ou de músi­cas e danças extáticas, como as dos dervixes rodopiantes na tradição do grande poeta místico Jalal al Din Rumi (1207 -73). Tradicionalmente, pratica-se o dhikr por meio de um dos 99 nomes divinos, como Al Ghafur (" o Cle­mente") e Al Karim ("o Generoso").

Algumas das doutrinas metafísicas e cosmológicas centrais do sufismo aparecem nos escritos do místico Abu Bakr Muhammad ibn Arabi (1165-1240), deno­minado Muhyi al Din ("revitalizador da religião") e Al Shaikh al Akbar (" o mestre maior"). A doutrina da unidade do ser (wahdat al ujud) é fundamental no sis­tema de Ibn Arabi: Deus é o único que existe real­mente, em sua absoluta transcendência, e a criação Lhe serve de espelho para o autoconhecimento. Conse­qüentemente, o mundo é ilusório - ou só relativa­mente real.

Outra teoria de Ibn Arabi se refere ao "homem perfeito" (al insan al kamil), ponto culminante da cria­ção divina. O homem é a imagem mais clara do divino no espelho da criação, segundo esse místico, que es­creveu cerca de 700 obras. Em As Revelações de Meca, com 560 capítulos, Ibn Arabi recomenda "seguir o caminho dos grandes mestres e dedicar-se ao retiro [khalwa] e à invocação [dhikr]". No mesmo livro, afir­ma que "as religiões reveladas são distintas apenas por causa da diversidade das relações divinas"; ou seja, para Ibn Arabi, diferentes religiões levam ao divino. Essa idéia é lembrada com freqüência pelos defensores de um diálogo inter-religioso.

Hussein ibn Mansur al Hallaj (857-922), decapitado em praça pública em Bagdá, é considerado um dos maiores e mais controversos representantes do sufismo. Célebre por sua devoção espiritual, em que se incluíam longos jejuns, ficou também famoso por esta sua declaração: "Ana’l Haqq" ("Eu sou a Verda­de"). Para um ortodoxo, essa afirmação era uma das piores blasfêmias, agravada pelo fato de que Haqq ("ver­dade") é também um dos Epítetos de Deus. Para os sufis, transgredia o princípio do silêncio sobre certos temas ante os não-iniciados.

A EXPANSÃO DO ISLÃ
Durante os pouco mais de 30 anos dos quatro pri­meiros califados, os muçulmanos dominaram uma região que se estendia do Irã ao Egito. As conquistas se sucederam rapidamente: Damasco (635), Pérsia (637-50), Jerusalém (638), Egito (639-42) e toda a Palestina (641).

Em tratado firmado com os habitantes de Jerusalém, Omar ibn al Khattab, o segundo califa, disse:

"Eis o que o servo de Deus Omar ibn al Khattab, o emir dos crentes [amír al um’mínín, título conferido ao califa], garante aos habitantes de Jerusalém: paz, segurança, proteção para eles e para suas proprieda­des, igrejas e templos. Suas igrejas não poderão ser ocupadas, demolidas nem reduzidas, e as proprieda­des das igrejas não poderão ser violadas. Eles não poderão ser oprimidos por causa de sua religião, e nenhum deles poderá ser injuriado". [...]

De 661 a 750, os omíadas de Damasco mantiveram a expansão do califado em direção ao leste - Afe­ganistão - e ao oeste - África do Norte e Espanha. Com o apoio dos berberes, a partir de 711, tropas muçulmanas atravessaram o estreito de Gibraltar e chegaram à península Ibérica, que abrange a Espanha e Portugal. Após a queda da capital, Toledo, os árabes passaram a dominar toda a península até os Pireneus. A expansão foi detida depois que eles tentaram ultra­passar essas montanhas, sobretudo quando Carlos Mar­tel freou, em Poitiers (732), o avanço dos muçulmanos na França. Depostos no ano de 749 pelos abássidas de Bagdá (que manteriam sua dinastia até 1258), os últi­mos omíadas se refugiaram na Andaluzia. O califado de Córdoba, que incentivou o florescimento cultural e científico na região, durou de 756 a 1031.

[...] É importante observar que, durante séculos, os ára­bes tentaram conquistar territórios fora da península Arábica. A expansão islâmica tomou proveito de um vá­cuo de poder: o império persa e o bizantino tinham-se engajado numa longa e debilitante série de guerras entre si, o que os enfraqueceu. Na Pérsia, uma enchente arrasara a agricultura. A maior parte das tropas sassânidas tinha ori­gem árabe e aliou-se aos muçulmanos. Nas províncias bizantinas da Síria e da África do Norte, a população local era discriminada em razão da intolerância do governo es­trangeiro e não se dispôs a ajudá-lo quando os árabes pro­moveram campanhas expansionistas nessa área.

FARAH, P. O Islã. São Paulo: Publifolha, 2001.


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