CULTOS ORIENTAIS E SINCRETISMO
No que concerne ao paganismo, a influência do Oriente manifestou-se de maneira intensíssima desde o Alto Império e não retomaremos as indicações já fornecidas acerca das causas e dos caracteres das grandes correntes que ela então determinara. Coube-lhes afirmarem-se no século III e com força ainda maior.
Foi esta a época, efetivamente, em que os cultos de divindades orientais conheceram maior êxito. Para nos limitar aos principais, os de Ísis, de Cibele e, principalmente, de Mitra atingiram o apogeu de sua difusão, facilitada doravante, não mais apenas pela tolerância, mas pela adesão pessoal dos imperadores. Em 197, Sétimo Severo celebrou em Lião, por um grande taurobólio, sua vitória sobre Clódio Albino. Em Roma, seu filho Caracala construiu um Serapeum e mandou adaptar um santuário de Mitra nos subterrâneos de suas grandes termas. O epíteto de Mitra, invictus (invicto), passou à lista de títulos imperiais, e uma inscrição oficial do tempo de Diocleciano mostra-nos que este deus se transformou então no patrono do Império.
Foi esta também a época em que com maior força se afirmou, contando com o apoio do poder, a tendência ao sincretismo. Heliogábalo deu-lhe uma forma exagerada e ridícula pela pomposa celebração das núpcias do Baal de Emesa, de que era o sumo-sacerdote e cujo nome trazia, com Celestis, isto é, Tanit, vinda de Cartago por sua iniciativa. Da mesma forma, foi para o santuário por ele edificado ao seu deus que mandou transportar o fogo de Vesta, os escudos sagrados de Marte, a pedra negra da Grande Mãe, isto é, Cibele, originária de Pessinunte e introduzida em Roma pelo Senado no fim da segunda guerra púnica, etc. Mas, pondo-se de parte as extravagâncias, havia maior sensibilidade em relação ao que aproximava as divindades do que ao que as separava. Talvez se experimentasse também o desejo instintivo de levantar, frente ao Deus dos cristãos, um deus único, concentrando em si todas as energias cósmicas. Na idéia que dele se fazia, este ou aquele deus particular predominava: o Sol, fosse como Apolo, fosse diretamente sob o nome grego de Hélio ou o nome latino de Sol, Júpiter, Serápis, Mitra. Acontecia que se lhe atribuíam todos estes nomes ao mesmo tempo. Em todo caso, os atributos da luz, da dominação sobre todo o universo (cosmocrator), da invencibilidade, passavam indistintamente de um a outro, ao mesmo tempo que se ligavam ao próprio Imperador, transformado, assim, na encarnação terrestre desta divindade todo-poderosa.
O NEOPLATONISMO DE PLOTINO
Desde muito tempo, como vimos, o movimento filosófico ajustava-se também a este movimento religioso e produziu, no século III, o que constitui a última grande criação do gênio grego no domínio em que se mostrara tão fecundo: o neoplatonismo que, esboçado em Alexandria por Amônia Sacas no começo do século m, foi completamente elaborado e ensinado em Roma, entre 244 e 270 aproximadamente, por um grego do Egito, Plotino. Encontramos aí as mesmas tendências da época, tanto o fervor exaltado e o apelo à sensibilidade, como a associação com fundo platônico de elementos provindos de doutrinas bastante diversas, em especial o pitagorismo, o aristotelismo e o estoicismo.
Plotino convidava o pensamento a conceber, por um ousadíssimo esforço de abstração, uma Unidade absoluta da qual procede, como por uma série de reflexos cada vez mais degradados, tudo o que existe, razão, alma e corpo. A realidade aparente interessava-lhe apenas pela ordem nela introduzida pelo Ser primeiro, em que se fundem e harmonizam todas as coisas. Um impulso interior impelia-o, pois, para a unidade divina. Mas seu monismo era também um panteísmo e acomodava-se mesmo com o politeísmo, pois todos os deuses são emanações do Ser; ademais, entre o mundo divino, ao qual pertencem os astros, e o mundo terrestre, existe uma multidão de demônios que o homem não pode negligenciar.
Na realidade, o sistema levava a recomendar um esforço de renúncia ascética da alma frente às realidades sensíveis. Se este malograsse, a alma imortal encarnar-se-ia em animais e até em categorias mais inferiores, isto é, em plantas. Se tivesse êxito, viveria à luz dos astros, chegando, finalmente, a absorver-se na fusão em Deus. Mas o êxito dependia do êxtase místico que, proporcionando a iluminação sobrenatural, a visão e a certeza da felicidade suprema, constituía a única possibilidade de estabelecer contato com esta. Assim sendo, o neoplatonismo desviava o espírito do raciocínio; este era empregado apenas para provar sua própria ineficácia.
A TEURGIA
Plotino recusava-se a admitir uma religião que não fosse completamente Interior. Mas, com a demonologia e a abdicação do racional, o neoplatonismo podia conduzir, e conduzia, longe. Acrescentou-se, efetivamente, a muitas outras aspirações que também não constituíam novidades e eram sustentadas por inúmeros charlatães. Época alguma, pelo menos no mundo greco-romano, acreditou com tanta intensidade na ação imediata e quotidiana de forças superiores sobre o homem, por conseguinte, na adivinhação, na astrologia, magia e feitiçaria.
Uma das obras literárias de maior êxito até meados do século IV foi a Vida de Apolônio de Tiana, redigida, a pedido da mulher de Sétimo Severo, Júlia Domna, por um retor grego de seu círculo, Filóstrato. Esta obra apresentava esse pitagórico, da época de Nero e dos Flávios, como um asceta que aplicava e mesmo reforçava os preceitos de vida estabelecidos pelo fundador da escola, abstendo-se de carne, vestindo-se de linho, sem contato com qualquer tecido de origem animal, e andando sempre de pés nus, com a barba e o cabelo ignorando a navalha e a tesoura, durante cinco anos sem pronunciar sequer uma palavra, percorrendo a Ásia Menor, o Irã, a Índia, o Egito antes de se estabelecer em Roma, onde pregava o culto ao Sol e os ensinamentos da sua sabedoria, mas ainda como um taumaturgo capaz de praticar os mais surpreendentes milagres, desvendando os mais secretos pensamentos dos homens, compreendendo a linguagem dos animais, predizendo o futuro, curando aleijados, cegos, paralíticos, detendo o curso de epidemias e de tremores de terra.
Foi deste lado que derivou o neoplatonismo, sob a influência dos sucessores de Plotino que assumiram a direção da escola, Porfirio de Tiro e, sobretudo, no tempo de Constantino, Jâmblico de Cálcis, na Síria. Este último contraiu relações com as práticas dos oráculos caldaicos. Adotou-se o hábito de falar de teurgia, dada a insuficiência revelada pelo vocábulo teologia, pois, em lugar de se cingir a conhecer os deuses, a ambição agora era de agir juntamente com eles, por eles e como eles. Então, começaram a prosperar os mistagogos donos de lojas onde artificiosas e fantasmagóricas montagens cênicas, com música e ruídos insólitos, perfumes, vapores, sombras movediças, estátuas animadas, jogos de luz, impressionavam a imaginação dos neófitos. Conhecemos os nomes de alguns deles, filósofos e, ao mesmo tempo, teurgos, cheios de autoridade e sedução. Em Éfeso, Máximo, em meados do século IV, encarregava-se da iniciação nos mistérios de Hécate; o futuro Imperador Juliano, quando apostatou, mostrou-se sensível a estes mistérios, assim como às interpretações que lhe foram dadas acerca dos ritos e símbolos respectivos. Alguns anos mais tarde, em Atenas, Juliano conheceu Prisco, semelhante a Máximo. Uma vez Imperador, reatou com ambos amistosas relações que lhe foram preciosas; sabendo-se condenado, conversou com eles, em seu leito de morte, sobre a grandeza sublime da alma.
Juliano praticou também o culto de Mitra; sofreu a aspersão de sangue num taurobólio; iniciou-se nos mistérios de Ísis. O paganismo, pelo qual abandonou o Cristianismo, portanto, quase nada tinha - dizemos quase, porque os mistérios de Elêusis, nos quais Juliano igualmente se iniciou, possuíam um longo passado - em comum com o dos grandes séculos clássicos, cujo patrocínio ele reivindicava. O seu era construído de efusões sentimentais perante o grande mistério da natureza, de inquietações sobre a salvação da alma, de impulsos em direção às beatitudes da imortalidade celeste. Que caminho percorrido desde Péricles, Augusto e até mesmo Marco Aurélio que, embora supersticioso, encontrava, não obstante, a tranqüilidade íntima, na submissão à ordem lógica do universo! Ora, o paganismo de Juliano era o de seu tempo; os campeões das virtudes racionais, os epicuristas, por exemplo, tornavam-se cada vez mais raros e eram considerados ateus.
HELENISMO E PAGANISMO
Entretanto, mesmo cedendo a estas aspirações e recorrendo ao ocultismo, Juliano e os pagãos cultos ambicionavam defender o helenismo. Já na língua dos Evangelhos, heleno opunha-se a judeu: tratava-se, então, menos de politeísmo e monoteísmo do que de ignorância ou observância da Lei de Moisés. Foi no Baixo Império que se estabeleceu a equivalência helenos-pagãos, e de maneira tão duradoura que a designação heleno se tornou pejorativa, em regiões gregas, na língua da época bizantina e, mais tardiamente ainda, até a restauração da independência grega no século XIX. Juliano, em particular, atribuiu-lhe constantemente este sentido, para ele laudatório, é claro, ao passo que chamava os cristãos de galileus, entendendo por isto bárbaros na mais desprezível acepção do termo.
Mas sua lei escolar, a cujo respeito deveremos ainda discorrer, deixa bem claro o emprego da palavra heleno. Não estava em causa um conceito, étnico ou lingüística; apenas um conceito cultural. O que os pagãos pretendiam afirmar era sua fidelidade à totalidade de um legado no qual os cristãos eram obrigados a escolher, separando a forma, que podiam admirar, do fundo, que teriam de abandonar. Isto porque a mitologia politeísta empregava as obras-primas literárias e artísticas, honra do helenismo que, nascido na Grécia, fora adotado em Roma. Fosse qual fosse a forma adotada, o paganismo podia aceitar esta mitologia, parte integrante do incomparável patrimônio que não renegara totalmente e cujo monopólio, por conseguinte, lhe devia caber.
E foi assim, de fato, que o pensamento pagão sobreviveu à morte de Juliano e, depois, ao malogro da última tentativa política em tomo do usurpador Eugênio. Por meio de interdição e perseguição -houve execuções capitais na época de Valente, uma das quais, pelo menos, na fogueira -, o governo imperial encarregou-se de desembaraçá-lo de suas turvas excrescências. Enquanto no Ocidente os últimos pagãos cultos promoviam ainda a filologia, no Oriente invocavam em seu favor o glorioso passado científico e filosófico da Grécia, principalmente Platão e, acessoriamente, Aristóteles. O neoplatonismo prosseguiu, abertamente, seu ensinamento nas duas escolas ainda acreditadas, em Alexandria e em Atenas. A primeira, continuadora do Museu dos Ptolomeus, parece que se afastou muito rapidamente dos desvios de jâmblico e manteve o gosto pelas ciências, ao menos a Matemática. No início do século V, a bela e virtuosa Hipácia, filha do matemático Teon e autora de tratados matemáticos, servia de ilustração a esta afirmativa. Sinésio, que, embora se tornasse bispo, não deixou de se considerar filósofo, fora seu discípulo. Mas sua fama irritava o chefe do cristianismo egípcio, o imperioso bispo Cirilo. Em 415, após os tumultos em que os pagãos não tiveram qualquer papel, alguns energúmenos atacaram-na em plena rua, desancaram-na com tijolos, retalharam e queimaram seu cadáver. A escola de Alexandria não sobreviveu a este atentado. Quanto à de Atenas, viveu parcamente durante muito tempo ainda, limitando-se a comentar sem originalidade o pensamento dos grandes mestres; em 529, Justiniano ordenou seu fechamento, indo os derradeiros mestres buscar refúgio junto aos sassânidas.
CROUZET, M. (org.) História Geral das Civilizações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994 vol. 5
Voltar para Religiosidades