"Inimigos externos" e "Inimigos internos"

Na literatura mundial, outro escritor cristão do século lII d.C, Comodiano, foi o primeiro a apresentar os germa­nos, mais precisamente os godos, como protagonistas da que­da de Roma. Sob o império de Décio, violento perseguidor dos cristãos, os godos invadiram e saquearam a península balcânica; em Abrito, numa terrível batalha entre os pân­tanos, o próprio imperador morreu no ano de 251; em 252-253 os godos foram ter à Asia Menor, chegando até Eféso. Sob a impressão desse acontecimento e dos que se se­guiram (até a mais recente perseguição anticristã ordenada por Valeriano em 257-258 e à desastrosa guerra persa con­duzida pelo mesmo imperador), por volta de 260 Como­diano escreveu seu Carmen apologeticum. Ele não conseguia aceitar que durante mais de dois séculos grande parte do mundo romano tivesse permanecido surda à mensagem da fé cristã; em outro escrito, perguntava indignado: "Por que fostes crianças (afinal, só crianças podem acreditar nos raios de Júpiter) durante duzentos anos?"[1] No Carmen apologe­ticum sua indignação contra o império perseguidor trans­borda. Uma ardorosa necessidade de vingança, um forte an­seio de justiça perpassa seus versos admiráveis: ele evoca com desprezo os pagãos aprisionados pelos bárbaros e com im­plícita alegria os godos invasores que se fraternizaram com os cristãos. Ao rei dos godos, Kniva, dá o nome de Apo­lion, o "exterminador", retirado do Apocalipse de São João; a invasão dos bárbaros entra no quadro apocalíptico do fim do império, projetado no futuro próximo.

Evidentemente não foi Comodiano que introduziu os germanos na literatura dos povos clássicos. Já na época de Alexandre Magno, um viajante de Marselha, Pítea, falara desses povos do norte, e, por volta de 200 a.C., uma cole­ção grega de "coisas estranhas"[2] mencionara "germara", povos do extremo norte, "os quais não vêem o dia", assi­milados etnicamente aos celtas; Eratóstenes e Posidônio haviam dado algumas informações sobre o mundo germâni­co. César[3] distinguiu esses povos dos celtas, sublinhando, entre outras coisas, a falta de uma classe sacerdotal entre os germanos (aspecto realmente importante para a história de sua cultura). Tácito,[4] no ano de 98, delineou um qua­dro das "virtudes" germânicas, relacionando-as com o "cos­tume pátrio" dos romanos, que julgava obscurecido pelo recém-chegado "legalismo" e pelos demais efeitos da civilização. No entanto mesmo sua avaliação do germanismo não era lá muito nova; em diversos aspectos ligava-se à contra­posição feita por Posidônio entre natureza e cultivo, selva­gens e civilização decadente - que foi doutrina do estoicis­mo, expressa também na célebre nonagésima epístola de Sê­neca, o filósofo. Assim, não podemos forçar a contraposi­ção de Tácito entre "virtudes" germânicas e decadência le­galista dos romanos: ele teria louvado as "virtudes" de qual­quer outro povo em estado natural, como, por exemplo, os indômitos bretões, cuja ferocidade destacou em oposi­ção à "moleza" resultante de uma paz duradoura.

Somente o olhar dos cristãos, voltado para o futuro, co­mo o de todas as minorias criadoras, pôde intuir (mais de um século e meio depois de Tácito) a posição dos germa­nos como povo máximo da nova história, contraposto a Ro­ma; percebeu-a, é bom lembrar, graças a um poeta genial,[5] Comodiano, que via o juízo de Deus na careta blasfema dos romanos perseguidores. O espírito revolucionário desse in­transigente cristão encontrava-se, assim, com os novos po­vos que dentro de alguns séculos iriam fazer história, e já agora a faziam, atirando-se com fúria sobre as cidades do velho império. Sob alguns aspectos, esses povos podiam aco­lher a nova fé melhor que os velhos Estados clássicos, per­turbados até a medula com a grande revolução espiritual cristã, mas ainda assim presos, na forma exterior e oficial, a uma fortíssima tradição; de fato, a conversão dos visigo­dos ao cristanismo teve início a partir das famílias cristãs que se "confraternizaram" com eles no século III, durante a invasão. Em sua fantasia, Comodiano transformou a invasão dos godos numa ameaça contra "Roma", ou seja, con­tra todo o império; uma febril ansiedade o levava a anteci­par os tempos. Na verdade, um século e meio depois, os godos de Alarico (a essa altura cristãos, não mais pagãos co­mo os descritos por Comodiano) iriam atacar de chofre o império não mais perseguidor.

Início do fim será a sétima perseguição contra nós: eis que já bate à porta e se reúne na espada: (por punição divina) fará atravessa­rem o rio os gados que irrompem (no império). Com eles estará o rei Apolion, terrível no nome, que pelas armas deterá a perse­guição aos cristãos. Dirige-se a Roma com muitos milhares de ho­mens e por decreto de Deus os subjuga e aprisiona. Muitos sena­dores, prisioneiros, chorarão; blasfemam contra o Deus do céu, vencidos pelo bárbaro.
No entanto, em toda parte estes (gados) pagãos dão alimentos aos cristãos, que procuram alegremente como irmãos, preferindo­-os aos lascivos acloradores de ídolos falazes. De fato, os godos per­seguem os pagãos e subjugam o Senado. Esses males se abatem so­bre os que perseguiram os cristãos; dentro de cinco meses os per­seguidores são mortos pelo inimigo.

Pela maneira de encarar a posição dos germanos na his­tória do império, Comodiano permanece isolado no sécu­lo III. Outro grande escritor cristão, Dionísio, bispo de Ale­xandria, limitava-se na época a definir a decadência do império em termos de crise demográfica e desaparecimento apocalíptico do gênero humano.

Surpreendem-se e perguntam-se de onde vêm as pestes contínuas, as mortes de todos os tipos, o variado e enorme despovoamento; perguntam-se por que a cidade tem ao todo - incluídas as crian­ças e os anciãos - um número de habitantes igual apenas ao dos velhos de outros tempos. O fato é que na época o número de ho­mens entre quarenta e setenta anos ultrapassava o dos homens de hoje entre catorze e oitenta anos; em nossos dias, os muito jovens são os companheiros dos muito velhos.

Por trás de todo pessimismo cristão, violento como o de Comodiano ou reflexivo como o de Dionísio, havia a convicção apocalíptica do fim do mundo, mais ou menos próximo, de qualquer maneira certo. Na verdade, os livros sagrados de certa forma pareciam garantir esse fim: o Livro de Daniel, o Apocalipse de São João. Por isso os pagãos pro­curaram atacar esses livros, quase recolhendo o sufocado pro­testo dos seguidores de Cristo. Porfírio, que conhecia mui­to bem os textos sagrados do Cristianismo, por volta de 269 levou a fundo sua ofensiva na célebre polêmica Contra os Cristãos: seu canto de cisne. No livro XII dessa obra; tenta demonstrar que o Livro de Daniel não podia dar nenhuma certeza sobre a decadência e o fim iminente do império de Roma. Com surpreendente perspicácia, que o torna o maior orientalista da Antigüidade, observa que nesse texto a últi­ma das "quatro monarquias" indica a monarquia selêuci­da, não o império romano. O Daniel, conclui, não contém uma profecia sobre a queda do mundo romano; mais sim­plesmente, exprime a tensão entre o judaísmo e o helenis­mo do século II a.C. Contudo as investigações filológicas não podem vencer as grandes revoluções espirituais. A tra­dição eclesiástica da época continuou a procurar rio Livro de Daniel a confirmação da inflexível condenação do impé­rio de Roma: neste sentido, escreveram cristãos como Eu­sébio, Apolinário, Metódio de Olimpo. Por volta do ano 407, num célebre Comentário a Daniel, São Jerônimo reto­ma este ponto de vista:

Dizemos o que todos os escritores eclesiásticos nos transmitiram: no fim do mundo, quando o reino dos romanos deverá ser des­truído, dez reis dividirão entre si o mundo romano...

Quando São Jerônimo escreveu o Comentário a Daniel, fa­zia quase um século que o império era cristão. Constantino, senhor de Roma desde outubro de 312, convertera-se ao Deus dos cristãos, abandonando a religiosidade pagã que ainda se arrastava no aparato jurídico. Em seu isolamento, as velhas classes tradicionalistas, que ainda antes de Cons­tantino atribuíam aos cristãos a crise de Roma, continua­ram a falar em decadência. Não protestavam abertamente contra a cristianização do Estado, mas, retomando velhos cálculos astrológicos, limitavam a vida do cristianismo a um "ano grande" de 365 anos.[6] Sobretudo protestavam contra Constantino, que introduzira uma nova burocracia e poli­ciais: o historiador Aurélio Vítor atribuía a estes últimos a "ruína" do Estado romano.[7] Assim, o conceito da deca­dência romana, que para os cristãos já era uma questão de exegese bíblica, tornou-se para os pagãos o cuidado obsessi­vo com um doente que precisava sarar de qualquer manei­ra. Juliano, o Apóstata, dizia que o império estava "doen­te" e em declínio; esforçou-se por introduzir um conteúdo novo na tradição enferrujada. Ao mundo ideal de Juliano pertencia um crítico de Constantino (portanto, com toda probabilidade, um pagão) que dirigiu a um imperador des­conhecido (ao que parece, Constâncio II) um texto[8] no qual eram "lançadas" propostas de reformas econômicas, de re­forma do aparato burocrático, de novas máquinas de guer­ra. Não conhecemos o nome desse escritor; mas sem dúvi­da ele nos deu um interessante documento sobre a maneira como o conceito de "decadência" era desenvolvido pelos homens mais dedicados à conservação do Estado romano. A inteligente consideração dos fatos reais não diminuía sua surpreendente capacidade de sacrifício. O anônimo autor do escrito que acabamos de citar tirava a idéia da nova con­juntura econômica e social para dela deduzir suas propos­tas.

Sob Constantino teve início a emissão abundante de ouro; com isso, mesmo para compras de pequena importância, a base da tran­sação passou a ser a moeda de ouro, substituindo a de bronze, an­tes considerada de grande valor. Acredita-se que a origem dessa avidez por riqueza seja a seguinte: tendo-se confiscado o ouro e a prata e as muitas pedras preciosas que se encontravam nos tem­plos, acendeu-se em todos o desejo de dai e de ter. Infelizmente a emissão de cobre - que, como dissemos, havia sido marcado com a efigie dos monarcas - já era enorme e grave; ora, por não sei qual loucura, verificou-se uma emissão de ouro ainda maior. Tão grande circulação de ouro encheu de riquezas as casas dos podero­sos, que se tornaram assim mais ilustres, em prejuízo dos menos abastados; o proletariado sucumbia sob a violência. Portanto, a clas­se dos pobres, afligida pelas dificuldades e induzida a tentar deli­tos, perdeu todo o respeito pelo direito e todo sentimento nobre; confiou sua vingança às artes do mal; devastando os campos, abandonando-se ao banditismo, espalhando o ódio, atingiu dura­mente o Estado; e, passando de um crime a outro, encorajou usur­padores, cuja insolência, por outro lado, em vez de exaltá-los, ser­viu para enaltecer, ó excelente imperador, tua coragem.
Será, portanto, dever de tua sabedoria limitar a emissão mo­netária, preocupando-se com o contribuinte, e no futuro propa­gar a glória de teu nome. Reflete e muito (ó imperador) na lem­brança daqueles anos felizes: considera os reinos célebres da po­breza antiga, quando os homens sabiam cultivar os campos e re­nunciar à riqueza; sua incorrupta parcimônia os recomenda pelos séculos com louvor e honra. Sim: chamamos áureos os tempos que não tinham ouro.
Entre os males intoleráveis que atingem o Estado está a fraude na emissão e na circulação das moedas de ouro: ela exige nas compras a astúcia fraudulenta do comprador, e se aproveita da dura necessidade em que se encontra o vendedor; e tais inconvenientes impedem um desenvolvimento normal dos negócios. Portanto, até mesmo para isso deves encontrar remédio; reúnam-se os mestres moedeiros, que terão de cuidar das emissões de moedas de ouro e divisionárias numa ilha isolada, longe para sempre do contato com as regiões vizinhas; assim não poderão causar dano ao Estado mantendo com outras pessoas relações capazes de induzi-los à frau­de. De fato, na solidão serão fiéis a seu dever; tampouco haverá possibilidade de fraudar onde não há oportunidade de tráfico ilíci­to...
A esses males que atingem as províncias pela avidez de rique­zas acrescenta-se a execrável cobiça dos governadores, desgraça do contribuinte. Sem respeito nenhum pelo cargo que ocupam, julgam­-se enviados para a província a fim de explorar os contribuintes; tanto mais tristes quanto a injustiça é exercida, assim, por aqueles que deveriam reparar os males e, como se não bastasse sua iniqüi­dade, cada um deles, quase que para agravar a crise, envia cobra­dores destinados a esgotar os bens dos contribuintes com todo ti­po de roubo; certamente esses governadores acreditam não se is­tinguir o suficiente se permanecerem sozinhos em suas culpas...
Depois de referir os males do Estado, aos quais as augustas pro­vidências darão fim, passamos agora a tratar da enorme crise que deriva da manutenção do exército: todo o nosso sistema tributá­rio sofre gravemente com isso. Para evitar uma longa discussão, formularei em breves palavras minha solução para tão grave crise. (Em vez de vinte ou 25 anos, como acontece normalmente), os soldados cumpram tão-somente alguns anos de serviço, de forma que após cinco anos ou mais não pesem para os cofres do Estado... Assim, não apenas o Estado será aliviado de uma grave despesa, como também se reduzirão as preocupações imperiais nesse senti­do; ademais, um maior número de homens será encorajado ao ser­viço militar nas regiões onde a longa duração de tal serviço induz muitos a evitá-lo.

Naturalmente, por trás dessas propostas e advertências (às quais se seguiam projetas de novas máquinas bélicas) revela-se sobretudo uma preocupação; o anônimo autor que­ria que o império aproveitasse ao máximo suas energias demográficas. Elas estavam gravemente reduzidas nos campos e, portanto, no exército (cujos contingentes eram recrutados entre os camponeses); enquanto isso, além do limes, os bárbaros (como dizia o anónimo) "ladravam em volta". Se, como acreditamos, o anônimo escreveu sob Constâncio II, pouco antes do advento de Juliano em 361, pode-se dizer que era uma pessoa de sorte; não viu, ou ainda não tinha visto, a definitiva investida dos bárbaros sobre a imensa pre­sa. Mas o simples pensamento de que o enorme desastre pu­desse um dia recair sobre o império o fazia meditar sem sos­sego.

Hoje em dia é fácil sorrir de propostas como a do isola­mento forçado dos moedeiros. Nossa época é por demais astuta para acreditar que os doentes levantem da cama de­pois de um tratamento violento. Mas esses homens - o anônimo que escreveu sob Constâncio II, Juliano, o Apóstata, e muitos outros - amavam seu Estado até a loucura. Tão loucamente quanto o tinham odiado Comodiano e Arnó­bio; pois o império de Roma podia ser objeto de ódio infi­nito e também de infinito amor. E por isso as propostas desesperadas do tipo da ilha dos moedeiros merecem nosso respeito; como o merece o desespero de Juliano, que, na miragem de uma violenta batalha campal, queimou sua frota do Tigre. Por outro lado, algumas propostas do anônimo eram muito inteligentes; seu pedido de deflação foi atendi­do por Juliano; sua proposta de um exército de campone­ses antecipa em dois séculos e meio a reforma temática de Heráclio.[9] Mas devemos respeitar sobretudo sua previden­te tristeza. Em 375 teve início a catástrofe.

Como na época de Comodiano, os movimentos dos po­vos ameaçavam o coração clássico do império. Em 375, época de guerra na Itália, Sátira, o irmão de Santo Ambrósio, apressou-se em deixar a África, onde estava desde algum tempo, e voltar para Milão. Do outro lado do império, Valen­te acolheu os gados como mercenários; quando a convivên­cia com os bárbaros se revelou impossível (e a culpa com certeza coube às classes dirigentes romanas, que odiavam os forasteiros), não se pôde evitar o conflito entre romanos e godos; em 378, depois de uma campanha militar das mais dramáticas, Valente acabou derrotado e morreu em Adria­nópolis. Para aplacar os vencedores, Teodósio, sucessor de Valente, teve de ceder-lhes o comando militar da Ilíria. Sob o impacto da catástrofe, os homens se questionaram nova­mente a respeito das causas do desastre. Um panegirista, Te­místio, comprazia-se em minimizar esses males; num dis­curso dos primeiros dias de 381, mostrava-se satisfeito com o fato de Teodósio ter cedido províncias da Ilíria aos bár­baros.

Os cristãos sempre consideraram a hipótese de que a catástrofe indicasse não apenas decadência, como o fim do mundo. Em 386-388, comentando a profecia de Jesus sobre a destruição do templo de Jerusalém e a consummatio sae­culi, o bispo de Milão, Santo Ambrósio, traçou um balan­ço da tragédia. De um lado, sua perspicácia política acen­tuava a gravidade da insurrecttio de hunos contra alanos, de alanos contra godos, enfim da migração dos povos; de ou­tros, denunciava uma crise moral que em seu estilo adqui­ria tonalidades bíblicas. Assim,'falava de inimigos externos e inimigos internos, hostes extranei e hostes damestici. Por uma estranha coincidência encontrava-se com Políbio, que também falara (num plano exclusivamente histórico) de eventuais "causas externas" e "causas internas" da decadência de Roma. (Ao leitor de hoje ocorre espontaneamente a com­provação com Toynbee, com as categorias de "proletaria­do externo" e "proletariado interno"; entretanto em Toyn­bee estes são predicados sociológicos, e em Santo Ambró­sio trata-se de conceitos genéricos.) O bispo de Milão, cris­tão muito leal ao império, chegava mesmo a considerar sa­crilégio a aceitação da moda bárbara por parte de um bis­po; viu os godos representados no povo de Magog, a res­peito do qual Ezequiel falara. Eles eram os hostes extranei; hostes domestici, ao contrário, eram as paixões, sobretudo a ambição por dinheiro e domínio, que tinha afastado os homens do caminho primitivo e, no fundo, do direito de natureza.[10]

As palavras celestes têm as melhores testemunhas em nós mes­mos, sobre os quais desabou o fim do mundo. Quantas guerras e que noticias catastróficas chegam até nós! Os hunos voltaram-se contra os alanos; os alanos contra os gados; os godos contra taifa­los e sármatas; exilados de suas sedes, os gados fizeram de nós mes­mos, na Ilíria, os exilados na própria pátria; tampouco ainda se percebe o fim de tudo isso. Por toda a parte há carestia; e a peste abate-se igualmente sobre homens e bois e sobre os outros animais; de forma que, mesmo não tendo sido diretamente atlngidos pela guerra, devido à peste nos encontramos nas mesmas condições dos que foram derrotados. Enfim, estamos no ocaso do seculo e, por­tanto, alguns males do mundo nos precedem; mal do mundo é a carestia, mal do mundo é a peste, mal do mundo é a perseguição.
Mas há também outras guerras, que o cristão deve enfrentar: as batalhas das opostas cobiças; e os conflitos das paixões; os ini­migos internos são muito mais graves que os externos... Entretan­to o forte diz: se diante de mim se estendem os acampamentos, não deverá temer meu coração; se contra mim se erguer a batalha, manterei minha esperança (Salmo 26).

Na mesma época em que Santo Ambrósio escrevia es­sas linhas, Amiano Marcelino trabalhava em seus Anais: o livro de história mais insigne e ponderado que o baixo im­pério produziu. Marcelino era um pagão de Antioquia, mas não escreveu sua obra com uma perspectiva confessional. Acreditava na possibilidade de uma historiografia "objeti­va". Como Santo Ambrósio, não gostava dos germanos (por exemplo, via sob uma luz totalmente imoral, as primitivas iniciações juvenis dos taifalos). Com uma análise do costu­me huno, procurou explicar a origem da onda bárbara que arrastara tudo à sua frente; e tinha objetividade suficiente para reconhecer que o episódio de Adrianópolis fora de certa forma desejado pela classe dirigente romana, que dava, aos godos carne de cão em troca de seus fIlhos reduzidos a es­cravidão. Ele via a origem da decadência romana na burocratização excessiva e na opressão tributária; por isso mes­mo sua crítica recai sobre Constancio II; sua admiraçao (na verdade contida dentro de limites precisos) volta-se para Ju­liano, que, na Gália, já com o título de César, reduzira o tributo de 25 para 7 solidi. Esta atitude espiritual situa-se no mesmo plano dos conselhos do anânimo, que repreen­dera Constantino pela emissão abundante de ouro, e os go­vernadores pela "cobiça execranda, ruína do contribuinte". No fundo, a obra de Amiano foi toda uma epopéia da res publica, que corria o risco de sufocar sob o emaranhado das multidões bárbaras que pressionavam as fronteiras e das alistadas no exército imperial, das deserções e das traições dos soldados, das misérias que humilhavam a vida urbana de Roma, das lutas pelo trono episcopal romano. Cada relato, cada página de seus Anais parece levar de volta idealmente ao pensamento da catástrofe de Adrianópolis (378). Amia­no escreveu na época de Teodósio, o Grande (379-395), do­minada pela lembrança daquela batalha com a horripilante cena final do imperador derrotado, queimado no incêndio. Sob o mesmo Teodósio[11] parece ter vivido Vegécio, escri­tor muito menos importante do que Amiano e todavia tam­bém obcecado pela idéia de uma gravíssima decadência de Roma.

Amiano é pagão; Vegécio, pelo menos formalmente, é cristão. Entretanto ambos escrevem como que em meio a um opressivo vazio e à vaga sensação de que algo se perdeu em 375: Amiano com a implacável melancolia do grande historiador; Vegécio com o otimismo erudito de quem ex­põe soluções impossíveis e deteriora termos venerandos que a essa altura já são sombras de si mesmos. O termo vene­rando que nele se toma mágica panacéia é legião; remédio para a decadência é a antiga disciplina legionária. Um re­médio certamente tão genérico e abstrato como haviam sido vivas e atuais, embora às vezes utopísticas, as propostas do anónimo que escreveu sob Constâncio II. Quanto à ex­plicação da crise, Vegécio corretamente a procura na insen­sibilidade dos proprietários, que evitam mandar para o ser­vico militar seus melhores colonos e oferecem elementos que "não prestam", gente que não daria nem mesmo para o trabalho nos campos. Em última análise, um "diagnóstico" preciso, um remédio arqueológico. Todavia, se o diag­nóstico de Vegécio a respeito da decadência foi esquecido, algumas de suas fórmulas militares (aliás, vegecianas até certo ponto) ainda ressoam em nossos ouvidos, tendo agradado inclusive a Maquiavel.

Essas gastas propostas de Vegécio não constituíam, portanto, soluções, mas argumentos para os queixumes literá­rios a respeito da decadência. Em alguns casos até serviam de consolo para quem queria esquecer que no coração do império, na região da Ilíria, Teodósio, o Grande, tivera de aquar­telar os soldados godos, vencedores em Adrianópolis. De­bruçados sobre o esforço erudito de Vegécio, seus leitores podiam concluir que a crise de Roma não era um fato novo, pois já aí a época de Aníbal - dizia seu autor - conhecera algo semelhante" em decorrência da longa paz que se seguiu a primeira guerra púnica" . No entanto, quando o mouro Gildão se rebelou contra Roma, mais uma vez sentiu-se profunda­mente o perigo; até Claudiano, poeta do general Stilicon, disse que "o próprio tamanho do império prejudica Roma'.' Gil­dão foi vencido. Em 401 e 402, Stilicon venceu Alanco na ltália. Todavia os romanos daquela época tiveram de fazer certo esforço para acreditar, por exemplo, mais nas panegí­ricas efusões do paganizante Claudiano que no pessimismo do cristão Sulpício Severo, que, por volta do ano 400, tor­nou a lembrar que os pés da estátua de Nabucodonosor eram de argila. Em 406, Stilicon venceu o ostrogodo Radagaiso, porém no mesmo ano hordas de bárbaros caíram sobre a Gália; mais tarde alguns chegaram à Espanha; alanos, suevos, vândalos. Uma parte do império começou a se desintegrar.
E em 408 Stilicon foi morto; em 410 Alarico ocupou Ro­ma. Com a morte de Alarico, seus visigodos encaminharam­-se para o norte da Itália, rumo à Gália; mais ou menos nessa época, Oriêncio, um homem do mundo que se tornara religioso sob o peso do drama, escreveu seu Commonitorium: "A Gália", dizia, "é uma fogueira só."

Não era apenas a decadência do império, mas o destroça­mento. O Commonitorium de Oriêncio reduzia a origem dos males aos primeiros pecados graves; luxúria, inveja, avareza, ira, mentira. No final do Commonitorium, os novíssimos: a morte, o inferno, o céu, o juízo. Com este pequeno poema estendido para o além tem início, poder-se-ia dizer, a Idade Mé­dia (nove séculos depois, o mesmo motivo do pecado e dos no­víssimos produzirá a síntese espiritual da Idade Média que é também a máxima obra poética dos cristãos: A Divina Comé­dia). O conceito da decadência separa-se da esfera das propos­tas e das previsões; em Oriêncio torna-se um assustado remor­so diante dos pecados, uma pura espera do julgamento divino.

Por que narrar os funerais de um mundo que vem se arruinando ao seguir a lei comum de tudo que se extingue? [Aqui também, portanto, o eco do omnia orta interelmt de Salústio.] Por que insistir sobre o nú­mero daqueles que morrem no mundo, enquanto tu mesmo, ao con­trário, vês teu último dia chegar depressa?" Bem-aventurado aquele que, considerado este solene juízo, para o qual olham as cidades e as nações, pode esperá-lo com coração firme e expressão serena, descan­sando sobre a inocência de sua vida.

Em 416 outro poeta cristão da Gália escreveu o célebre Car­men de providentia, em que o conceito de "juízo de Deus" e da "cidade celeste" dá o tom à resignada consideração dos re­centes desastres e à condenação dos pecadores.

Esta pessoa chora as somas de ouro e prata que perdeu; aquela outra lamenta o enfeite que lhe foi arrancado, os colares que as esposas dos godos dividiram entre si... Mas tu, que choras por teus campos pa­rados, pelas casas abandonadas, pelos deambulatórios de teu caste­lo incendiado, não seria melhor chorar por teu verdadeiro mal, se conseguisses ver a devastação que há no fundo de teu coração?... Evitemos erguer contra nós, com lamentações raivosas, a justa có­lera divina; não acusemos o juizo de Deus, que mais que o abismo infinito supera os meios de nossa razão e de nossa raiva.

Notas
[1] Este texto é fundamental para o importante problema da datação de Co­modiano; cf., por exemplo, Courcelle, Histoire littéraire des grandes invasions germaniques, 1948, 127 ss. (com conclusões diferentes das nossas).
[2] Trata-se de uma edição que não chegou até nós do de mirabilius auscultatianibus do Pseudoaristóteles (outras quatro redações chegaram até nós) e consul­tada por Estêvão de Bizâncio, s.v. fkpjJ-apa (ou de sua fonte).
[3] Walser, in "Historia", Einzelschr. H. 2.
[4] Walser, Rom, dans Reich und die fremden Völker in der Geschichtsschrei­bung der frühen Kaiserzeit (1951).
[5] É bom lembrar o parecer de Huysmans: "Un seul poète chrétien, Cammo­dien de Gaza, représentait dans sa bibliothèque l'art de L 'an lII.. Ces vers tendus, sombres, sentant le fauve... ".
[6] Hubaux, in "Antiquité Classique", 1948, 143 ss.
[7] Daqui a polaridade Diocleciano-Constantino: cf. S. Mazzarino, Aspetti sociaciali del quarto secolo (1951); Seston, RAC IlI, 1036-1037 (1955).
[8] Thompson, A Roman Reformer and lnventor (1951); cf. Andreotti, in "Ri­vista di filologia classica", 1953, 164. Vale a pena reafirmar (para o que diz respei­to à datação) que tyrannus pode ser somente o usurpador; um homem como Firmus não poderia ser indicado como tyrannus.
[9] A avaliação da reforma temática de Heráclio é de extrema importância para a compreensão da história romana e da medieval: Heráclio situa-se exata­mente no limite entre Antigüidade e "Idade Média bizantina". Este importante imperador bizantino, que governou de 610 a 641, suportou o avanço árabe, que arrancou Egito e Síria ao império; entretanto pôde rechaçar o avanço persa, que ameaçava submergir toda a Ásia Menor. E este sucesso deveu-se, sem sombra de dúvida, à reforma temática. Com ela, Heráclio estabeleceu circunscrições regionais em que destinou a seus soldados, a título hereditário, "propriedades para sol­dados": cada circunscrição regional chamou-se thema, "corpo de armada". - So­bre a origem da reforma temática de Heráclio discutiu-se muito: a opinião mais difundida (recent. Ostrogorsky, Histoire de l'Etat byzantin, trad. fr., 1956, 125 ss.) a reconduz ao sistema dos soldados limitanei ("dos limites") do baixo impé­rio: neste caso a reforma de Heráclio não seria uma inovação propriamente dita, porém manteria instituições romanas vigentes desde o século IV d.C. Na realida­de, contudo, os limitanei do baixo império a rigor nunca foram soldados-colonos. [Cf. Seston, in "Historia", 1955, 284 ss.; Jones, in "Classical Review" 1953,114. - Diferentemente, Van Berchen, L'armée de Dioclétien et la réforme canstantinienne, 1952). O principal argumento apresentado por Van Berchen é, porém, um texto do historiador bizantino Malalas que diz que Diocleciano colocou os duques "mais para dentro dos acampamentos"; se, como acredito, a expressão de Malalas se refere somente àqueles "limites mais internos" de que fala Amiano XXIII 5, I, deduz-se que mesmo os duques se encontram no limes - embora nu­ma linha mais interna - e que portanto os limitanei não são - como afirma o ilustre estudioso suíço - soldados-camponeses muito distintos dos demais soldados. ]
[10] Para se entender toda a "apologética cristã da história", pode-se consul­tar o fundamental ensaio de Straub in "Historia", 1950, 52 ss.
[11] Para o que diz respeito à datação de Vegécio, cf. o que observo em Giannelli-Mazzarino, Trattato di storia romana, II (1956), 542-543. [= S. Mazza­rino, L'impero romano. Bari 1988. pp.831-833. N.d.R.]


MAZZARINO, S. O fim do mundo antigo. São paulo: Martins Fontes, 1991


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