Marcas da Experiência Romana

1. A COMUNIDADE MEDITERRÂNEA: LIMITES E VIZINHANÇAS

“Antes de mais, é preciso que se saiba que o Império Romano contém por toda a parte a fúria das nações que uivam à sua volta, e que a pérfida barbárie, protegida pela natureza dos lugares, cobiça de todos os lados as nossas fronteiras.” É nestes termos que um obscuro autor do século IV, pouco depois da conversão de Constantino ao cristianismo, descreve o campo entrincheirado em que se convertera a Respublica Romana, essa grande comunidade dos povos greco-romanos.

A luta fora muito menos árdua durante o período áureo de Augusto ou o período argênteo de Trajano. Transformara-se numa série de combates sem quartel durante o período férreo de Galieno, complicando-se com ter­ríveis convulsões internas. Depois, mercê de um esforço quase sobre-humano, o Império reerguera-se. O Imperador recuperara autoridade sobre as tro­pas, o exército soubera uma vez mais conter os Bárbaros, e a Respublica, enfraquecida mas convalescente, conseguira um adiamento precioso. E embora a constituição do Império, as suas leis, a economia ou a arte já não fossem as mesmas do tempo da juventude – seria acaso possível sobre­viver quatro séculos sem transformações? – as fronteiras não se haviam alterado.

Regiões civilizadas e mundo bárbaro

Na força da juventude, o poderio romano atingira os limites do mundo civilizado e ultrapassara-os até para anexar as mais férteis ou as menos atra­sadas das regiões bárbaras. Na idade madura, imobilizara-se em longo cor­redor que as fortificações do limes protegiam contra os embates desorde­nados dos nômades e dos seminômades a norte ou a sul: bárbaros da planície ou da floresta onde a vinha jamais conseguia sol bastante para dar fruto, bárbaros do deserto arenoso ou pedregoso onde a oliveira ardia sem dar flor. A ocidente, era o oceano a abrir-se num abismo, onde seria loucura aventurar-se alguém. A oriente, a Pérsia oferecia o espetáculo de um Império menos poderoso e menos requintado do que o Romano, mas gover­nado não obstante, de acordo com princípios assás semelhantes, um Impé­rio que se havia de tolerar provisóriamente, visto terem fracassado as ten­tativas para o subjugar. Mais distante, mal conhecida, a China – Serica, o império da seda – construía outras muralhas contra outros bárbaros. Estes três estados tão cheios de orgulho – Roma, a Pérsia, a China – for­mavam uma cadeia quase contínua do Atlântico ao Pacífico, alternando-se, sem o saberem, na tarefa de organizar os povos civilizados e de deter os selvagens.

É certo que nem todos os “selvagens” o eram da mesma maneira aos olhos dos Romanos. A Etiópia perdera quase por completo o contato com o Egito, depois de sucessivamente ter sido sua vassala e sua soberana, mas gozava no entanto de certo crédito, sobretudo porque se situava na origem do ouro, de especiarias variadas, e nas nascentes do Nilo, mais precioso ainda do que o ouro. Também a India havia deslum­brado os Gregos pelas suas riquezas e mantido ligações comerciais e culturais com as províncias levantinas do Império Romano. Os Arabes não se faziam notar pela riqueza nem pela força, mas algumas tribos suas visitavam com regularidade os postos frontei­riços romanos da Síria e da Mesopotâmia, últimos portos das caravanas antes do “mar sem água” do deserto, e aí haviam colhido elementos de civilização. Mesmo os Germa­nos, dizia-se, apesar da ferocidade natural, lá tinham as suas virtudes. Aos escritores forneciam por vezes modelos para o retrato ideal do selvagem nobre; aos exércitos, corpos auxiliares aguerridos; aos mercadores, clientes com poucas exigências e, se os deu­ses se mostravam propícios, escravas loiras.

É verdade que os deuses tinham demonstrado bem a sua cólera no século III, mas essa dura prova pertencia já ao passado. Reconstruído militar e administrativamente por uma série de grandes chefes, desde Cláudio II (268-270) até Diocleciano (284-305), reconciliado com a irresistível religião de Cristo por Licínio e Constantino (306-337), o Império considerava crise passageira essa tempestade, no decurso da qual um impe­rador fora capturado pelos Persas, um outro morto pelos Godos, enquanto as melhores províncias desertavam. Vistas bem as coisas, os Germanos, tal como os Berberes não submetidos, que em tantos aspectos lhes eram semelhantes, não pareciam tão de recear como o Estado civilizado dos Persas. Na época do texto que citamos ao abrir este capí­tulo, o imperador Juliano (360-363) - último campeão dos costumes antigos - daria uma imagem bem nítida deste ponto de vista, ao voltar as costas aos Germanos, der­rotados mas não aniquilados, a fim de tentar uma vez mais concluir vitoriosamente o velho duelo com a Pérsia.

Assim, os limites do Império pouco se haviam deslocado no decurso dos séculos. A sul, eram os desfiladeiros do Atlas, uma catarata do Nilo e, nas outras partes, o deserto: alguns fortins puderam ser abandonados sem que a situação mudasse sensivelmente. A oriente, o deserto servia também de fronteira na Palestina e na Síria; daí até aos desfiladeiros do Cáucaso, estendia-se uma região montanhosa onde, sucessivamente, tanto Roma como a Pérsia se disputaram com dureza algumas faixas de terreno sem resultado duradouro. A norte, o Danúbio e o Reno, os grandes rios que cortam em dois aquilo a que chamamos Europa, marcavam a fronteira entre a Româ­nia e a Barbária. Este limite prolongava-se, para lá do mar do Norte, até as montanhas entre a Inglaterra e a Escócia. Na Escócia, na Suábia, na Romé­rua e (se, em 180, Marco Aurélio não tivesse morrido cedo demais) na Boémia, o Império concebera a ambição de proteger a sua fronteira com uma cortina de fortificações exteriores, mas fora obrigado a renunciar a tal. Aliás, mesmo sem essas fortificações, a barreira continuava a aguentar-se. Era por certo uma fronteira bem longa, mas que se justificava pelo fato de seguir, mais ou menos em linha paralela, as margens do Mediterrâneo, de maneira a resguardar uma faixa de profundidade quase constante, ao longo do mar.

O Império, dom do Mediterrâneo

Diz-se que o Egito é um presente do Nilo. Com quase tanta razão se poderia afirmar que o Império Romano foi um presente do Mediterrâ­neo. Este caráter físico, orgânico, distingue-o com nitidez dos outros impérios da Antiguidade, que tinham por eixo um vale, e dos grandes reinos medievais, centrados numa planície ou num planalto. Assim se pode aplicar à comunidade greco-romana a encantadora imagem que Pla­tão dava dos Gregos, seus concidadãos, debruçados de perto ou de longe sobre o mar “como rãs à volta de um charco”. Na verdade, o Mediterrâneo mantinha unida a imensa Respublica Romana, assegurando-lhe um clima relativamente uniforme e comunicações relativamente fáceis. A própria Roma, ao comando: no centro, transmitia ordens e recebia por barco o seu sustento graças a Óstia e ao Tibre.

A rede dos cursos de água e das estradas permitiu sem dúvida aos Romanos uma certa penetração no interior das terras. Com engenho e per­sistência os colonos conseguiram aclimatar plantas e métodos mediterrâ­neos a alguma distância dos seus locais de origem (como em relação à vinha, que propagaram em direção ao norte). Contudo, quanto mais os Romanos se afastavam do mar quente e temperado, menos à vontade se sentiam. Tornavam-se mais complicados os problemas “logísticos” e administrativos, atenuava-se-lhes a faculdade de assimilação dos povos submetidos, afrouxava-se-lhes também a vontade de dominar os orgu­lhosos. Embora gostando de chamar ao seu império “universal”, tiveram geralmente o bom senso de parar sempre que se lhes tornava difícil retem­perar as forças mediante o contacto fácil com o Mediterrâneo revivificante.

Uniformidade de clima e facilidade de comunicações tornaram possí­vel esse dilatado milagre do Mundo Antigo: a transformação de uma amál­gama desconexa de povos em comunidade harmoniosa e homogênea. O im­perador que celebrou o primeiro milenário da fundação de Roma, em 248, era de origem árabe; diziam mesmo que abraçara a doutrina subversiva e baixa dos cristãos. Que importa? Acostumados de há séculos a viver em conjunto sob um governo único, os habitantes do Império haviam adquirido uma maneira comum de observar e de agir. Um cidadão que se deslocasse de Eburacum (York) a Alexandria ou de Trebizonda a Cádiz não se sentia mais estrangeiro do que um francês de hoje que viaje de Lille a Marselha, Genebra ou Liège. Todos os homens livres eram cidadãos, e se é verdade que nem todos os cidadãos gozavam dos mesmos direitos, também as desigualdades se revelavam quase constantes de uma ponta à outra do Império. Mesmo os escravos viram imperadores filósofos impor os primei­ros limites às arbitrariedades dos seus senhores. Bem depressa a crise eco­nômica e demográfica preencheria o abismo que os separava dos homens livres: a liberdade tornar-se-ia um fardo para os pobres enquanto a rarefação da mão-de-obra tornaria os escravos mais preciosos. Por todo o Império, exército, administração, escolas, teatros, salões eram os cadinhos onde, à chama do patriotismo romano, se fundiam resistências e particularismos.

É verdade que não houve patriotismo que chegasse para eliminar por completo as indiferenças e os descontentamentos. Contudo, a ausência de concorrência tornava quase impossíveis as traições.

O mais ardente dos nacionalistas de hoje tem de admitir que a sua própria nação faz parte de uma grande família onde as diferenças culturais são pouco profundas; aos olhos dos seus cidadãos, a Roma antiga era a única comunidade humana no meio desses seres meio-homens que eram os Persas, ou desses semi-lobos que eram os Bárbaros. Ponto de vista este pouco ampliado pelo universalismo de alguns escritores cristãos.

Unidade e diversidade

Não há dúvida de que subsistiam diferenças regionais de idioma, de leis, de instituições, de ritos, mas atenuadas, cobertas por uma superfície homogênea, brilhante, sólida. Duas línguas eram quase universalmente compreendidas, se não faladas com a mesma fluência: o latim no governo e na ação, o grego no pensamento e na elegância. Uma literatura bilingüe, mas una nos temas e no espírito, conservava a forma primitiva dos idiomas dominantes, enquanto um latim e um grego populares iam a pouco e pouco suplantando os falares regionais. Artes e técnicas exprimiam-se igualmente num idioma uniforme, apesar das variações impostas pelas dis­paridades de talento e de instrução, de hábitos ou de clima. Elaborado por juristas de gênio e enriquecido pela prática quotidiana, o direito civil enter­rava cada vez mais os costumes particularistas. A pouco e pouco, os inúme­ros cultos e deuses locais tinham-se fundido num sincretismo nivelador. Ao mesmo tempo, as “superstições” místicas do Oriente haviam feito recuar as “religiões” formalistas da tradição ocidental. Por último, o cristianismo levara a melhor sobre as outras crenças universalistas orientais. De resto, a duração e a violência da luta não podem esconder dos nossos olhos as influências recíprocas, as semelhanças profundas entre as deusas-mães e as trindades de todos os tempos, as afinidades entre um Celso e um Orígenes ou entre um Santo Agostinho e um Juliano.

Como é natural, a camada niveladora não se mostrava igualmente espessa em todas as classes ou em todas as províncias. Dentro daquilo a que chamamos a civiliza­ção greco-romana, o acento colocava-se sobre o termo “romano” na parte ocidental do Império, e sobre o termo “grego” na parte oriental. Por razões opostas, a Inglaterra e a Palestina estavam menos profundamente “romanizadas” do que a Hispânia e a Dal­mácia. Os Judeus, orgulhosos de um passado ilustre, não queriam deixar-se despersonali­zar por uma cultura estrangeira; a Grã-Bretanha não fora ocupada durante tempo sufi­ciente ou colonizada com intensidade bastante para absorver a fundo a cultura supe­rior dum povo mais evoluído. Da mesma forma, se as aristocracias urbanas não achavam extremamente difícil tomar por modelo a aristocracia da Cidade por excelência, já os camponeses - como sempre e em toda a parte - conservavam um culto pelo torrão natal mais ou menos marcado, consoante a distância a que se encontravam das cidades, do mar ou das vias de comunicação. No principio do século V, um magistrado-bispo da Círenaica terminava o seu elogio da vida rústica do interior com estas palavras mor­dazes: “Sem dúvida que sabemos continuar a existir um Imperador vivo, porque os exactores do fisco no-lo recordam todos os anos; mas quem ele seja, é coisa bem menos clara. Há entre nós alguns que julgam que o nosso rei é ainda Agamémnon, filho de Atreu”. Persiste o fato de que Agamémnon fazia parte do patrimônio comum da cul­tura greco-romana e de que a ignorância ou o descontentamento dos rústicos só rara­mente causou à Respublica Romana revoltas organizadas.

2. FORÇAS TRADICIONAIS

A experiência dos tempos modernos habituou-nos a ver na centra­lização administrativa o cimento dos impérios, e no comércio um corre­tivo à ação dissolvente dos interesses agrícolas locais. Ora, a unidade política do mundo mediterrâneo clássico assentou pelo contrário na prote­ção aos governos locais, enquanto a sua unidade econômica se construiu essencialmente sobre a uniformidade de pequenas comunidades agrícolas.

O Império, uma república

Por muito, muito tempo, este império romano, que nunca deixou de se querer chamar Respublica, prodigalizou esforços para suster os corpos, orga­nismos e comunidades particularistas que o pudessem aliviar duma ou doutra função governamental. “Não existe paz sem exército, exército sem soldo, soldo sem tributo; o resto é comum entre nós”; nestas palavras, atri­buídas por Tácito a um general romano que se dirigia aos Gauleses, estão resumidos os ideais, e até as realizações da política imperial. Mesmo os mais despóticos imperadores do século I, os Calígulas e os Neros, pouparam em geral aos pequenos senados das cidades provinciais, as humilhações que gostavam de infligir ao grande Senado de Roma. Á medida que as exigências da guerra e o peso da administração aumentavam, o governo central viu-se evidentemente forçado a alargar as suas atribuições e a mul­tiplicar os seus cargos. Mas mesmo então, a repugnância em levar a cabo uma centralizacão que não estava de acordo nem com as tradicões nem com as possibilidades econômicas e militares, se manifestou por uma série de medidas que conduziam ao fracionamento. O alto comando (ou seja, o cargo de Imperador, não o Império, que era e continuou a ser indivisível) foi partilhado entre duas ou mesmo quatro pessoas. Cada um dos postos militares e administrativos provinciais estava em condições de se bastar a si próprio, tanto quanto o permitiam as situações particulares. Aos fun­cionários municipais, presidentes dos corpos de misteres, proprietários de grandes domínios, foram garantidos poderes bastantes para transmitir as crescentes necessidades do governo a quem dependesse deles.

De todas as colaborações que podia solicitar, o Império só deixou inexplorada a dos mercadores. Quando muito, foram estes convidados a ajudar as autoridades nas requisições, por meio das quais se tentava abas­tecer o exército e a burocracia sem recorrer ao mercado livre. Esta indife­rença não deixava de ter vantagens, poupando aos comerciantes a intervenção nos negócios de um governo que por força não compreenderia os seus interesses. Em contra-partida, limitava os benefícios mútuos que a comunidade política e econômica mediterrânea e a sua classe mercantil teriam podido obter. Tornaremos adiante ao papel do comércio na vida econômica do Império; limitemo-nos por ora a verificar que na vida polí­tica ele desempenhou um papel insignificante. Por um paradoxo da his­tória, o único Estado que controlou todo o Mediterrâneo e dele fez o seu centro de gravidade, viveu e morreu como nação de agricultores.

O exército camponês

Quem não conhece a história edificante de Cincinato voltando ao arado depois de cada vitória? Essa história nunca deixou de representar o ideal supremo de Roma, ainda que a realidade cada vez mais se distanciasse dele. Depois de a guerra ter enriquecido ou empobrecido quase todos os peque­nos proprietários independentes do território latino, buscaram-se mais longe os Cincinatos, no resto da Itália, na Gália, nos Balcãs. As colônias propagaram a boa semente, os exércitos estabeleceram viveiros em todas as guarnições, e a árvore, sempre ameaçada mas sempre renascente, rece­beu a proteção de leis especiais. No século III, foram camponeses ilírios que salvaram o Império da derrocada. No desmoronamento geral do século V, as derradeiras resistências aos Bárbaros vieram, não dos grandes, quantas vezes dispostos a colaborar com o vencedor, mas dos soldados camponeses, únicos ou quase únicos a conservar propriedades livres ao longo da fronteira. Os outros camponeses proprietários tinham sido absorvidos de há muito pelos grandes domínios, resignados e até felizes por trocar a independência pela segurança; porque os grandes senhores, a quem abandonavam a propriedade plena da sua parcela de terra, podiam melhor do que eles fazer face aos flagelos reiterados das invasões, às catástrofes mais frequentes das más colheitas, às sangrias regulares e crescentes do fisco.

Se os pequenos proprietários (e, na sua falta, os mercenários bárbaros) constituíam o núcleo do exército, eram os médios e os grandes proprietá­rios quem preenchia os quadros militares e administrativos. Já muito anteriormente, durante as perturbações que precederam a extinção da República, o seu monopólio fora ameaçado por uma classe ascendente, a dos “cavaleiros”. Por estranho que isso nos possa parecer, depois de séculos de cavalaria feudal, o termo designava então plebeus enriquecidos pelo comércio, pelos empréstimos e pelos fornecimentos de víveres. Pode perguntar-se qual seria o destino do Império se estes “cavalheiros de indús­tria” tivessem vencido: talvez resultasse mais vigoroso, mais empreende­dor, certamente menos estável. Mas a prudência de Augusto e dos seus sucessores apoiou-se nas boas famílias dotadas de bens de raiz, e natural­mente de um espírito conservador e moderado.

Enquanto a média propriedade manteve o seu lugar ao lado do grande domínio, o Império possuíu uma base bastante larga de alicerces campo­neses. Só começou a periclitar no momento em que a classe média foi por sua vez engolida pela crise econômica e militar, deixando apenas lado a lado grandes senhores e trabalhadores esfomeados.

As células urbanas, células fundamentais

Enquanto subsistiu, foi esta classe média de proprietários que deu alma às células fundamentais que formavam o Império: as cidades-estados. Estas células eram anteriores ao próprio Império e mesmo à cultura greco­-romana. Ligavam-se ao tipo mais simples de organização humana que pode resultar da fixação ao solo de uma comunidade anteriormente seminômade ou nômade: um núcleo fortificado, colocado no meio de uma região agrícola.

O território da cidade-estado mostrava-se de início pequeno bastante para poder reunir facilmente, no abrigo central, homens e produtos e pro­tegê-los contra a inclemência da natureza, fazer frente aos inimigos comuns, partilhar as emoções da prece ou os prazeres do banquete. A princípio, a cerca podia limitar-se a incluir um único edifício para os deuses e os che­fes, além de um grande espaço vazio para reuniões. A pouco e pouco foram-se multiplicando as casas e a aldeia passou muitas vezes a cidade, povoando-se de administradores, artífices e mercadores, como também de proprietários rurais. Mas estes continuaram a dominar a vida polí­tica e social da cidade, ao mesmo tempo que asseguravam a sua união material e moral com a zona abastecedora. O termo civitas, cidade, que hoje reservamos à capital industrial e mercantil de um vasto território agrí­cola, aplicava-se sem distinção ao território e ao seu núcleo (urbs). O carác­ter específico do núcleo não resultava da profissão dos seus habitantes, mas sim do fato de que eles viviam lado a lado, enquanto normalmente os outros “cidadãos” se achavam dispersos.

Era quase inevitável que a cidade-estado não fosse mais do que uma etapa no caminho do império ou da nação. Cedo ou tarde, uma civitas mais desenvolvida do que as outras ou um chefe militar hábil e bem secundado haviam de impor a sua força a várias cidades-estados. Esboçaram-se unidades de maior âmbito, decalcadas muitas vezes sobre regiões naturais: foi assim que o vale do Nilo viu os seus “mornos” independentes apagarem-se sob o domínio dos reis-deuses que controlavam a distribuição das águas vivificantes.

Contudo, nem sempre a geografia era favorável à integração da cidade num impé­rio. Na maior parte da Grécia e da Península Itálica, erigia montanhas, cavava fossos em torno de cada cidade-estado, dando-lhe em troca uma nesga de mar como única saída para o mundo. Por isso se achou muitas vezes retardado o desenvolvimento do estado rnonocelular em organismo mais complexo. A célula teve assim tempo de ama­durecer dois gérmenes que, noutras partes, englobados cedo dernais na pesada estrutura de um império, se atrofiaram: um individualismo mais tenaz, reforçado de solidariedade mais estreita. Os habitantes conheciam-se melhor: para se dedicarem a uma expressão coletiva, que refletisse de perto gostos e interesses, não tinham necessidade de recalcar as suas personalidades. Na Grécia e na Itália, quando a cidade acabou por sucumbir, era já tarde para apagar o patriotismo local. Mais valia então utilizá-lo, transformar em colaboradoras as vencidas da véspera.

Roma, ela própria cidade-estado, foi mestra nesta arte que lhe valeu a duração do seu poderio. Mesmo que apoiada numa burocracia cada vez mais numerosa, o seu exército incomparável jamais teria bastado, sem o concurso das cidades, para manter a coesão de império tão vasto e, em última análise, mediocremente povoado: império que, além do mais, nunca conseguiu transformar-se em verdadeira monarquia hereditária. A sua estrutura celular, consolidada onde já existia e introduzida onde faltava, assegurou a continuidade e a uniformidade da civilização mediterrânea. O mapa do Império apresenta-se como um ponteado denso de cidades-esta­dos (500 no Norte de África apenas), com manchas indecisas aqui e além, onde tribos recentemente submetidas ou admitidas como “aliadas” faziam a sua aprendizagem de romanização e de vida municipal.

A crise das cidades

Graças às cidades, podia o imperador em tempo normal “governar todo o mundo por cartas, sem se deslocar”, como o notava no fim do século II um romano da Grécia. Infelizmente, no século III esta rotina tornara-se a exceção. Os imperadores corriam de uma ponta à outra das fronteiras para afirmar por toda a parte a sua presença, para colmatar as brechas através das quais os Bárbaros se precipitavam sobre as civitates, já esgotadas pelas contribuições extraordinárias. Nestas condicões, era ine­vitável que as cidades sofressem danos irreparáveis. Contudo, desastres desta ordem restituíram aos núcleos urbanos das cidades-estados a funcão originária que haviam perdido à medida que se desenvolviam e embeleza­vam com teatros e ginásios, com aquedutos e com mercados, ao abrigo da muralha contínua das fronteiras invioladas e distantes. Cada cidade recebeu guarnições e encerrou-se de novo nas suas muralhas privativas. Roma como as outras.

Os progressos do absolutismo e as necessidades econômicas obriga­ram os imperadores do IV século a contar muito mais com uma pletora de empregados do que com uma escolha de colaboradores. O peso da sua mão aumentou sobre a população dos núcleos urbanos, a tal ponto que ricos e pobres se esforçaram por fugir para o campo, onde o controle era mais difícil. Seria contudo menos exato dizer que a política imperial foi delibe­radamente destrutiva: nos limites em que o pôde, esforçou-se por manter vivas as células constitutivas do Império. Todavia, era-lhe necessário explo­rar sem piedade os cidadãos. Nos centros prósperos do Oriente, e mesmo em várias cidades da Gália Setentrional, da Inglaterra, da África ou da pla­nície do Pó, a operação não impediu uma modesta recuperação econômica. Se nas outras cidades, em que a retração das cercas atesta a profunda decadência, a pele do paciente foi arrancada, não constituiu isso má von­tade. É que o paciente nada mais tinha para dar!

3. TENSÕES NOVAS

Coube às cidades levar a bom termo a última grande tarefa que no seu crepúsculo o Império do século IV veio a cumprir: a definição da orto­doxia cristã e a sua propagação entre os “pagãos” (pagani: em bom latim, camponeses). Porque a Igreja decalcara a sua organização sobre a própria estrutura do Império, escolhendo para os concílios as capitais de província e para as sés episcopais os núcleos de cidades-estados. Era daí que um clero bem disciplinado e isento de contribuições fiscais dirigia a evangeliza­ção do território. Aliás, o cristianismo apresentara-se desde o início como um movimento essencialmente urbano. Tanto os primeiros aderentes (proletá­rios) como os prosélitos de combate (intelectuais) recrutaram-se sobretudo nos centros mais povoados e mais abertos a inovações. Reforçando os nú­cleos urbanos numa época em que a crise econômica e militar os atingia, a Igreja atuava portanto como fator de equilíbrio.

Lei divina e lei humana

Os que acusam o cristianismo de ter acelerado a dissolução do Império Romano confundem o sintoma com a causa. Não há dúvida de que a ordem antiga havia de estar bem enfraquecida para que a nova religião se pudesse afirmar apesar da hostilidade geral das classes dirigentes. Mas o cristia­nismo ofereceu ao império cristão uma fonte de entusiasmo mais fresca do que os velhos cultos oficiais do politeísmo. De resto, o progresso da auto­cracia parecia exigir uma religião exclusivista: os Persas tinham-na encon­trado no monoteísmo de Zoroastro; e os últimos imperadores romanos do III século haviam-na procurado na mesma direção com o culto do Sol. No século IV, os cristãos não passavam de uma minoria, mas o seu espírito de disciplina podia ser útil; em 314, após os primeiros editas de tolerância, o Concílio de Arles propunha já que fossem excomungados todos aqueles que se recusassem ao serviço militar. É verdade que para abraçar o cristia­nismo tinham os imperadores de renunciar à deificação póstuma que o paga­nismo lhes concedera. Compensaram-na, porém, tomando a direção da Igreja. Não valeria mais refletir os raios projetados pela luz única do que dar nascimento a estrelas medíocres, num embaciado firmamento de deuses? Através do cristianismo, o Império alargava até ao céu as fronteiras que tinha na Terra: a sua causa não era já apenas a dos civilizados contra os bárbaros; era também a dos crentes contra os infiéis.

Toda a crença que se arroga o monopólio da verdade contém um gérmen de intolerância: se as perseguições não a sufocam, o que fazem é torná-la muitas vezes mais intransigente ainda. Não foi preciso um século para que o cristianismo se transformasse de perseguido em perseguidor. Em 311, o imperador Galério abrira-lhe a porta estreita da indulgência, “a fim de que a república goze de uma perfeita prosperidade”; em 341, Constâncio proibia os sacrifícios pagãos, exceto nos templos situados fora das cidades; em 392, Teodósio colocava fora da lei toda a manifestação des­ses cultos, aos quais, não obstante, permanecia ligada a maioria da popu­lação rural.

No próprio seio da Igreja, as querelas entre seitas rivais não esperaram pelos editos de tolerância para se manifestarem. Mais encarniçadas se tor­naram quando os concílios passaram a contar com a ajuda do Estado para dar execução às suas ordens. Mas todos esses combates religiosos só vieram sublinhar os conflitos, inevitáveis já, entre os aspirantes ao Império, as velhas rivalidades das províncias. Por isso, enquanto os dissidentes tiveram espe­rança de converter o Estado ao seu ponto de vista, dirigiram os seus ata­ques, mais do que contra o governo, contra os governadores. “Na rea­lidade”, dizia Optatus, um bispo africano do século IV, “a República não está inclusa na Igreja, mas é, sim, a Igreja que está inclusa na República, isto é, no Império Romano, visto que acima do Imperador não há senão Deus.”

Mais tarde, a intransigência dos “ortodoxos” contra os “heréticos” viria fornecer uma nova base de patriotismo. Os Romanos viram nos Aria­nos bárbaros inimigos tanto da fé como da nação. É sem dúvida este sen­timento que vibra na inscrição gravada por volta de 580 por um humilde soldado balcânico, num grego mal alinhavado e tocante: “Senhor Cristo, ajuda e protege a România!”

Porque tinha mais para oferecer do que os cultos pagãos, a Igreja cristã não mostrou a mesma docilidade. Teodósio “o Grande”, que se diz ter sido condenado por Santo Ambrósio de Milão a uma penitência, depois do massacre da população de Salônica, inaugurou em 390 a série dos impe­radores que compraram a salvação da alma com uma humilhação. Mas que na vida quotidiana não repugnavam à Igreja os compromissos com o Estado, prová-lo-á a história milenária de Bizâncio. Já o Evangelho separara o domí­nio de César do de Deus; e o desprezo afetado por um Santo Agostinho pela Cidade terrestre sublinhava que era impossível governá-la segundo a estrita lei da Cidade celeste.

Por seu lado, o Império pagão nunca se preocupara com teologia. O seu politeísmo fora prático, concreto. Idéias abstratas e princípios morais cabiam antes no âmbito da filosofia (para os eleitos) e do direito (para todo o povo). Eram inevitáveis divergências entre a filosofia greco-romana e a religião judaico-cristã, ainda que a maioria dos pensadores não julgasse difícil recon­ciliá-las. Mas não havia antagonismo real entre o cristianismo e o direito que proclamava, pela voz de um Ulpiano: “As regras do direito consistem em viver honestamente, não lesar ninguém, dar a cada um o que lhe é devido.”

Contudo, se os sacerdotes tivessem tomado à letra a recomendação de Jesus de não alterar um iota à Lei mosaica, ou se os juristas tivessem insis­tido demasiado na fórmula segundo a qual “a jurisprudência é o conhe­cimento das coisas divinas e humanas”, conflitos de autoridade, senão de doutrina, teriam rebentado sem demora. Felizmente que sacerdotes e juris­tas se mostraram igualmente razoáveis durante os anos decisivos da ado­ção do cristianismo pelos imperadores. A colaboração do Estado e da Igreja começou com base na separação dos poderes.

Será necessário sublinhar a importância da mensagem espiritual que a Lei de Israel, interpretada pelos cristãos, transmite à Idade Média? No eclipse das leis e da filosofia antigas, frente aos adoradores da força e da violência, os seus arautos nem sempre se mostraram dignos dela. Todavia, a exaltação dos humildes, dos pobres, dos pacíficos não deixou de permane­cer a voz da bondade clamando no deserto, uma voz que nada poderia já sufocar.

A responsabilidade dos imperadores

Os humildes necessitam da proteção do Estado, a Igreja enfileira ao lado da ordem imperial. Estando assim o cristianismo fora de causa, será o absolutismo dos imperadores do século IV que se deve acusar de ter sapado a Romana Respublica? Uma vez mais, convirá não confundir causas e sintomas. Depois das tempestades do século III, deixou de haver corpo legislativo ou administrativo que se fizesse respeitar pelos seus próprios meios; uma autocracia enérgica era o único freio possível contra a anar­quia. Aliás, poderá dizer-se que Nero e Caracala, embora sem uma tão forte pressão das circunstâncias, se importaram mais com a liberdade do que Diocleciano e foram mais respeitadores da moral do que Constantino? Senadores e magistrados urbanos fugiam às responsabilidades, tornadas um peso excessivo; um número crescente de intelectuais desesperava da Cidade dos homens e voltava-se inteiramente para Deus. Os soberanos despóticos e brutais, que, no século IV, se encarregaram da defesa da comunidade greco-romana, foram, apesar dos seus erros e dos seus crimes, os melhores sustentáculos da parte de liberdade que podia ser salva.

O que é que se podia salvar? Não por certo a realidade, ao menos porém o princípio. Praticamente, a liberdade política morrera muito antes do século IV. Apesar da sua preocupação pelas formas republicanas, Augusto transmitira aos sucessores um poder ilimitado. Se os Antoninos se obsti­naram ainda em pedir conselhos ao Senado, já não teriam aceito ordens. Os imperadores dos últimos séculos vestiram-se de púrpura e exigiram que os súditos se prosternassem em sua presença. Contudo, o direito romano, fiel às concepções originárias, persistia em ver neles magistrados exercendo o imperium (o poder de comandar e de se fazer obedecer) por delegação do povo. Era apenas um ideal, mas bastava para colocar o imperador num plano bem diferente do dos reis por direito de conquista ou por investidura divina, que lhe iam suceder na Idade Média.

4. O IMPÉRIO DE PÉS DE BARRO

De todas as medidas urgentes que os imperadores tomaram para ocor­rer às necessidades extraordinárias do século IV, foram as ordenações econô­micas que pareceram na época, como ainda hoje parecem, as mais opressivas.

Seriam as alterações e as falsificações da moeda que causavam a subida dos preços? A lei pretendia estabilizá-los a um nível inferior e fixo, de ponta a ponta do Império. Havia cidadãos que se mostravam incapazes de pagar os impostos ou de prestar os serviços a que eram obrigados? A lei impunha aos vizinhos - burgueses da mesma cidade, camponeses da mesma aldeia, membros do mesmo corpo de ofícios ou da mesma família - que pagassem ou servissem em seu lugar. Mas acaso esses vizinhos tentavam subtrair-se ao fardo, mudando de residência ou de profissão? A lei proibia-lhes dei­xar o seu posto, a que acorrentava também os filhos. A única alternativa que subsistia era a de pagar em dinheiro ou em gêneros.

Impostos sem piedade

Aplicada intermitentemente, uma legislação rigorosa como esta teria podido arrancar um esforço supremo a uma população sobrecarregada; mas mantida em vigor durante dois séculos, saldou-se por desastre quando não se mostrou impotente.

Os poderosos encontraram o furo para se esquivarem às ordens; os menos fortes foram devorados enquanto os mesquinhos desapareciam da lista dos contribuintes. Mas o governo não largava a presa, até quando as circunstâncias o teriam permitido. Conquanto Constantino “Magno” tivesse eliminado os rivais, evitado as guerras com o exterior e confiscado os tesouros dos templos pagãos, nem por isso deixou de acorrentar como escravos os colonos fugitivos e de impor sobre as trocas um imposto, que os exactores fiscais tinham de extorquir à chicotada. Foi sobre estes alicer­ces que Constantinopla se construiu.

Todavia, que o agravamento do fisco no crepúsculo do Império não nos faça esquecer as próprias bases da economia mediterrânea antiga, não bastante robustas, equilibradas e elásticas para aguentarem o peso e os choques que tinham de sofrer. Não é sem custo que o apreendemos: essa Respublica, cujos monumentos sem cessar admiramos e que, durante séculos, assegurou às populações um nível de vida mais elevado, no seu conjunto, do que tudo aquilo que até então se conhecera ou se viria a conhecer por muito tempo ainda - essa Respublica era, não obstante, um colosso de pés de barro.

Agricultura sem excedentes

Com efeito, a agricultura romana - se é lícito falar em termos gené­ricos de uma atividade tão variável de região para região, ou até de aldeia para aldeia dentro dum mesmo termo - tendia a empregar o maior número de braços para obter do mínimo de terreno o máximo rendimento possí­vel. Contudo, e excetuadas algumas províncias mais férteis mas super­-povoadas, como o Egito, esse rendimento mantinha-se medíocre, mau grado o engenho e os esforços dos agrônomos. Na Itália, a colheita de trigo não excedia, em média, o quádruplo da sementeira.

Apesar de tudo a população atingira densidade considerável para a época, visto que os camponeses viviam frugalmente dos produtos da terra. Os animais contribuíam pouco para a alimentação e para os traba­lhos dos campos. Para lhes exigir mais, haveria que abandonar-lhes tam­bém uma área mais extensa das terras de cultivo, o que seria um luxo absurdo para as velhas cidades-estados mediterrâneas! Os camponeses eram obrigados, se queriam estender as culturas, a transformar os montes em terraços, a irrigar os terrenos áridos, a enxugar os pântanos. Preferiam limitar-se, em matéria de animais, ao gado miúdo, facilmente alimentado com o que era inutilizável pelos homens, e arrancar do solo, com o suor do rosto, uma subsistência mínima. A saúde não se ressentia, visto que o clima do Mediterrâneo convida a uma nutrição ligeira; mas era-lhes de todo impos­sível acumular excedentes.

Nas províncias conquistadas havia menos tempo, como a Grã-Bretanha ou mesmo a Gália Cisalpina, os horizontes eram mais vastos, o gado mais numeroso e a população mais rarefeita. Substituindo os métodos primitivos dos indígenas pelas técnicas mediterrâneas, os Romanos teriam podido criar aí uma agricultura de abundância a partir de um equilíbrio feliz entre campos, pastagens e reservas. Teriam podido aprender algumas técnicas do Norte adaptadas ao clima, ao terreno e à riqueza em gado, tais como a atrelagem em fila, cujo emprego na Gália Cisalpina nos é descrito por Plí­nio. Infelizmente os conquistadores, habituados à falta de espaço, não apreciaram no seu justo valor as vantagens dos sistemas de exploração célticos ou germânicos, à base de habitações rarefeitas e de vastas exten­sões de prados e de florestas. Pareciam-lhes o produto de uma cultura atrasada e dissipadora, mais do que de uma natureza generosa. Por isso os Romanos multiplicaram, comprimidas em xadrez regular, as suas habi­tuais aldeias onde os camponeses laboriosos e parcimoniosos cultivavam à maneira de horta a maior parte do solo.

Todavia, se é verdade que os pequenos cultivadores, que formavam a maioria da população, não dispunham de excedentes apreciáveis, os gran­des senhores estavam em condições de os acumular pelo trabalho dos escra­vos e dos camponeses dependentes. Se aplicassem os rendimentos no comér­cio, na indústria e na finança, teriam podido pôr em movimento toda a economia. Só raramente e contra vontade o fizeram. Uns, consumiam eles próprios tudo o que podiam, dispersando o resto em liberalidades; outros, só sonhavam em alargar os seus domínios em terras e em escravos. Alguns iam até ao ponto de organizar pequenas indústrias destinadas a abastecer os seus domínios sem recorrer aos mercados urbanos, mas nenhum ou quase nenhum queria arriscar a reputação na verdadeira manufatura, destinada à venda pública.

Comércio sem prestígio

A usura, conquanto mais desconsiderada ainda, tentava os aristocra­tas com a elevada taxa de juro; mas as aparências exigiam que se servissem de homens de palha, o que impedia a transformação dos usurários em ban­queiros. Sucedia o mesmo com o comércio. Aliás, uma lei do século V, que se ligava às tradições e às leis da época republicana, proibia aos nobres, aos ricos e aos altos funcionários as operações mercantis, “a fim de que os plebeus e os negociantes possam vender e comprar mais facilmente.”

Tais eram os obstáculos que limitavam as profissões a que chamamos urbanas, prejudicadas já pelo medíocre rendimento do trabalho e pelo fraco poder de compra da população agrícola. Poderosos e pequenos, capitalistas agrários e trabalhadores das cidades viviam em assás boa harmonia, porque não colaboravam uns com os outros. Diga-se em verdade que a aristocracia não era insensível aos serviços que mercadores, lojistas e artífices lhe prestavam, conseguindo-lhe o que faltava nos grandes domínios. Burocratas e militares eram os melhores clientes destes citadinos que as autoridades tratavam com benevolência, até porque a sua prosperidade engrossava o rendimento líquido do fisco, enquanto a sua penúria poderia originar levantamentos de massas. Mas uma benevolência tão desdenhosa não podia engendrar compreensão verdadeira. A admi­nistração e os benfeitores particulares, se não desprezaram por completo tudo o que era de interesse público, construiram mais teatros e aquedutos do que molhes ou moi­nho. As soberbas estradas militares que sulcavam o Império quase não atendiam aos interesses da economia mercantil: eram estreitas, rígidas, de manutenção dispendiosa. E, embora o Estado, em princípio, não interviesse nos negócios privados, não se preo­cupava quando os tinha de subordinar a interesses políticos. O comércio com o exterior, suspeito de abrir a porta à espionagem e ao contrabando, era fiscalizado, limitado. Quanto ao comércio interno, não lhe davam acesso a operações tão frutuosas como o abasteci­mento maciço em cereais e em sal ou a exploração das minas; o próprio Estado as asse­gurava, graças aos tributos em gêneros, ou reservava-as para monopólios. Os corpos de ofícios só eram tolerados ou sustentados pelas suas funções de assistência mútua e de utilidade pública.

Sem dúvida que entre a gente do comum havia quem amealhasse dinheiro fora da agricultura. Conquanto exaltem esta última como a única profissão susceptível de dar bem-estar sem sacrificar a dignidade, os escri­tores do Império sublinham o carácter lucrativo do empréstimo a juro e do comércio a grande distância (sem contar a caça ao testamento, cuja importância na época imperial testemunha que não era fácil enriquecer nos empreendimentos produtivos). As ocasiões não podiam faltar aos usurá­rios e aos mercadores, num império tão extenso e povoado. O requinte da civilização greco-romana, a moderação dos direitos aduaneiros internos, incitavam às atividades financeiras e comerciais. Mas aqueles que faziam fortuna por estes meios seguiam na maior parte dos casos o conselho de Cícero, ele próprio chegado à razão: “Se o mercador, saciado ou antes satis­feito com o seu ganho, se retira... para o campo e para os bens fundiários, parece-me merecer todos os elogios.” Para os usurários, este fim de car­reira era quase imposto pela necessidade de tomar o lugar dos camponeses endividados, cujas terras haviam feito confiscar. E assim o dinheiro ganho com tanta fadiga ou com tantos perigos no comércio ou na usura enterra­va-se finalmente no solo, em vez de fertilizar os empreendimentos que o tinham produzido.

Artesanato sem equipamento

Era praticamente impossível amealhar no artesanato, atividade que Cícero qualifica como sórdida e indigna de homem livre. Com efeito, o magro rendimento do trabalho manual, que só se servia dos instrumentos mais simples, limitava os benefícios, até porque a concorrência de numerosos escravos interdizia aos artífices livres o aumento de preços. Sem dúvida que a técnica greco-romana chegara a inventar máquinas assás aperfeiçoadas, mas os trabalhadores é que não eram suficientemente ricos para as com­prarem e os capitalistas nem de longe se preocupavam com fornecer-lhas.

Só para lembrar um exemplo, diga-se que o moinho de água surgiu no extremo oriental do Império já no século I antes de Cristo. Um epigrama grego, primeiro tributo da Musa ao progresso industrial, proclamara o alívio que assim era trazido às moedoras de grão. Mas este moinho não foi adotado em Roma antes do século IV; e fora de Roma, só se viria a generalizar durante a Idade Média. De resto, que fazer dos braços torna­dos inúteis pela introdução de uma máquina? Só empreendedores sem coração sonhariam em engordar com a fome dos pobres... se é que não achavam mais simples fazer trabalhar multidões de escravos e de prole­tários mal alimentados. Conta-se que o imperador Vespasiano, por muito indiferente que fosse ao mau cheiro de certas fontes de receita[1], declinou a oferta de uma máquina para levantar colunas com pouca despesa: “Dei­xai-me dar de comer ao povo miúdo”, disse. Este povo miúdo, reduzido muitas vezes a viver das liberalidades dos grandes, formava o elemento mais numeroso da população das metrópoles antigas e contribuia, com os seus protetores ricos, para tornar as cidades parasitas do campo mais do que centros industriais e comerciais.

A mediocridade do ouro

A abastança discreta dos primeiros séculos do Império, essa aurea mediocritas, tão cara ao mundo mediterrâneo antigo, era portanto resul­tado de dois círculos viciosos. Vamos encontrá-los em quase todas as grandes civilizações agrárias da Antiguidade, especialmente na China onde se perpetuaram até aos tempos modernos. Em baixo, os trabalhadores manuais eram pobres porque tinham falta de animais e de máquinas, e tinham falta delas porque eram pobres; no cimo, o comércio e a finança não dispunham de capitais suficientes porque eram desprezados, e eram desprezados porque lhes faltavam os capitais.

Assim se nos mostra esta economia de saturação, sem reservas, sem possibilidade de progresso, mas que permitiu à aristocracia prosperar e ao povo multiplicar-se enquanto a ordem e a paz não foram perturbadas. Era impossível modificá-la sem a destruir, nem destrui-la sem impor a todos penosos sofrimentos. Era preciso que os trabalhadores fossem dizima­dos para que se poupassem as suas forças e se melhorasse a sua retribuição. Era preciso que mercadorias e crédito deixassem quase de se encontrar para que o seu valor fosse reconhecido; era preciso que os núcleos urbanos fossem cortados do seu território para que um novo casamento entre cidade e campo se organizasse sobre bases mais equitativas.

Veremos dentro em pouco que os primeiros sintomas dessa trans­formação se manifestaram, dolorosamente, desde o crepúsculo do Impé­rio. Seria injusto criticar os imperadores do século IV por não terem com­preendido as possibilidades do futuro e, agarrando-se desesperadamente ao passado que se desmoronava, tentarem amarrar cada obreiro ao seu mister, cada empregado ao seu cargo, cada soldado ao seu posto, e mesmo cada preço ao seu nível anterior. A enxurrada arrastaria decretos e impe­radores, mas foram precisos vários séculos para que a Idade Média conse­guisse varrer as ruínas e construir uma economia ao mesmo tempo mais flexível e melhor equilibrada - a economia que serviu de base à civiliza­ção européia contemporânea.

5. EPÍLOGO

Os imperadores do século IV conseguiram, bem ou mal, resolver a maior parte dos problemas que pareciam antes condenar a civilização mediterrânea à destruição. Mas a longa crise e os remédios heróicos para a superar haviam de tal forma agravado as fraquezas constitucionais da sociedade romana que não restava já margem bastante para fazer face à guerra. Só com uma longa paz se teria podido reconstituir essa margem, mas tal prorrogação não foi concedida. O verão de São Martinho terminou em novas tempestades.

Antes de findo o século IV, os hunos de Átila subjugaram os Ger­manos que eram seus vizinhos, e obrigaram outros a buscar a salvação numa “fuga para a frente” no interior do território romano. Nova série de invasões se abateu sobre o Império durante todo um século. Não seriam elas mais irresistíveis do que as do século III, mas o Império é que já não podia despender esforços prolongados em todas as direções ao mesmo tempo. O Ocidente foi perdendo província após província; o último ato representou-se em 476. Batera-se contudo tempo bastante para conseguir ao Oriente um prazo suplementar, que permitiu a Constantinopla seguir o seu caminho e viver, não sem glória, mais um milênio.

Os pormenores da agonia não poderiam reter a atenção do leitor que se apressa para a Idade Média. Todavia, para conhecer os materiais de que a Idade Média se serviu na construção do seu próprio edifício, temos de voltar atrás e de observar a crise mais grave e mais prolongada, de que a queda do Império Romano não é senão um episódio: a decadência de toda a Euro-ásia durante os primeiros séculos da nossa era.

[1] Ao filho que lhe censurava o lançamento do imposto sobre as latrinas públicas, Vespasiano apresentou uma moeda proveniente da arrecadação a fim de veri­ficar que “não cheirava”.


Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.


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