O período histórico a que se refere o presente trabalho é por muitos designado como Antiguidade Tardia. Há, contudo, quem não aceite esta denominação, preferindo designá-lo como Primeira Idade Média, antecessora do que se costuma identificar como Alta Idade Média (de FRANCO JUNIOR, H. A Idade Média e o nascimento do Ocidente. São Paulo, Brasiliense, 1987).
Quanto à denominação Antiguidade Tardia, difundiu-se, a partir dos anos 1950, após a acolhida que lhe deram alguns historiadores alemães, entre outros, P. E. Hübinger e K. F. Stroheker. E o termo “Spatantike” ultrapassou fronteiras, passando a ser utilizado por grande número de pessoas, no resto do mundo.
Em 1977, o historiador francês Henri-Irénée Marrou, recentemente falecido, deu como título à sua obra derradeira “Decadência Romana ou Antiguidade Tardia?”, nela declarando que "o que importa é que o termo Antiguidade Tardia receba, de uma vez por todas, uma conotação positiva". Mas, ao questionar se seria lícito afirmar que o mesmo já participava da linguagem corrente dos historiadores, lastimava que tal não houvesse ainda acontecido: "Em francês (e o mesmo se dirá dos seus equivalentes italiano e inglês), a expressão conserva ainda alguma coisa de esotérico"; e concluía: "Só o alemão, mais plástico, parece ter acolhido melhor a palavra Spatantike".
A questão essencial é, sem dúvida, a da fixação dos limites entre a Antiguidade e a Idade Média. Em princípios do século XIX, três opiniões dividiam entre si a preferência dos especialistas - a primeira, estabelecendo-os em 324, quando Constantino assumiu o poder, na condição de primeiro imperador favorecedor do cristianismo; a segunda, preferindo o ano de 395, data da divisão definitiva do Império Romano; e a terceira, escolhendo o ano de 476, quando Romulus Augustulus, o último imperador do Ocidente, foi deposto por Odoacro.
Há de reconhecer-se, no entanto, que o período que vai da crise do século III até o final do Império Romano do Ocidente possui características que lhe propiciam uma definição melhor que a de declínio ou decadência do Império Romano. Segundo Marrou, ele se apresenta como "uma outra Antiguidade, uma outra civilização que é preciso aprender a reconhecer na sua originalidade e a julgá-la por si mesma, e não através de cânones estabelecidos em tempos passados". E, se em verdade existem dificuldades para fixar-se uma fronteira nítida entre a Antiguidade e a Idade Média, é precisamente neste ponto onde a denominação Antiguidade Tardia encontra razão para estabelecer-se, identificando um tempo de transição rico em mudanças e muito distante de um conceito simples de decadência.
O historiador inglês Peter Brown, em seu livro “Religion and society in the age of Saint Augustine”, chama a atenção para o fato quando afirma:
Os séculos da Antiguidade Tardia têm sido demasiadas vezes desqualificados como período de desintegração, de fuga para o Além, em que as almas débeis, delicadas, "boas almas", se livraram da sociedade que à sua volta caía, para ir buscar refúgio numa outra cidade, a Cidade Celeste. Nada mais distante da verdade. Na história da Europa, mal terá havido algum período que haja legado aos séculos seguintes instituições tão perduráveis: os códigos do Direito romano, a estrutura hierárquica da Igreja Católica, o ideal de um Império cristão, o monaquismo. Da Escócia à Etiópia, de Madri a Moscou, quantos homens viveram desta imponente herança, quantos se foram sempre referindo a essas criações da Antiguidade Tardia para nelas encontrar um principio de organização da sua vida neste mundo.
Reconhecendo a importância desse tempo, admitimos, também, a dificuldade da sua delimitação. Há quem o faça atingir as proximidades do ano 600, sob a alegação de haverem sido os anos entre os fins do século VI e os princípios do século VII repletos de acontecimentos de importância, como a criação pelos lombardos da última formação estatal germânica sobre as terras romanas (568), o pontificado de Gregório, o Grande (590-604), as reformas do Império Bizantino sob Heráclio (610-641), a aparição dos ávaros e dos eslavos como forças novas atuantes sobre os Bálcãs e o começo da expansão dos árabes (632), que modificaram, substancialmente, a evolução histórica do Ocidente. Outros, contudo, o levam apenas até a morte de Justiniano (565) e a invasão da Itália pelos lombardos (568).
Quanto a nós, preferimos conceber a Antiguidade Tardia como o período que, no Ocidente, vai da crise do século III até a derrocada do Império, com a deposição de Romulus Augustulus por Odoacro; e, no Oriente, até a proclamação como imperador de Heráclio. Aceitando, desse modo, a denominação de Alta Idade Média para os tempos que se iniciam, a partir desses momentos, em cada uma das partes convencionalmente designadas como Ocidente e Oriente, aceitos, em geral, como de transição, possuidores, no entanto, de características diversas daquelas que identificam a Antiguidade Tardia. Considerando, no entanto, os objetivos imediatos do presente trabalho, destinado a leitores de um país vinculado, de modo direto, às culturas que se constituíram na Europa Ocidental, somente iremos cuidar dos fatos ocorridos até o ano de 476, o da queda final do Império Romano do Ocidente, deixando de acompanhar aqueles que, a partir desta data até a época de Heráclio, irão desenrolar-se sobre a área do Império Romano do Oriente. E ainda que admitamos ser esta posição passível de críticas pertinentes, resolvemos adotá-la por conveniência didática. Convencidos de que a mesma poderá permitir, àqueles que se destina este livro, uma compreensão mais exata de um período de importância decisiva para a história do Mundo Ocidental.
OLIVEIRA, W. A Antiguidade Tardia. São Paulo: 1990 (Introdução, p.5-8)
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