No Ocidente, entre a ascensão ao poder de Cômodo (180) e a deposição de Romulus Augustulus (476), três séculos se haviam passado. Através da análise dos fatos e das transformações ocorridas no mundo romano, tentamos identificar, nesse período, características próprias, diversas daquelas do chamado Mundo Antigo. Elas foram, gradativamente, se corporificando, a partir dos últimos anos do século II, e surgiram, plenas de vitalidade, em meados do século IV, durante o governo de Constantino. E incorporaram-se afinal, ao sistema econômico, à organização da sociedade e à mentalidade dos habitantes do Império, de modo definitivo.
Mas, enquanto estivermos condicionados pelo conceito de decadência do Império Romano, seremos incapazes de compreendê-las. Se, ao contrário, adotarmos ponto de vista diverso, encarando-as, idealmente localizados no seio do próprio Império, sem nos considerarmos espectadores do processo, viciados, devido a erros de formação, por preconceitos que nos fazem, inconscientemente, lamentar o fim do mesmo, iremos reconhecer nesse período um tempo de grandes realizações que marcaram, de modo indelével, a evolução histórica dos povos do Ocidente.
Em primeiro lugar, devendo aceitar a idéia de que as elites romanas do século IV não viveram aterradas ante uma perspectiva de catástrofe. Eram prósperas e confiavam em si mesmas. Acreditavam ser possível manter-se, ainda por muito tempo, nos postos que conquistaram, mesmo ante a ameaça dos povos vizinhos, particularmente dos germanos. Como afirma Peter Brown em seu “O fim do Mundo Clássico”, no Império do Ocidente a sociedade e a cultura são (então) dominadas por uma aristocracia senatorial cinco vezes mais rica, em média, do que os senadores do século I. E as cidades do Império conheceram, nessa época, uma fase de grande desenvolvimento, como constituem exemplos as cidades de Óstia e Constantinopla.
O que devemos acentuar, de modo frisante, é a enorme distância que existia entre ricos e pobres. Nunca havia esta distância atingido tão grandes proporções. Donde a crise econômica muito grave na parte ocidental do Império. O que explica a tragicidade das palavras de Salviano, denunciando a degradação moral da sociedade do seu tempo e chegando a elogiar a moral e o comportamento dos povos bárbaros.
Tais elites, contudo, já não eram constituídas de modo igual ao dos séculos passados. Seus integrantes eram, agora, bem distintos dos antigos senadores da época do Principado. Delas participavam provinciais e elementos provindos diretamente das forças armadas, dado o prestígio crescente da classe dos eqüestres. E pouca ligação existia entre os novos elementos e a cidade de Roma. Muitos deles nunca ao menos a visitaram. Eram pessoas ligadas, de modo essencial, às províncias onde haviam nascido e atuado. Todos, no entanto, interessados em preservar o modo de vida herdado do passado. Havendo, contudo, novas atitudes e modos de pensar que repercutiam na valorização da pessoa humana, nas crenças religiosas, nos gostos, nas próprias vestimentas e na arte nova que então surgia.
As províncias marcavam, afinal, sua presença no conjunto do Império. De um certo modo poderemos dizer que se emancipavam, libertando-se da tutela dos itálicos.
Diremos, ainda, que a civilização romana do século IV foi mais liberal que em outros tempos, no sentido de propiciar a elementos provindos das classes mais baixas da sociedade a ascensão social, expressa pela participação dos mesmos na vida pública, tanto na área da administração como na eclesiástica, nos comandos militares, no campo das letras e das artes. Persistiam, no entanto, em todos eles, o sentimento de pertencerem ao Império e o da necessidade de preservá-lo.
Dentre as modificações então ocorridas deve ser considerada a mais importante, a da propagação do cristianismo, tornado religião oficial do Império a partir de Teodósio. Pois com ele veio a preocupação pelo sobrenatural, através da aceitação da idéia da existência de um Deus Todo Poderoso, capaz de interferir no mundo dos homens, impondo-lhes Sua vontade. Um Deus, contudo, de todos os homens, ricos ou humildes. E também a crença nos demônios, nas forças do mal, tentando induzir ao erro as pessoas sobre as quais atuassem. Era a vitória do mundo invisível sobre o material. Um mundo que a todos envolvia e somente poderia ser compreendido e enfrentado com o auxílio da nova religião que ensinava aos mortais um seguro e adequado modo de convivência com as suas entidades. E isso se traduz, principalmente, nas manifestações artísticas da época, nas quais a presença de cenas e figuras ligadas ao cristianismo é dominante.
De tudo isto resulta uma preocupação exagerada pelas questões teológicas, apaixonando elite e multidão. Desde que todos por elas se interessavam, buscando, desesperadamente, a salvação de si mesmos após a morte física. Pois que o racionalismo grego se desprestigiara, a despeito da atuação brilhante dos gnósticos e dos neoplatônicos, da ação de um prodigioso pensador como Plotino ou da energia e disposição de Juliano, o mais culto dos últimos imperadores de Roma, tentando reviver o paganismo e a filosofia helênica.
No século IV, no Ocidente, a Igreja triunfara e se tornara, na prática, a dirigente das mentalidades no Império. A atuação de Ambrósio mostra bem isto. Bem como a tese fundamental da Cidade de Deus, de Santo Agostinho. E acelerara-se o ritmo das transformações que estavam a ocorrer, tendo ao seu lado, neste papel, a presença cada vez maior e mais ativa dos elementos germanos infiltrados na sociedade romana, ocupando altos postos na administração civil e no comando das forças armadas, tais como Estilicão, Argobasto ou Ricimero.
Os germanos, contudo, assimilando o romanismo, não o conservaram na sua integridade original. Foram, em verdade, preparando o caminho para os novos tempos que se acercavam e iriam transformar a civilização do Ocidente numa civilização que continuaria romana em suas bases, possuindo, no entanto, características diversas, em função da cultura dos povos habitantes das várias províncias que constituíram o Império do Ocidente. E a principal evidência desse processo foi o surgimento, na época, do latim vulgar, utilizado como língua franca, principalmente pelos proprietários, cobradores de impostos e pelos bispos, do qual se iriam originar línguas do mesmo distintas, dele contudo derivadas: as línguas neolatinas.
Quanto à ordem econômica, será a real incapacidade da maioria dos habitantes do Ocidente para o pagamento dos impostos que lhes eram, extorsivamente, cobrados que irá não só determinar o surgimento da agitação nas zonas rurais das Gálias e Hispânia, com as bagaudes, como também o fortalecimento do poder dos grandes proprietários, os potentiores, a aparição do sistema da servidão, por intermédio do colonato, a debilitação dos imperadores e, após a chegada maciça dos germanos, a fragmentação do Império em reinos que procurarão, a despeito de toda uma série de fatores, manter o que poderíamos chamar, com propriedade, de uma tardia civilização romana.
Quanto ao Oriente, entre a morte de Teodósio (395) e a ascensão de Heráclio ao poder (610), pouco mais de dois séculos se passaram. Durante este período, caracterizou-se o Império Romano do Oriente como o fiel depositário e defensor da cultura e civilização greco-romana, à qual se integrara, desde Constantino, o cristianismo.
Empenharam-se, por todos os modos, seus dirigentes, por este motivo, e de modo especial Justiniano, em preservar esses valores. Em verdade, contudo, já estava ali a formar-se uma nova civilização: a bizantina. Convindo assinalar, então, o fato de, convictos de serem os continuadores do antigo Império Romano unificado e cristão, incapazes, porém, por várias circunstâncias, de enxergar as transformações que, ao seu redor, estavam a ocorrer, continuaram os que o habitavam a denominar-se romanos e a assim considerar-se, sem poderem avaliar que as características novas que assumiam não mais poderiam, em verdade, justificar a continuidade no uso da expressão.
Esta é a Antiguidade Tardia, época com identidade própria e de importância decisiva para a exata compreensão dos tempos medievais e da história do Ocidente.
Por OLIVEIRA, W. A Antiguidade Tardia. São Paulo: 1990 (p.63-68)
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