A Igreja

O NOVO ESPAÇO PÚBLICO

A ascensão da dominação do homem celibatário na Igreja cristã nos leva ao reinado de Constantino e além. O que as diversas for­mas de celibato têm em comum desde o primeiro período é a von­tade de criar um espaço' 'público" firmemente traçado no seio da vaga federação de famílias que compõem a comunidade cristã. Um espaço "público" criado no próprio corpo dos dirigentes. De qual­quer modo que se estabeleça, o celibato significa para a comuni­dade cristã a supressão do que ela considera uma das fontes mais íntimas de motivações e a que desmantela os laços sociais mais pri­vados dos quais dependem a continuidade e a coesão de uma so­ciedade normal. Tem como efeito situar a sociedade na Igreja, di­rigida e representada em público por homens celibatários, peran­te a sociedade "do mundo", na qual imperam o orgulho dos homens de "coração dividido", a ambição e as solidariedades te­nazes de família e parentesco.

Tal celibato freqüentemente assume a forma da abstinência sexual dos cônjuges. Em geral é adotado em idade madura e mais tarde será imposto aos padres com mais de trinta anos. É sob essa forma que o celibato se torna a norma esperada do clero citadino médio no período da Antiguidade tardia. Não se trata de uma re­núncia excessivamente impressionante. Os homens da Antiguida­de consideram a energia sexual como uma substância volátil, rapi­damente esgotada nos "calores" da juventude. As duras realida­des da mortalidade numa sociedade antiga asseguram uma reserva permanente de viúvos sérios, disponíveis desde o início da idade madura e livres para se entregar, "esgotada toda paixão", às ale­grias mais públicas do cargo clerical. Assim, o celibato designa de modo inequívoco a existência de uma classe de pessoas que ocu­pa o centro da vida' 'pública" da Igreja, precisamente porque se subtraíram em definitivo ao que é considerado como o mais pri­vado na vida do leigo médio "no mundo". Inspirado por uma Iembrança errónea do Pastor de Hermas, um século mais tarde Orígc­nes compara o homem' 'casado" - e não mais simplesmente o homem rico - à madeira sólida e estéril ao redor da qual se en­rosca a vinha da Igreja.

No sentido estrito da entrada num estado de abstinência se­xual permanente, o celibato não é habitual aos homens públicos do mundo romano. Em Milão, pensando em si mesmo como um homem no vigor da idade, cuja posição social naturalmente lhe dá acesso à satisfação sexual, Agostinho admite que, não obstante a enorme influência e o acesso aos grandes, que inveja em Ambró­si o, o bispo cristão, "seu estado de celibatário parecia a coisa mais dura de suportar' '. Para que homens ativos venham a criar um es­paço' 'público" em seu próprio corpo renunciando ao casamento, esse espaço deve ser concreto e até atraente, e a necessidade que a comunidade sente de um espaço público definido de maneira tão caracterizada na pessoa de seus dirigentes deve realmente ser muito forte.

A IGREJA NO PODER
Certamente foi o caso da Igreja cristã do século III. Por volta do ano 300 de nossa era, a Igreja torna-se uma instituição à qual só falta essa denominação. Em 248, a Igreja de Roma dispõe de um clero de 155 membros e mantém cerca de 1500 viúvas e po­bres. Tal grupo, independentemente dos religiosos regulares, é tão numeroso como a mais importante corporação da cidade. É na verdade um grupo enorme numa cidade em que as agremiações cul­turais e as confrarias funerárias contam seus membros às dúzias. Mais revelador, talvez, o papa Cornélio apresenta essas estatísticas impressionantes como uma das justificações de seu direito a ser con­siderado como o bispo da cidade. Cipriano, seu partidário, tem o cuidado de sublinhar "a delicadeza moral da castidade virginal" de Cornélio, que se repugna de conservar um alto cargo. Estando em jogo em cada grande cidade do Império responsabilidades e recursos tão impressionantes, o celibato e a linguagem do poder devem se aliar ostensivamente na cena mais vasta da vida urbana romana. Porque são celibatários e por isso "desligados do mun­do' " no final do século III os bispos cristãos e o clero tornam-se, aos olhos de seus admiradores, uma elite igual em prestígio às e1ites tradicionais dos notáveis citadinos.

É a essa Igreja conduzida com firmeza por rais dirigentes, que a conversão do imperador Constantino em 312 confere uma posição inteiramente pública, que se revelará decisiva e irreversível ao longo do século IV. Mas primeiro voltemos atrás para considerar a transformação das elites cívicas e de suas cidades ao longo do pe­ríodo precedente, que culmina durante os longos reinados de Constantino e seus filhos.

UMA NOBREZA A SERVIÇO
O Império que Constantino governa como cristão declarado de 312 a 337 difere profundamente da sociedade citadina "clássica" da época antonina. A realidade esmagadora de um império de porte mundial, sensível desde as origens, torna-se sensível de­mais às cidades. Depois de 230, os consideráveis aumentos dos im­postos são necessários para manter a unidade e a defesa do Impé­rio. Nas economias da Antiguidade, aumentos representavam muito mais que um aumento da proporção do excedente do qual o governo imperial se apropriava. A classe superior deve ser reestru­turada para obter livre acesso a tal excedente. As antigas exonerações locais e a velha repugnância em comprometer a posição dos ricos com impostos diretos são rejeitadas. A intervenção direta nos negócios das cidades torna-se a norma para a administração imperial.

Esses impostos no entanto não significam o desaparecimento das cidades e menos ainda a eliminação das elites tradicionais. São essas elites que mudam de estruturas. Agora os que desejam do­minar sua sociedade o fazem acrescentando à sua posição anterior de notáveis locais novos papéis de servos do imperador. Sustenta­dos pelas imensas vantagens do acesso à administração imperial, esses homens se consideram doravante muito menos como “concidadãos" que rivalizam num círculo de iguais, segundo a velha tradição, para alimentar' 'sua dulcíssima cidade”. São os poten­tes, os poderosos que controlam a cidade em nome do imperador distante, de modo espalhafatoso e bem estranho ao comportamento reservado do grupo dos pares "bem-nascidos". Notamos na época antonina as enormes pressões exereidas sobre o cidadão notável mé­dio pela exigência de uma cultura dividida e sobretudo de uma moral da distância social. Atribuindo tanta importância às dife­renças intransponíveis entre sua classe e qualquer outra, os "bem ­nascidos" da época antonina eram capazes de se considerar como parte do grupo de membros intercambiáveis de uma elite. No de­correr dos séculos II e III essa exigência efetivamente mascarara as desigualdades crescentes no interior das classes superiores e a fran­ca dominação, no interior da classe superior, daqueles cuja posição dependia do serviço do imperador. No final do século III, entre­tanto, esses fatos são aceitos como o esquema de base segundo o qual a sociedade romana deve se organizar para sobreviver. O Im­pério Romano tardio é uma sociedade dominada explicitamente por uma aliança entre os servidores do imperador e os grandes proprie­tários de terras que colaboram para controlar os camponeses sujei­tos ao imposto e para impor a lei e a ordem nas cidades. A franca dominação de alguns à custa de seus pares' 'bem-nascidos" é um fato estabelecido sem ambigüidade pelos potentes dos reinados de Constantino e seus sucessores. Os códigos de conduta do homem público mudam de maneira espetacular. Visto por um moderado que gosta de se lembrar dos velhos códigos, o homem público, o potem, desabrocha com indecência. A veste discreta e uniforme da época clássica, comum a todos os membros das classes superio­res - a toga de harmonioso drapeado, símbolo da dominação in­conteste de uma classe de nobties [nobres] intercambiáveis -, é abandonada em favor de uma roupa concebida como uma herál­dica, criada para expressar as divisões hierárquicas no sêio das clas­ses superiores. As novas indumentárias se escalonam da ondulante veste de seda dos senadores e da roupa, próxima do uniforme, dos servidores do imperador, bordada de motivos que indicam sua exaca posição oficial. até a túnica voluntariamente anonima que de modo não menos explícito usa o bispo cristão, Antes era o corpo que por seu porte, incluída a nudez no interior dos banhos públicos, me­lhor simbolizava a participação natural numa classe específica. Do­ravante o corpo reflete o nível social de seu proprietário, sob a for­ma de vestes pesadas e adequadas em que cada ornamento traduz uma posição na hierarquia que culmina na corte imperial.

Quanto à cidade, na maioria das regiões do Império, as con­dições económicas impedem que se torne um lugar de expansão, um cenário no qual os impulsos competitivos dos notáveis possam se expressar sob forma de edifícios, espetáculos e outras suuruosas prodigalidades públicas. Entretanto tais aspectos não desaparecem. São mantidos, e muitas vezes esplendidamente, nas grandes resi­dências imperiais - Trier, Sirmium e sobretudo Constantinopla - e nas grandes cidades como Roma, Cartago, Antióquia, Ale­xandria e Éfeso. Mas o esplendor urbano agora é mantido pelo im­perador e, em seu nome, pelos potentes. Depois de ter sido a cena deslumbrante e autónoma em que se desdobravam as energias lo­cais, a cidade torna-se um microcosmo da ordem e da segurança do Império em seu conjunto.

A CIDADE OU O PALÁCIO
A cidade do século IV não constitui um pálido reflexo de seu passado clássico. Grande parte da decoração pública foi cuidado­samente mantida, inclusive as imponentes fachadas dos velhos tem­plos pagãos. Em numerosos centros urbanos o governo imperial con­tinua a prover distribuições de alimentos - limitadas, como nos séculos precedentes, aos cidadãos, independentemente de sua ri­queza ou pobreza pessoais. A mesma autoridade mantém vastos banhos públicos em todas as grandes cidades. O Circo, o teatro - muitas vezes remanejado nessa época para receber espetáculos ainda mais grandiosos, como batalhas navais e caça a feras - e o célebre hipódromo de Constantinopla substituem os espaços anti­gos tradicionalmente associados à idolatria pagã, lugares nos quais a lealdade da cidade para com seus dirigentes e sua própria sobre­vivência se expressa de modo solene, As associações culturais, que fazem questão de que as cerimónias sérias se realizem conforme o ritual, reúnem-se para assistir a elas com tanto fervor como anti­gamente, por ocasião das cerimônias religiosas nos templos pagãos. Em Trier, em Cartago ou em Roma, três cidades ameaçadas e mas­sacradas pelos bárbaros ao longo do século v, o povo permanecê convencido de que a realização, dentro das normas, dos jogos sole­nes do Circo assegura a sobrevivência da cidade, graças a seu mis­terioso poder oculto.

Os potentes aparecem no foro com menor freqüência. Ten­dem agora a dominar 'sua" cidade de seus palácios opulentos e de suas villas, um pouco afastados do centro tradicional da vida pública. Palácios e villas não são lugares de reriro, mas, antes, o foro que se tornou privado. As peças reservadas dos apartamentos das mulheres têm ao lado grandes salas para as recepções de cerimônia, e muitas vezes possuem numa extremidade uma abside para os pequenos banquetes. Assembléias solenes do grupo de inicia­dos que dirige a cidade, essas recepções diferem muito dos magní­ficos banquetes cívicos abertos sem discriminação aos clientes, aos libertos, aos amigos e concidadãos, como aqueles em cujo decorrer Plínio, o Jovem, três séculos antes, prodigalizava aos amigos e li­bertos suas reservas de vinho medíocre. Muitas obras-primas da es­tatuária clássica que outrora se erguiam ao redor ou no interior do foro instalaram-se sem incidente nos vastos pátios de entrada des­ses palácios. Indicam o direito dos potentes de tomar e preservar, segundo suas próprias condições, o melhor da cidade clássica. Será necessário convencer esses homens e seus subordinados de que o bispo cristão e sua comunidade religiosa em rápido crescimento também podem oferecer um espetáculo de um mundo urbano, res­taurado e mantido graças ao exercício sincero de seú poder e do poder de seu senhor, o imperador. Não é certo que, ao longo do século IV, a nova Igreja cristã imporá à cidade antiga suas própnas noções de comunidade na última cena cuidadosamente restaura­da de sua longa existência.

UMA IGREJA RICA E MARGINAL
Na nova cena urbana o bispo cristão e sua Igreja não passam de um elemento. Agora pode-se construir numerosas e magníficas igrejas graças às doações imperiais e segundo o novo modelo im­perial, a basi!ica, edifício muito semelhante à "sala de audiência" do imperador e ao trono do juízo de Deus, o imperador invisível da cidade. O clero pode se beneficiar com exonerações e alocações de alimento a título de privilégio. O bispo tem acesso aos governa­dores e aos potentes; intervém sobretudo em favor dos pobres e oprimidos. Agostinho nota, porém, que muitas vezes o fazem es­perar na antecâmara dos grandes e que gente mais importante en­tra antes dele. Por impressionante que pareça, a Igreja do século IV continua marginal em relação ao saecu!um, a um "mundo" cujas estruturas principais evoluem sob as fortes pressões do poder e da necessidade de segurança e hierarquia. O cristianismo é peri­férico a esse saecu!um, mesmo que agora seja a fé nominal dos po­derosos.

A comunidade cristã permanece unida através de uma mira­gem muito particular: a da solidariedade, que doravante pode exprimir-se abertamente no decorrer de cerimônias na basílica do bispo. Assim, conquanto não constitua realmente uma 'assembléia dos santos", a basílica cristã é um lugar do qual estão francamente ausentes as estruturas do saeculum. A hierarquia do século é me­nos nítida na basílica do que nas ruas da cidade. Apesar da nova importância do clero, apesar da cuidadosa segregação de homens e mulheres - o mais das vezes apartados de um lado e outro das grandes naves da basílica -, apesar da consumada habilidade dos poderosos para destacarem-se da massa obscura dos inferiores com suas espetaculares vestes domingueiras bordadas com cenas dos Evan­gelhos, as basílicas cristãs permanecem uma reunião de homens e mulheres e pessoas de todas as classes, igualmente expostos, sob a tribuna do bispo na abside, ao olhar inquisidor de Deus. Sabe­mos que João Crisóstomo, quando estava em Constantinopla, tornou-se deliciosamente impopular graças a seu hábito de acom­panhar com os olhos cada um dos grandes proprietários de terras e os cortesãos que deambulavam dentro e fora da basílica durante os sermões; seu olhar penetrante os designava publicamente como os autores dos pecados e das injustiças sociais que ele denunciava do alto de sua tribuna. É a velha "liberdade de expressão" do fi­lósofo, crítico dos grandes, que doravante pesa sobre toda uma co­munidade urbana, reunida por seu clero na "sala de audiência" de Deus. Uma comunidade conduzida dessa maneira e por tais pes­soas não podia deixar de tentar transformar a cidade antiga numa co,?unidade moldada segundo uma imagem, insólita, que lhe fosse propria.

Ao olhar de seus dirigentes, a Igreja é uma nova comunidade pubhca unida pela extraordinária importância atribuída a três temas, delimitados com uma acuidade até então inexistente no mundo antigo: o pecado, a pobreza, a morte. Esses três sombrios concei­tos, aparentemente abstratos e estreitamente interligados, habitam o horizonte do cristão da Antiguidade tardia. Apenas afrontando­os de maneira definida já sem equívocos pelo clero é que o ho­mem e a mulher comuns poderão ganhar a "cidade de Deus", cujas delícias e prazeres francamente sensuais os mosaicos cristãos da Antiguidade tardia evocam. Neles os cristãos dessa época con­templam o rosto eternamente belo e tranqüilo dos santos, dos ho­mens e mulheres agradáveis a Deus, que os colocou não no "além" asséptico e etéreo, nascido da imaginação moderna, mas no antigo "paraíso das delícias", "um lugar fertilizado pelas águas refres­cantes e de onde desapareceram a dor, o sofrimento e as lágrimas".

O PECADO
A basílica cristã abriga uma assembléia de pecadores iguais em sua necessidade da misericórdia de Deus. As fronteiras mais firmes no interior do grupo são aquelas que o pecado traça. Não se deve subestimar o elemento de novidade de uma tal definição da comunidade. Questões tão profundameme íntimas como os mo­res [costumes] sexuais ou as opiniões pessoais sobre o dogma cristão podem ser julgadas pelos membros do clero e justificar um ato público e vibrante de exclusão da Igreja cristã. Um sistema inteira­mente público de penitência impera nesse período. A excomunhão acarreta a exclusão pública da eucaristia e seus efeitos só podem ser revogados por um ato igualmente público de reconciliação com o bispo. Assim, na basílica do século IV, a solidariedade pública es­tá normalmente ligada à conseqüência do pecado e ao "crime por pensamento" de heresia, com uma miúdez que desaparecerá nas épocas posteriores. O acesso à eucaristia implica uma série de atos plenamente visíveis de separação e adesão. O rebanho dos catecú­menos é expulso do edifício ao iniciar-se a liturgia principal da eu­caristia. A cerimônia começa pelo movimento dos crentes que colocam suas oferendas no altar. Por ocasião da solene subida dos fiéis para participarem do "alimento místico", evidencia-se a hierarquia estabelecida no grupo cristão: os bispos e o clero são os primeiros a se adiantar, seguidos pelos fiéis castos dos dois sexos; os últimos de todos são os leigos casados. Num espaço especialmente desig­nado no fundo da basílica, muito longe da abside, ficam os "pe­nitentes", cujos pecados os excluíram dos atos de participação tão concretos. Moralmente humilhados, vestidos com mais simplici­dade do que sua posição autoriza e com a barba por fazer, espe­ram, sob o olhar da assistência, o gesto público de reconciliação de seu bispo. Às vezes a hierarquia do saeculum e a igualdade pe­rante o pecado se chocam, e as conseqüências são memoráveis: em Cesaréia, Basílio recusa as oferendas do imperador herético Valen­te; em Milão, Ambrósio coloca o imperador Teodósio no meio dos penitentes - o senhor do mundo despojado de seu manto e do diadema - por haver ordenado o massacre da população de Tes­salônica.

A POBREZA
Os pobres também chamam a atenção. Estropiados, indigen­tes, vagabundos e imigrantes de campos muitas vezes assolados, aglomeram-se às portas da basílica e dormem sob os pórticos que rodeiam seus pátios internos. Sempre se fala dos pobres no plural, em termos que não têm mais relação nenhuma com a classificação "cívica" precedente da sociedade dividida em cidadãos e não cidadãos. São o anônimo rebotalho humano da economia antiga. Tal anonimato precisamente os transforma em remédio para os pe­cados dos membros mais afortunados da comunidade cristã. Pois a esmola aos pobres constitui uma parte essencial da longa repara­ção dos penitentes e o remédio normal para os pecados' 'veniais", como a preguiça e os pensamentos impuros e fúteis, que não de­mandam penitência pública.

A condição miserável dos pobres recebe pesada carga de sig­nificados religiosos. Eles representam o estado do pecador que diariamente precisa do perdão de Deus. A equação simbólica entre o pobre e o pecador miserável e abandonado por Deus retoma com Insistência na linguagem dos Salmos que formam a coluna verte­bral da literatura da Igreja e especialmente das cerimônias penitenciais. Tal simbolismo era indispensável para despertar a empatia graças à qual o citadino, habituado a ver essas desagradáveis ruínas humanas como exceções ameaçadoras para a regra da antiga co­munidade cívica de cidadãos, concede ao pobre a privilegiada po­sição de símbolo da miserável condição da humanidade da qual participa seu eu que é pecador. A esmola torna-se uma analogia poderosa da relação de Deus com o homem pecador. Os gemidos que os mendigos dirigem aos fiéis que entram na basílica para re­zar preludiam os apelos desesperados dos fiéis à misericórdia divi­na. "Quando estiveres cansado de rezar e não receber", diz João Crisóstomo, "pensa no número de vezes em que escutaste um po­bre pedir e não lhe deste ouvidos." "Não é erguendo as mãos [na atitude de rezar do orans suplicante] que serás ouvido. Estende a mão não para o Céu, mas para o pobre."

O anominato do pobre efetivamente ajuda a manter o senti­mento da solidariedade indiferenciada dos pecadores na Igreja. O ideal cívico, segundo o qual os grandes são obrigados a dar generosamente, desempenha um papel atuante na Igreja cristã, pois im­plica também que as prodigalidades estabeleçam a evidência do direito dos poderosos de controlarem sua comunidade. Afinal, pou­cas basílicas teriam sido construídas sem tal retorno. As mais espetaculares são oferecidas pelo imperador ou pelos dirigentes do cle­ro; são os atos de homens muito desejosos de provar à maneira an­tiga que têm o direito de "alimentar" e portanto de controlar as congregações cristãs que ali se reúnem. Os nomes dos que levam as oferendas ao altar são lidos em voz alta durante as brações sole­nes que precedem a eucatistia e muitas vezes aclamados. como na bela época da munificência cívica. Graças à noção de pecado, pode-se esperar reduzir essa audaciosa piràmide de patronato e dependência.

Os bispos, portanto, insistem no fato de que cada membro da co­munidade cristã, homem ou mulher, é pecador e que toda esmo­la, por modesta que seja, é bem-vinda para os verdadeiros pobres. Por conseguinte, o aspecto ostensivo do patronato dos grandes, que se expressa em pedras, mosaicos, tapeçarias de seda e candelabros reluzentes, de cima para baixo à maneira da antiga munificéncia cívica, é velado pela garoa leve mas persistente das esmolas cotidianas do cristão pecador aos desgraçados anónimos.

AS MULHERES RICAS
Com efeito, a miséria real dos pobres os torna clientes ideais para um grupo desejoso de evitar as tensões causadas por relações de patronato com uma verdadeira clientela. De todas as formas de patronato às quais o clero notoriamente foi exposto durante mui­to tempo a mais perigosa e aviltante aos olhos dos pagãos é a es­treita dependência com relação a mulheres ricas. Desde Cipriano, a pobreza e o papel das mulheres influentes na Igreja são preocu­pações estreitamente ligadas. A fortuna de numerosas virgens, viúvas e diaconisas cria laços de patronato e de obrigação humilhante en­tre o clero e as mulheres que, no final do século IV, são membros dirigentes da aristocracia senatorial. Tal riqueza e o patronato que lhe é associado tocarão de modo muito mais certo os pobres, que, como todos sabem, não podem retribuir prestando serviço, e sua clientela não vale nada. Ademais, códigos estritos de segregação entre os sexos vetaram o acesso das mulheres ao poder público dentro da Igreja. Toda infração a esses códigos provoca um escândalo que se procura alimentar desde que desponte a ameaça de mulheres virem a exercer influência na Igreja graças a sua fortuna, cultura ou coragem superior. Esses tabus, no entanto, não se aplicam ao pa­pel público de uma mulher que socorre pobres farrapos humanos. Como protetoras dos pobres, através da esmola e dos cuidados com os doentes e os estrangeiros nos hospitais, as mulheres abastadas desfrutam de uma verdadeira posição pública nas cidades da região mediterrânea, posição excessivamente rara nos outros aspec­tos da vida pública dos poderosos sob o Império tardio, vida hierarquizada e dominada pelos homens.

O BISPO
Patrono dos pobres e protetor das mulheres influentes, cujas energias e fortuna coloca a serviço da Igreja, diretor espiritual de vastos grupos de viúvas e virgens, o bispo adquire importância na cidade do século IV; deliberadamente se associa em público a es­sas categorias de pessoas cuja existência fora ignorada pelo antigo modelo "cívico" dos notáveis urbanos. Segundo os termos dos Cánones de santo Atanásio: "Um bispo que ama os pobres é rico, e a cidade e sua circunscrição o honrarão' '. Dificilmente se podia desejar um contraste mais agudo com a imagem "cívica" que os notáveis ostentavam dois séculos antes.

A comunidade cristã que cresce paralela à cidade antiga, on­de está longe de ser dominante no século IV, criou, todavia, atra­vés de suas cerimônias públicas, seu tipo pessoal de uma nova for­ma de espaço público, dominado com segurança por um novo ti­po de personagens públicos: apoiados com firmeza por mulheres celibatárias, os bispos celibatários fundamentam seu prestígio so­bre sua capacidade de "alimentar" uma nova categoria de pessoas, a categoria anônima e profundamente anticívica dos pobres sem raízes e abandonados. No século V, as cidades do Mediterrâneo pas­sam por novas crises. As gerações que precedem e seguem imediatamente o ano 400 conhecem importantes catástrofes urbanas, co­mo o saque de Roma pelos visigodos em 410, e o surgimento de bispos influentes: Ambrósio em Milão, Agostinho em Hipona, o papa Leão em Roma, João Crisóstomo em Constantinopla e o im­placável Teófilo em Alexandria. A questão que se coloca para tais gerações é a de saber como a fachada restaurada da antiga cidade romana corre o risco de desmoronar, deixando o bispo cristão, mu­nido por sua própria definição' 'não cívica" da comunidade, livre para intervir como o único ator representarivo da vida urbana nas margens do Mediterrâneo.

O MORTE
No exterior das cidades estende-se a solidariedade mais tranqüila e definitiva dos túmulos cristãos. Em qualquer museu mo­derno, passar das salas pagãs às cristãs equivale a penetrar num mun­do de claros significados gerais. A diversidade pouco clara dos sarcófagos da classe social superior dos séculos II e III - os eruditos não acabaram de interrogá-los - deixa lugar a um reperrório de cenas facilmente reconhecíveis, inseriras, com poucas variações, em rodas as tumbas cristãs. A surpreendente variedade de inscrições funerárias pagãs e da arre funerária pagã testemunha uma socie­dade pouca rica em opiniões comuns referentes à morre e ao além. A tumba era então um lugar privado porém privilegiado. A pes­soa morta, sustentada por seus grupos tradicionais - a família, os pares, os associados funerários e, no caso dos grandes, a própria cidade -, devia, em sua linguagem peculiar, explicar aos vivos o sentido de sua morte. Daí a extraordinária proliferação de associa­ções funerárias entre os humildes, o papel crucial do mausoléu de família entre os abastados e a bizarra diversidade das declarações do defunto ou a propósito do defumo. Pensamos num notável grego, Opramoas, que cobriu seu túmulo com cartas de governadores ro­manos elogiando-lhe as generosidades cívicas, e na mensagem de um humilde pedreiro que pede desculpa pela qualidade dos ver­sos de seu epitáfio! Esses túmulos constituem a alegria dos leitores de epitáfios gregos e romanos, mas o desespero do historiador das religiões que gostaria de retirar deles uma doutrina coerente sobre o além. No mundo pagão dos séculos II e III nenhuma comunida­de religiosa amplamente difundida interferiu para sufocar tantas vozes privadas e tão diferentes, surgidas do além-túmulo.

Com a ascensão da cristandade, a Igreja se introduz entre o indivíduo, a família e a cidade. O clero afirma ser o grupo mais capaz de preservar a memória dos mortos. Uma sólida doutrina cristã sobre o além, pregada pelo clero, esclarece os vivos sobre o sentido da morte do defunto. As celebrações tradicionais no cemi­tério permanecem habituais, porém já não bastam. Oferendas, no momento da eucaristia, garantem que durante as orações o nome dos mortos será lembrado em toda a comunidade cristã apresenta­da como a mais vasta parentela artificial do crente. Festas anuais em memória dos mortos e em benefício de suas almas - ofereci­das, como sempre, em favor dos pobres (esse eterno pretexto) ­desenrolam-se nos átrios das basílicas e mesmo em seu interior. Pois a Igreja, e não mais a cidade, celebra a glória dos desaparecidos. E, uma vez introduzida no recinto da basílica, a democracia do pecado estende-se para além do túmulo de modo inconcebível pa­ra os pagãos. O clero pode recusar as oferendas feitas em nome de membros não converridos da família, de pecadores não arrependi­dos e de suicidas.

Uma nova acepção da expressão 'terra consagrada" persisten­temente atrai os morros à sombra das basílicas. Grandes cemité­tios cristãos, administrados pelo clero, existiram em Roma desde o início do século III. Comportavam galerias subterrâneas cuidadosamente construídas c concebidas de tal modo que grande núme­ro de pobres encontravam sepultura. 1alhados em nichos super­postos nas catacumbas, tais túmulos constituem ainda hoje os tes­temunhos silenciosos da determinaçãn do clero de agir como pa­trono dos pobres. Até na morte os pobres são mobilizados: as fileiras de túmulos humildes situadas a uma distância decente do mauso­léu dos ricos testemunham a solicitucie e a solidariedade da comu­nidade cristã.

No final do século IV, a difusão da prática da depositio ad sanetos - o privilégio de ser enterrado perto do túmulo dos már­tires - garante que, se a comunidade cristã exigia uma hierarquia de estima entre seus membros, o clero, que controlava o acesso a esses lugares consagrados, erigia-se em árbitro de tal hierarquia. Virgens, monges e membros do clero são agrupados mais perto de numerosas tumbas de mártires nos cemitérios de Roma, Milão e outroS lugares. Essas novas elites da Igreja urbana são seguidas de leigos humildes, admitidos ali em recompensa de sua boa condu­ta cristã. "Probiliano [ ... ] a Hilaritas, uma mulher cuja castidade e bondade natural eram conhecidas de todos os vizinhos [ ... ]. Em minha ausência ela permaneceu casta durante oito anos; por isso repousa neste lugar santo."

Integrados de modo bem visível nas Igrejas cristãs, os mortos são imperceptivelmente retirados de sua cidade. A fim de assegu­rar o repouso e a permanente reputação de seus defuntos, a famí­lia cristã doravante trata apenas com o clero. As formas cívicas de testemunho passam a segundo plano. É só nas pequenas cidades italianas tradicionais que o aniversário de um personagem público ainda constitui ocasião para um grande banquete cívico para os notáveis e seus concidadãos. No século IV a corte imperial celebra publicamente o luto do "primeiro cidadão", Petrônio Probo, o maior dos potentes de Roma. Mas, em seguida, sua memória é con­fiada à tumba de são Pedro. Um esplêndido sarcófago de mármo­re proclama a certeza da nova intimidade de Probo com Cristo na COrte celeste. O grande homem repousou a alguns metros de são Pedro até que, no século xv, alguns operários encontram seu sar­cófago cheio dos fios de ouro com os quais fora tecida sua veste derradeira. Quanto ao clero e aos cristãos mortos santamente, os mosaicos os mostram longe da cidade antiga, caminhando sobre a relva verde do paraíso de Deus, sob as palmeiras orientais, cerca­dos de um grupo de pares de modo nenhum clássico:


E agora [ele vive] entre os patriarcas,
entre os profetas que claramente vêem o
futuro. na companhia dos apóstolos
e dos mártires, homens de grande poder.


por BROWN, P. "Antiguidade Tardia" in ARIES, P. & DUBY, G. (orgs.) História da Vida Privada. vol. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1989.



Comentário por Carlos Almir Matias

Peter Brown procura analizar as diversas formas de celibato, principalmente o celibato na igreja cristã. A primeira coisa que podemos perceber é que tanto os ´´bens nascidos´´ da epoca antonina quanto o homem celibatário da igreja no reinado de Constantino possuem o mesmo prestigio na sociedade.Gerealmente o celibato assume a forma de abstinência sexual dos conjûges e é adotado em idade madura quando todos os calores da juventude estão esgotados.Para um homem em idade ativa ,cuja posição social lhe de acesso ao prazer sexual é muito dificil manter sua condição para não dizer insuportável.

No século II a igreja ja é uma instituição bem estruturada e para os bispos cristãos tererm o mesmo prestigio das elites tradicionais acabam adotando o celibato.A visão que os admiradores tem do homem celibatário é a de um homem desligado do mundo,uma pessoa sabia e equilibrada.

O império de Constantino de 312 a 337 é totalmente diferente da sociedade da epoca antonina,desde 230 há um grande aumento de impostos que são necessários para manter a unidade e segurança do império ;mais do que o excedente que o governo se apropria ocorre uma reestruturação das classes superiores na qual os notáveis locais acresentam também a posição de servos do imperador.São os chamados ´´potentes´´que controlam a cidade em nome do imperador,mas não como na época antonina pois dentro da própria classe superior há desigualdades.

Então podemos concluir que:

O Império Romano tardio é uma sociedade dominada explicitamente por uma aliança entre servidores do imperador e os grandes proprietários de terra que colaboram para controlar os camponeses sujeitos aos impostos e para impor a lei e a ordem nas cidades (Brown, 1989, pag 262)

Percebe-se também uma mudança no comportamento do homem público, a veste discreta da época classica é substituida pela toga cheia de ornamentos que refletem a posição social do individuo. Brown nos lembra que a cidade do século IV ainda é muito parecida com a cidade do periodo clássico,ainda se tem os banhos públicos, o Circo, o teatro e os grandiosos espetáculos de feras no hipódromo de Constantinopla.

Na nova cena urbana aparecem o bispo e a igreja que apesar de ter prédios tão grandiosos quanto a sala de audiência do imperador não passa de mais um elemento na sociedade.O bispo até tem acesso aos potentes mais Agostinho nota que eles sempre são os ultimos a serem recibidospelas autoridades.Mas em contra partida temos o exmplo de João Crisóstomo que quando estava em Constantinopla torno-seimpopular pelo hábito de acompanhar cim os olhos cada um dos grandes proprietários de terras que entravam na igreja,seu olhar penetrante denunciava seus pecados e suas injustiças.

Pecado, pobreza e morte são os três conceitos que habitam a mente do cristão da Antiguidade Tardia, a basilica é o local de pecadores iguais em necessidade de misericórdia,mas em contradição percebe-se principalmente na cerimonia de eucaristia uma hieraquização dos cristãos, bispo e clero são os primeiros a se aproximar, depois homens e mulheres castos,em seguida os leigos casados e no fundo da basilica excluidos da celebração ficam os penitentes.Mas as vezes acontece de um grande senhor ser colocado junto aos penitentes como no caso do imperador Teodoro que é colocado junto aos penitentes por Ambrósio pelo fato dele ter ordenado um massacre em Tessalônica.

A pobreza também chama a ateção,geralmente os pobres ficam na porta da basilica para dormir e pedir esmolas,eles representam o estado do pecador e o remédio dos mais afortunados,João Crisóstomo dizia´´Estende a mão,não para o céu, mas para o pobre´´. Quem se presta muito vem a esse papel de proteção dos pobres são as mulheres ricas que no final do século IV são menbros da aristocracia senatorial,a fortuna dessas mulheres criam laços de patronato e de obrigações humilhantes entre o clero.

Como protetoras dos pobres e abastados elas desfrutam de uma verdadeira posição pública na região mediterranea,o mesmo ocorre com os bispos que são vistos como protetores dos pobres e adquire importância pela sua capacidade de alimentar os pobres abandonados.

Encerrando vamos analisar o conceito de morte na Antiguidade Tardia, a sociedade pagã era muito pobre em opiniões referentes a morte e ao além,somente com o cristianismo se tem a noção de preservar a memória dos mortos graças a uma sólida doutrina cristã sobre o além.Outro ponto importante de se analisar é a hierarquização que a comunidade cristã garante aos mortos de grande estima que geralmente são enterrados próximos dos tumulos dos martíres nos cemitérios de Roma.

A principal mudança é que a elite não se preocupa tanto com os códigos morais da época antonina,se preocupa sim em servir o imperador em prol seus próprios interesses,outra mudança é a igreja cristã que apesar de pouco prestigiada vai conseguindo se inserir na sociedade.




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