O Fim do Mundo Clássico

Ocupamo-nos, neste livro, da evolução da sociedade e da cultura. Queremos que o leitor saiba como, quando e porque é que o último período do mundo antigo (de 200 a 700, sensivelmente) difere da civilização “clássica”, porque é que as grandes transformações do período determinaram, por sua vez, a evolução da Europa do Ocidente ao Levante.

O estudo deste período obrigam-nos a observar constantemente as tensões entre as mudanças e a continuidade no característico mundo que cerca o mediterrâneo. Por outro lado, é então que algumas velhas instituições (cuja ausência pareceria quase impossível a um homem, cerca de 250) desaparecem irrevogavelmente. Em 476, cai o império romano do ocidente; em 655, desaparece do oriente o império persa. É fácil escrever acerca do termo do mundo antigo como se tratasse da melancólica história do “declínio e queda”: do fim do império romano, visto do ocidente; do fim do império persa, visto do islã. Espantam-nos, por outro lado, as novidades do começo deste período: por que se torna cristã a Europa, e o oriente se torna muçulmano; por que se mostra dotado de qualidades “contemporâneas” a nova arte abstrata desta época; por que nos surpreendem os escritos de homens como Plotino e Agostinho, quando verificamos que (como se se tratasse de uma estranha sinfonia) tantos europeus sensíveis se consideram “modernos”.

Quando nos ocupamos do ultimo período do mundo antigo, vemo-nos entre a contemplação saudosa das velhas ruínas e as aclamações esperançosas de um mundo novo. O que, muitas vezes, não conseguimos descobrir é o que tinha condições de vida. Como muitos dos que assistiram às mudanças de que tratamos, ora nos sentimos extremamente conservadores, ora histericamente radicais. Um senador romano pede escrever como se ainda vivesse no tempo de Augusto, e ver, ao acordar, como aconteceu a muitos, no fim do século v, que já não há imperadores romanos na itália. Um bispo cristão, por sua vez, pode aplaudir os desastres das invasões bárbaras, por haverem desviado, irre­vogàvelmente, os homens da civilização terrena para a Jerusalém celestial, servido ainda por um latim ou um grego inconscien­temente modelado nos clássicos, e adoptar atitudes, preconceitos e procedimentos que o mostram enraizado em 800 anos de vida mediterrânica.

Como aproveitar um grande passado sem uma modificação aniquiladora; como mudar sem destruir as raízes; e, sobretudo, como proceder, com desconhecidos pelo meio, com homens postos de lado por uma sociedade aristocrática tradicional, pen­samentos privados de expressão por uma cultura rotineira, neces­sidades alheadas de uma religião convencional, estrangeiros de paragens distantes - tais são os problemas que toda a sociedade civilizada se vê obrigada a defrontar. Eram particularmente graves no último período da história antiga. Custa-me a conceber um leitor tão indiferente ao classicismo grego ou romano, tão indiferente à acção do cristianismo, que não deseje ter uma ideia do fim do Mundo Antigo, que não pretenda ver as transformações radicais, de um lado, a vitória sobre o paganismo, do outro. Devo, no entanto, esclarecer que, atendo-me à realidade, considerei, especialmente, a maneira como os homens do fim da Antiguidade enfrentaram o problema da mudança.

O Império Romano abrangia um território extenso e variado. As metamorfoses que experimentou neste período foram nume­rosas e complexas. Vão das classes e das modificações claras, bem documentadas, tais como as repercussões da guerra e do aumento dos impostos sobre a sociedade dos séculos III e IV, as actividades referentes às relações do homem consigo próprio e com o seu próximo. Creio que o leitor não deixará, pois, de concordar comigo se começar a primeira parte deste livro com três capítulos destinados a traçar um esboço das modificações da vida pública do Império, entre 200 e 400, e a analisar, em seguida, as transformações religiosas, menos públicas, mas igual­mente decisivas, levadas a efeito durante o novo período. Fiz o possível, sempre que me pareceu indicado, por relacionar a evolução social e económica com o desenvolvimento religioso do tempo.

Durante este período, o Mediterrâneo e a Mesopotâmia são os principais teatros da mudança. O mundo dos bárbaros do Norte mantém-se periférico a estas áreas. A Bretanha, a Gália Setentrional e as províncias danubianas, após as invasões eslavas do fim do século VI, não são abrangidas pelo meu estudo. Trato especialmente do Mediterrâneo Oriental. O meu relato tem, naturalmente, mais em vista a Bagdade de Hárune Arraxide do que a Aix-la-Chapelle do seu contemporâneo Carlos Magno. Espero que o leitor (~specialmente o medievalista habituado a observar a formação da sociedade ocidental pós-românica) me desculpe a escolha desta área. Para a Europa Ocidental tem já guias sérios, aos quais todos estamos igualmente gratos.

Não é lícito negar a existência de laços estreitos entre a revolução social e a revolução espiritual do último período da Antiguidade. Tão íntimos são que não podem reduzir-se a uma relação/superficial de «causa e efeito». É frequente o historiador dizer apenas que determinadas modificações coincidem de certa maneira, que determinada personalidade não pode compreender-se sem referência a outra. A história do fim do Mundo Antigo, isto é, a história dos imperadores e bárbaros, soldados, proprie­tários, publicanos, dar-nos-ia apenas um quadro descolorido e mentiroso da importância da época: o mesmo sucederia se vís­semos apenas os humildes, os monges, os místicos, os teólogos do tempo. Quero que o leitor decida por si mesmo se a minha exposição o levou a compreender como tantas e variadas mudanças vieram a moldar um período distinto da civilização europeia - o fim do Mundo Antigo.

O rigor deste livro deve muito a Filipe Rousseau, cujo cuidado ultrapassou, como de costume, a simples verificação das datas e citações. Para a sua conclusão contribuiu grandemente minha mulher, cuja curiosidade e conhecimentos históricos tive a felicidade de compartilhar longamente.


AS FRONTEIRAS DO MUNDO CLÁSSICO

“Vivemos à volta do mar como o nevoeiro à volta de um lago”, dizia Sócrates aos seus amigos de Atenas. Sete séculos depois, por alturas do ano 200, o mundo clássico mantinha-se fixado à volta do “lago”, continuava preso às costas do Mediter­râneo. Os centros da Europa moderna ficaram muito para Norte e Ocidente do mundo dos homens antigos. Para estes, alcançar o Reno era chegar a «meio caminho dos bárbaros”; um homem típico do Sul transporta a esposa, que falecera, de Tréveros para Pavia, a fim de poder sepultá-la junto dos antepassados. Um senador grego da Ásia Menor, nomeado governador nas margens do Danúbio, queixa-se, nestes termos: “OS habitantes...levam a vida mais miserável da humanidade; não sabem cultivar a oliveira nem bebem vinho”.

O Império Romano havia-se estendido até onde lhe parecera necessário, no tempo da República e durante o Principado, para amparar e enriquecer o mundo clássico, erguido à volta das costas do mediterrâneo havia mais de quatro séculos. O que nos espanta é a extraordinária maré de vida mediterrânea deste império, durante o seu apogeu, no século III. Avança pela terra dentro até uma distância nunca até então atingida, especialmente na Africa do Norte e no Próximo Oriente. Por algum tempo é igual o rancho militar preparado na Itália e em frente dos Grâmpios, na Esc6cia. Junto dos montes Hodna, onde hoje são os ermos territórios do Sul da Argélia, levantam-se grandes cidades, como Timgad, com o seu anfiteatro, biblioteca, estátuas dos filósofos clássicos. Na éidade de Dura-Europos, nas margens do Eufrates, a guarnição observa o mesmo calendário das festividades de Roma. O derradeiro Mundo Antigo herda este extraordinário legado. Como manter, através de tão vasto império, um estilo de vida e de cultura, originàriamente baseado numa estreita linha costeira de cidades-estados, eis um dos problemas prin­cipais do período compreendido entre 200 e 700.

O Mediterrâneo clássico havia sido sempre um mundo con­denado à indigência. É um mar cercado por altas montanhas; as suas planícies férteis e vales fluviais são como remendos de uma sarapilheira. Muitas das maiores cidades dos tempos clás­sicos ficavam em pobres lugares alcantilados. Os seus habitantes viam-se obrigados a descer constantemente às regiões vizinhas, em busca de alimento. Descrevendo os sintomas da falta de alimentação das populações destes lugares no meado do século II, o Dr. Galen observa: «Os habitantes das cidades costumavam colher e enceleirar cereais suficientes para o ano imediato à colheita. Recolhiam todo o trigo, cevada, feijões e lentilhas, e deixavam os restos aos camponeses.» Vista a esta luz, a história do Império Romano é a história da maneira como dez por cento da população (que vivia nas cidades e deixou a sua marca na civilização europeia) se alimentava da forma sumária indicada por Ga1en, à custa do trabalho dos restantes noventa por cento que trabalhavam a terra.

O alimento era a riqueza mais preciosa do mundo mediter­rânico. Implicava o transporte. Poucas das grandes cidades do Império Romano dispunham, nos arredores, de terras que pudessem satisfazer as suas necessidades alimentares. Roma dependeu3 durante muitos anos3 da grande frota anual da África. Durante o século VI3 Constantinopla recebia3 anualmente, 175 200 tone­ladas de cereais do Egipto.

A água foi, nos primeiros sistemas de transporte, o que foram os caminhos de ferro nos transportes modernos - a artéria indispensável dos transportes pesados. Logo que um carrega­mento deixa as águas do Mediterrâneo ou de um grande rio, ao movimento rápido e seguro sucede a morosidade ruinosa. Fica mais barato levar um carregamento de trigo de uma extre­midade do Mediterrâneo à outra do que transportá-la por terra até à distância de 275 quilómetros.

O Império Romano foi sempre formado por dois mundos. Até 700, as grandes cidades marítimas não estão a grandes distâncias umas das outras; em vinte dias de boa navegação, um viajante vai de um canto a outro do Mediterrâneo, o centro do mundo romano. Em terra, porém, a vida romana tende sempre a concentrar-se em pequenos oásis, semelhantes a gotas de água numa planície ressequida. Eram famosas as estradas romanas que corriam através do Império; mas atravessavam cidades cujos habitantes obtinham tudo o que comiam, e a maior parte do que usavam, dentro de um raio de uns 130 quilómetros.

Era no interior, nas terras que ladeavam as grandes vias, que as enormes despesas do Império se tornavam mais pesadas.

O Império Romano fazia um esforço considerável para manter a sua unidade. Soldados, administradores, correios, auxiliares, visitavam constantemente as províncias. Visto pelos imperadores em 200, o mundo romano parece uma rede' de caminhos, inter­rompidos por postos, ocupados por pequenas comunidades, que cobram os impostos em alimentos, vestuário, animais, e recrutam a mão-de-obra exigida pelas necessidades da corte e do exército.

Esta rude máquina era servida, obrigatoriamente, por muitos homens. A violência não representava uma novidade. Era tão velha como a civilização, em certos lugares. Na Palestina, por exemplo, Cristo ensinara aos seus ouvintes como deviam proceder quando um funcionário «os requisitasse para o acompanhar (car­regando a sua bagagem) durante uma milha». A palavra “requi­sição” não era, originàriamente, uma palavra grega; derivava do persa, tinha mais de 500 anos de idade, remontava ao tempo em que os Aqueménidas haviam aberto as famosas estradas do seu vasto império) empregando os mesmos duros métodos.

O Império Romano, que, perigosamente, se estendera até tão longe do Mediterrâneo no ano 200, conservava-se unido devido à ilusão de que era ainda muito pequeno. Raramente se viu um império tão dependente como este da delicada perícia dos gover­nantes. Neste momento, preside aos seus destinos uma estranha aristocracia, unida pela mesma cultura, gosto e linguagem. No Ocidente, a classe senatorial continua a ser um escol tenaz e absorvente, que domina na Itália, África, França do Sul, vales do Ebro e do Guadalquivir. No Oriente, a cultura e o poder local concentram-se nas mãos das orgulhosas oligarquias das cidades. Através do mundo helénico, diferença alguma, no voca­bulário e na pronúncia, denuncia o lugar de nascimento dos habitantes. No mundo ocidental, os aristocratas bilingues passam, inconscientemente, do latim para o grego. Um natural da África sente-se à vontade num salon literário de Esmirna, frequentado por gregos educados.

Esta espantosa uniformidade era mantida por homens que sentiam obscuramente que a sua cultura clássica se destinava a excluir as alternativas do seu próprio mundo. Como muitas aristocracias cosmopolitas - como as dinastias do fim da Europa feudal ou os aristocratas do Império Austro-Húngaro -, os homens da mesma classe e cultura sentiam-se, em qualquer parte do mundo romano, mais unidos uns aos outros do que com a maioria dos camponeses «subdesenvolvidos, seus vizinhos. Os «bárbaros» exercem uma pressão silenciosa e persistente sobre a cultura do Império Romano. «Bárbaros» não eram apenas os primitivos de além-fronteiras; cerca de 200, estes «bárbaros» haviam-se juntado aos habitantes do interior do Império. Os aristocratas passam de um lugar para outro, administram a justiça, falam a mesma língua, observam os mesmos ritos, desempenham os modos de vida de todos os homens educados. A estes costumes só se mantêm alheios os territórios habitados por certas tribos aliadas da Ger­mânia ou da Pérsia. Na Gália, os camponeses ainda falam o céltico; na África do Norte, o púnico ou o líbio; na Ásia Menor, antigos dialeetos, como o licaónio, o frígio, o capadócio ou o siríaco e o aramaico, na Síria.

Vivendo lado a lado com o imenso mundo «bárbaro», as classes governamentais do Império Romano haviam-se libertado dos' mais virulentos exclusivismos dos regimes coloniais modernos. Eram bastante tolerantes quanto à raça e religiões locais. Mas o preço que exigiam pela inclusão no seu próprio mundo era conformidade - a adopção do seu estilo de vida, das suas tra­dições, da sua educação, e, ainda, das suas duas línguas clás­sicas - o latim, no Ocidente, o grego, no Oriente. Os que não estavam em condições de cumprir eram corridos, francamente desprezados como «rústicos» e «bárbaros». Os que podiam par­ticipar mas não queriam - especialmente os Judeus - eram tratados ora'" com ódio ora com desprezo, sentimentos só ocasio­nalmente suavizados por certa curiosidade respeitosa pelos repre­sentantes da antiga civilização do Próximo Oriente. Os que participavam uma vez mas «desertavam» ostensivamente - os cristãos, sobretudo - podiam ser executados sumàriamente. Por alturas de 200, muitos governadores das províncias, acompanhados pelas turbas, assinalam, em diversos lugares, com histérica cer­teza as fronteiras do mundo clássico, mediante perseguições contra os cristãos. «Não há coisa que mais me incomode do que ouvir as pessoas dizerem mal da religião romana», declarava um magistrado aos cristãos.

A sociedade clássica de cerca de 200 era uma sociedade de fronteiras firmes, mas não estagnante. No mundo grego, a tradição clássica já tinha mais de 700 anos. A sua primeira erupção criadora, em Atenas, já não seduzia de maneira tão forte como nos tempos das conquistas de Alexandre Magno; adoptara um ritmo de sobrevivência, rico de cambiantes delicados, de repe­tições pacientes, como no canto chão. Dera-se um prometedor renascimento no século lI. Coincidira com a revivescência da vida econômica e a iniciativa política das classes superiores das cidades helénicas. Na época dos Antoninos assiste-se ao apogeu dos sofistas gregos. Estes homens, apaixonados pela retórica, eram, ao mesmo tempo, leões literários do tempo e grandes ricaços urbanos. Dispunham de enorme influência e popularidade. Um deles, Polemo de Esmirna, considerava “reles todas as cidades, os imperadores como não sendo mais do que ele, e os deuses ...como iguais”. Atrás destes homens estavam as 'florescentes cidades do mar Egeu. As principais lembranças clássicas em Éfeso e Esmirna (e, semelhantemente, as cidades e templos contempo­râneos em Léptis Magna, na Tunísia, e Baalbeck, no Líbano) parecem-nos hoje um resumo do mundo de então. Não passavam, no entanto, de simples amostras de algumas gerações de magni­ficência barroca do período que vai de Adriano (117-138) a Sétimo Severo (193-211).

É justamente no fim do século II e começos do IV que a cultura grega se apresenta senhora do que forma o lastro da tradição clássica através da Idade Média. São compilados nesta altura as enciclopédias e os manuais de medicina, ciências natu­rais e astronomia que todos os homens cultos (latinos, bizantinos, árabes) manejam durante os mil e quinhentos anos seguintes. Os textos literários e as atitudes políticas que se conservam no mundo grego até ao fim da Idade Média surgem, primeiramente, na época dos Antoninos. Os senhores bizantinos do século xv ainda empregam um grego ático secreto, usado pelos sofistas do tempo de Adriano.

Nesta altura, o mundo grego absorve o Império Romano. Podemos apreciar a identificação com o Estado Romano e as subtis modificações realizadas, observando um grego da Bitínia, enquadrado, como senador, na classe governamental- Díon Cássio, que escreve a sua História de Roma por alturas de 229. Apesar da maneira entusiástica como vê o Senado Romano, lem­bra-nos constantemente que o Império se estendera aos Gregos, habituados, havia séculos, a um despotismo esclarecido. O impe­rador romano era um autocrata. O decoro vulgar e algumas atenções para com as altas classes educa das eram as suas únicas preocupações - não o delicado maquinismo da constituição de Augusto. Limitações frágeis, como sabia. Assistira a uma reunião do Senado, na qual um astrólogo acusara certos «calvos» de cons­pirarem contra o imperador, levando, instintivamente, a mão ao alto da cabeça. Mas aceitava a rude lei de um homem destinado a dar-lhe um mundo ordenado. Só o imperador podia suprimir a guerra civil; só ele podia pôr termo às contendas das facções, nas cidades gregas; só ele podia tornar a sua classe firme e res­peitada. Os escolares bizantinos que, séculos depois, procuram conhecer a história de Roma através de Díon, vêem-se sem espe­rança, frente ao mar, quando lêem os feitos dos heróis da época da República; mas compreendem perfeitamente os fortes e sérios imperadores do tempo de Díon, porque a história de Roma é já a história de uma Grécia do fim do século II e começos do século IV, isto é, a sua história.

Dá-se uma mudança do centro de gravidade do Império Romano para as cidades gregas da Ásia Menor; desabrocha um mandarinato grego. A própria época dos Antoninos inclina-se para Bizâncio. Os homens do tempo de Díon Cássio enfrentam, porém, outros destinos: são fortemente conservadores; devem os seus maiores sucessos a uma reacção cultural; as fronteiras do mundo clássico são, para eles, claras e rígidas. Mesmo Bizâncio, mesmo a civilização que esta cidade poderia erguer sobre a sua velha tradição, mesmo as novidades revolucionárias, como o estabelecimento do cristianismo e a transformação de Constanti­nopla em “Nova Roma” - tudo isto era inconcebível para homens como Díon. Esta civilização só pode surgir com a última revo­lução romana, nos séculos III e IV.

Este livro tem por assunto a mudança e definição das fron­teiras do mundo clássico depois de 200. Pouco se relaciona com os problemas convencionais do declínio e queda do Império Romano. O dec1ínio e queda afectam Unicamente a estrutura política das províncias romanas do Ocidente; deixam incólume o centro cultural do fim da Antiguidade - o Mediterrâneo Oriental e o Próximo Oriente. Mesmo nos estados bárbaros da Europa Ocidental, o Império Romano, tal como sobrevive em Constantinopla, é considerado, nos séculos VI e VII, como o maior estado civilizado do Mundo, e continua a ser chamado Respublica. O problema que preocupa então os homens é, sobretudo, a penosa modificação dos antigos limites.

Geogràficamente, o âmbito do Mediterrâneo diminuiu.
Depois de 410, foi abandonada a Bretanha; depois de 480, a Gália passou a ser firmemente dirigi da do Norte. No Oriente, paradoxalmente, o recuo do Mediterrâneo começou mais cedo e mais imperceptivelmente, mas de maneira decisiva. Até ao século I, uma aparência de civilização grega cobre ainda uma grande área do planalto iraniano. Uma arte greco-budista floresce no Afega­nistão, e as leis de um governante budista são acatadas fora de Cabul, traduzidas num impecável grego filosófico. Em 224, toda­via, uma família de Fars, o «taciturno Sul» do intacto patriotismo iraniano, apodera-se do governo do Império Persa. Este rejuvenesce, e a dinastia dos Sassânidas depressa sacode do corpo o vestuário grego. Um império eficiente e agressivo, dominado por uma classe superior alheia à influência ocidental, defronta o Império Romano, na fronteira oriental. Em 252, 257 e, de novo, em 260, o grande Shahnshah, o rei dos reis Shapur I, refere-se assim aos triunfos dos seus cavaleiros: “Naleriano César veio contra nós à frente de um exército de 700 000 homens ... tra­vou-se uma grande batalha, e Valeriano César caiu-nos nas mãos ... E incendiámos, devastámos, conquistámos, as províncias da Síria, Cilicia, Capadócia, e tornámos cativos os seus habitantes”.

O medo de repetir a experiência inclinou a balança do domí­nio imperial do lado do Reno e muito mais do lado do Eufrates. Pior ainda, o choque com a Pérsia sassânida modificou as fron­teiras do mundo clássico no Próximo Oriente; a preeminência passou para a Mesopotâinia, e o mundo romano ficou sujeito à influência da arte e da religião daquela imensa, exótica área.

Nem sempre as datas convencionais são as mais decisivas. Todos sabemos que os Godos saquearam Roma em 410, mas as províncias perdidas do Ocidente continuaram a manter uma «subcivilização romana» durante séculos. Contràriamente, quando as províncias orientais do Império passaram ao poder do Islão, em 640, deixaram de ser sociedades «sub-bizantinas» e “orientali­zaram-se” ràpidamente. O próprio Islão foi arrastado para oriente das suas primeiras conquistas devido à submissão do vasto Império Persa. No século VIII, o Mediterrâneo é governado de Bagdade; torna-se um lago para os homens que estavam h:'lbi­tuados a navegar através do golfo Pérsico, e a corte de Hárune Arraxide (788-809), com os seus pesados enfeites de «subcul­tura persa”-, era uma prova de que a irreversível vitória do Próximo Oriente sobre os Gregos começara lentamente, mas com segu­rança, por alturas da revolta de Fars, em 224.

À medida que o Mediterrâneo recua, um mundo mais antigo passa a revelar-se. Os homens da Bretanha adaptam os padrões artísticos da idade de La Tene. O servo da última Gália ressus­cita com o nome céltico de vassus. Os árbitros da piedade do mundo romano, os eremitas coptas do Egipto, restauram a língua dos faraós. Os himnólogos cantam a realeza de Cristo, servidos por expressões que fazem lembrar a época suméria. À volta do Mediterrâneo recuam mesmo as fronteira mais afastadas do interior. Uma outra face do mundo romano, que vivia desde há muito na obscuridade, vem à superfície, como as terras de cores diferentes, revolvidas pela charrua. Três gerações após Díon Cássio, o cristianismo torna-se a religião dos imperadores. As pequenas coisas assinalam, muitas vezes, mais fielmente as mudanças, porque inconscientemente. Junto de Roma, uma oficina de escultores do século IV continua a fornecer estátuas impe­càvelmente vestidas de toga, mas os aristocratas que encomendam estas obras usam vestuário à moda dos «bárbaros» não mediterrânicos - a túnica de lã do Danúbio, a capa da Gália do Norte, presa nos ombros por uma fíbula de filigrana da Germânia, mesmo as calças «saxónicas». Em todas as zonas do Mediterrâneo, cada vez mais profundamente, a filosofia grega deixa-se impregnar de novos sentimentos religiosos.

Estas transformações representam os principais temas da evolução do derradeiro mundo antigo. Nos dois próximos capí­tulos veremos os aspectos sociais e políticos da revolução come­çada com estas metamorfoses no fim do século III e no século IV.


BROWN, P. O fim do Mundo clássico. Lisboa: Verbo, 1972.


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