O Declínio da Civilização Antiga

O DESENVOLVIMENTO histórico não conhece interrupções. Após a época de Diocleciano e Constantino, o Império Ro­mano continuou existindo por muitos séculos, dividido, porém, em duas partes: o Império Ocidental, tendo Roma como ca­pital, Roma dos romanos; e o Império Oriental, comumente cha­mado "Bizantino", porque sua capital, Constantinopla, ou Ro­ma dos romaioí, fôra fundada por Constantino no local da antiga Bizâncio. Já descrevemos o sistema de governo dêsse nôvo Império Romano. Suas características essenciais perma­neceram, tanto no Oriente como no Ocidente, tal como Diocle­ciano e Constantino as haviam moldado. A estrutura que cons­truíram era, como já vimos, nova em seu todo, estranha às concepções greco-romanas do Estado e mais de acôrdo, embo­ra não inteiramente, com as teorias políticas do Oriente irania­no e semita. Algumas lembranças da antiga Constituição fo­ram conservadas: a velha fórmula do Senatus populusque Ro­manus era ainda usada. Dois Senados, um em cada capital, ainda se reuniam, e alguns títulos de magistrados, como "côn­sul", continuaram vivos.

Vejamos quais eram as principais características da vida nesse nôvo Estado. O Império Ocidental gradualmente se fragmentou em suas várias partes componentes, que eram a Itália e as antigas províncias, as quais passaram a ser, em alguns casos, governadas pelos chefes de diferentes tribos germânicas, que haviam tomado esta ou aquela parte do mundo roma­no. O fenômeno não é inteiramente nôvo, pois ainda na épo­ca de Diocleciano, de Constantino e seus sucessores imediatos, os germanos se destacavam no exército e na côrte imperial. No Império Oriental o processo de dissolução é mais lento, e as velhas tradições são mantidas com tenacidade. Por outro la­do, a influência do Oriente é mais forte, e o govêrno tende a assemelhar-se, cada vez mais, aos regimes despóticos orientais. O centro de gravidade do Império Oriental passa da penínsu­la balcânica para a Ásia Menor.

Ao mesmo tempo, os países que haviam sido os principais centros da vida civilizada e da vida política entram em deca­dência, e seu lugar é tomado pelas regiões da Ásia e Europa que até então desempenhavam apenas papel secundário. Em­bora a política e a economia da época ainda possam ser denominadas de "mediterrâneas", aos poucos partes da Ásia e Eu­ropa que não têm ligação com aquêle mar adquirem impor­tância decisiva na História da humanidade. São elas o norte da Alemanha, o norte da França, a Grã-Bretanha, os países es­candinavos, a Rússia central e setentrional, na Europa. A Pér­sia dos sassânidas e os mongóis, na Ásia. Nesses distritos do norte e do sudeste surgiram gradualmente instituições políti­ca, sociais e econômicas destinadas a determinar a evolução futura da raça humana.

A História dos antigos centros de civilização torna-se, cada vez mais, uma história de dissolução e decadência. As velhas instituições são substituídas pelas condições mais primitivas; nos assuntos sociais, econômicos e intelectuais, há uma ininterrupta reversão à barbárie. Um aspecto da situação econômica é particularmente notável: a completa modificação dos méto­dos agrícolas em todo o império. A agricultura científica, sustentada pelo capital e pela inteligência, desaparece inteiramente sendo substituída em tôda parte por um sistema que apenas arranha a superfície do solo e se afunda cada vez mais na rotina primitiva. Embora as fazendas possam ser grandes e seus proprietários pertençam à nova aristocracia imperial, a agricultura se baseia no trato do solo por pequenos cultivado­res, proprietários ou arrendatários. Em todo o mundo, o cam­ponês se mantém prêso à terra, pertença ela ao imperador ou aos grandes senhores latifundiários, seja êle o dono ou arren­de apenas um lote na área dos territórios urbanos. A vida econômica do Estado em conjunto, e das classes dominantes do império e das cidades, baseia-se na sua atividade. Assim sendo, já não se trata mais de ampliar a área cultivada - pelo contrário, ela se reduz. No Egito, temos documentos escri­tos que nos permitem traçar êsse processo, sendo possível quase prová-lo com números. O mesmo ocorreu no resto do im­pério.

Dar braços â lavoura torna-se a principal preocupação do Estado e dos proprietários particulares. A quantidade de ter­ra era ilimitada - o problema estava em encontrar agriculto­res que pagassem arrendamento e trabalhadores que lavrassem o solo. Já não havia qualquer possibilidade de basear a indús­tria no trabalho servil - a escassez da fôrça de trabalho é pro­va clara de que a população do império deixara de crescer e, pelo contrário, se reduzia. O baixo índice de natalidade e a rápida extinção das famílias entre os ricos, que provocaram an­siedade nos primeiros dias do império, evidentemente se pro· pagavam às outras camadas da população, tomando-se uma característica notável da vida diária das classes trabalhadoras em geral. Relativamente menos importante era a tendência, evidenciada pelo trabalhador agrícola, de procurar outra ocupa­ção, pois isso representava apenas uma redistribuição da po­pulação. A migração da fôrça de trabalho para as cidades foi interrompida pelo dec1ínio do comércio e indústria, e é impro­vável que tenha havido em qualquer época um êxodo conside­rável do trabalho para lugares fora do império. As classes tra­balhadoras desapareciam com a mesma rapidez de seus superio­res sociais, e seu lugar era preenchido também por recém-che­gados e estrangeiros - bárbaros de além-Rena e do Danúbio, germanos e iranianos, mais tarde reforçados pelos eslavos. Ês­se nôvo elemento era forte demais para que a população exis­tente o incorporasse e assimilasse. Os estrangeiros adotavam as línguas romanicas, mas não iam além disso. Iniciando-se nas fronteiras, a inundação da fôrça de trabalho estrangeira co­briu as partes centrais do império, acentuando ainda mais a queda da técnica agrícola e portanto da produtividade ela terra.

Devido à menor área de cultivo e reduzida produtividade do solo, a classe agrícola tornou-se ainda menos capaz de pa­gar impostos, e sua capacidade aquisitiva decaiu acentuada­mente. Cada fazenda pretendia produzir tudo o que lhe era necessário, sem ter de recorrer aos outros. A moeda tornou-se menos importante na vida do pequeno proprietário, ou do gran­de senhor, ou da própria fazenda. Se não no comércio, pelo menos nas transações entre proprietário e agricultor, ou en­tre êstes e o Estado, os pagamentos eram feitos quase invariavelmente in natura, pela transferência de alguns produtos.

A situação do comércio e da indústria era igualmente de­sastrosa. A atividade industrial, que prosperara muito em vá­rias regiões do império, trabalhando para um mercado local mais ou menos amplo, diminuiu sua produção, enfraqueceu e acabou morrendo, e com ela desapareceu também o intercâm­bio dentro do império. Os únicos ramos da indústria que con­tinuavam em plena atividade eram os vitais para o Estado. Já vimos, porém, que êsse gênero de atividade fôra gradativamen­te subtraído à iniciativa privada e assumido pelo Estado. Não sabemos claramente até que ponto êste realizava as vendas dos artigos produzidos em suas fábricas, mas não é provável que pretendesse um monopólio geral do comércio e indústria.

A troca de mercadorias certamente continuava, entre as di­ferentes partes do império e também entre o império e seus vi­zinhos. Embora o Estado realizasse em grande escala o trans­porte do que era necessário à côrte, exército, funcionários e à população das capitais, o comércio, com essa exceção, se ocupa­va principalmente de artigos de luxo importados dos países do Leste, e naturalmente passou às mãos dos mercadores orientais - sírios, levantinos e judeus. Seus melhores clientes eram os representantes da nobreza rica, especialmente na côrte, cujo aspecto externo se orientalizava acentuadamente. O esplen­dor oriental, com sua orgia de côres, sua decoração carregada, sua tendência ao tamanho e pêso excessivos nos adornos pes­soais, tinha grande atração para os germanos e iranianos que então ocupavam altas camadas da sociedade. O volume apenas, com exclusão de qualquer refinamento, tornou-se a moda na corte e entre a aristocracia.

A prosperidade das cidades foi minada por essas condi­ções econômicas. As grandes cidades, e particularmente as capitais, resistiram mais tempo. Ainda no século IV edifícios esplêndidos eram construídos em Roma, mas no século se­guinte tem início um processo gradual de decadência. A nova capital, Bizâncio-Constantinopla, transformou-se numa cidade mundial, de luxo abundante, adornada de uma arquitetura ma­ravilhosa e imponente, principalmente nos palácios e igrejas. As grandes cidades marítimas - Alexandria, Antioquia, f:feso, Cartago - ainda sobreviviam, e podemos colocar ao lado delas as cidades onde os co-participantes do poder real mantinham suas cortes - Ravena, Mediolano (Milão), Treves, Nicomé­dia, Nicéia. Nota-se, porém, que o aparecimento de novas ci­dades nas províncias, comum ainda durante o reinado de Adria­no, cessou. Ao mesmo tempo, na maioria das cidades provin­ciais de tamanho moderado o pulso da vida começou a bater mais devagar. As igrejas cristãs e os mosteiros eram os únicos edifícios novos, e os antigos conservavam-se com dificuldade. O mato começou a crescer nas cidades. Os nobres dividiam o tempo entre as capitais e as vilas - que se erguiam, como palácios fortificados, no centre. de Suas imensas propriedades. Quando as cidades eram destruídas pelos bárbaros, como por vêzes ocorria nas regiões do império mais distantes, não é de surpreender que jamais se reconstruíssem.
O aspecto social do império correspondia às modificações econômicas que descrevemos. Continuou o mesmo que fôra sob Diocleciano e Constantino, ou seja, conservou as feições adquiridas no período crítico do século lV. O imperador, com sua família e cortesãos, os oficiais do exército, os altos pre­lados e a burocracia constituíam as classes superiores da so­ciedade e desfrutavam todos os privilégios, vivendo uma vida altamente civilizada. Todos os membros dessa classe domi­nante tinham bens, em proporções variáveis, constituídos prin­cipalmente de terras. Na escala social vinham em seguida os negociantes especuladores, homens abastados, alguns ricos, e na maioria semitas. A classe média urbana, característica do início do império, estava desaparecendo com suas antigas famílias que, quando sobreviviam, perdiam-se em meio à ralé das grandes cidades, que trabalhava para o Estado e era por êle mantida, ou entre a população rural, pràticamente serva do Estado ou dos grandes senhores. A escravidão, embora existis­se como instituição, perdera tôda a importância econômica. Os escravos já não desempenhavam qualquer papel na agricultura, comércio ou indústria - sua única função era servir nas gran­des casas dos ricos e nobres.

A energia e a capacidade de trabalho desapareceram, os gostos se vulgarizaram, e um pequeno grupo privilegiado mano teve-se à tona de um mar de decadência. Dessa situação geral podemos deduzir a condição intelectual da época. As escolas ainda existiam e continuavam funcionando, mas já não atraíam ninguém, a não ser entre as classes superiores, e se dedicavam inteiramente à tarefa de preparar seus alunos para o serviço público do Estado. O currículo não se modificara: a educa­ção elementar básica consistia no aprendizado do grego ou la­tim, ou de ambos, e o conhecimento dos principais clássicos. Uma educação superior incluía a retórica, ou preparo para falar e escrever, e a aquisição de conhecimentos jurídicos.

Na esfera da jurisprudência, ainda havia vida e alguma atividade criadora. Pelo trabalho de juristas eminentes - en­tre os quais Paulo, Papiniano e Ulpiano são os maiores nomes do século lV - o Direito Romano tornou-se aos poucos a lei de todo o mundo civilizado. A teoria e a prática ainda con­tinuavam marchando lado a lado, uma fertilizando a outra. A tendência geral de ambas era tornarem-se mais humanas, e um surpreendente exemplo disso é o progresso da condição dos escravos.

A filosofia também estava viva, mas tendia a restringir-se a um círculo estreito. À medida que se fundia com a religião, menos se distinguia da teologia. Depois de Plotino, não en­contramos nenhum gênio criador entre os filósofos. Sua re­formulação do platonismo tornou-se, como já dissemos, o últi­mo refúgio do pensamento "pagão" e o último baluarte do co­nhecip1ento e da erudição antigos.

Nem estava morta a literatura. Nas divisões latina e gre­ga do mundo antigo surgiram ainda autores importantes, na poesia e na prosa - eram, porém, flores de estufa. Os escri­tores produziam para si mesmo, ou para um pequeno círculo de leitores cultos e aristocráticos. Sua técnica é quase sem­pre perfeita, mas estão presos à repetição de fórmulas e temas do passado. Como representantes típicos dessa poesia outonal, tão formal e retórica, a metade latina do mundo tinha a oferecer os seguintes nomes: Cláudio Claudiano, grego romani­zado e poeta épico; Rutílio Namaciano, natural da Gália, que escreveu no ano 400 de nossa era um poema elegíaco glorificando Roma; e Ausônio, outro gaulês romanizado, mestre da forma, que evidencia uma verdadeira inspiração poética na descrição de sua viagem pelo Mosela, escrita cêrca do ano 370. Ainda mais populares entre a sociedade culta eram os exercícios puramente retóricos, na forma de discursos e cartas, pelos quais Símaco adquiriu fama e travou batalha em defesa da antiga fé e cultura. Símaco era natural do Ocidente. O Oriente produziu, aproximadamente na mesma época, as car­tas e discursos do Imperador Juliano e de seu contemporâneo, Libânio de Antioquia. Também a História não morrera: na pessoa de Amiano Marcelino (350-400), produziu mais um grande pensador e observador, que continuaria a obra de Ta­cito. Em tôda essa atividade, porém, não havia realmente vida: os autores mencionados e dezenas de outros escritores se­melhantes, filósofos e poetas, a partir do século III e pelos dois séculos seguintes, trazem a marca do cansaço, desencanta­mento e desespêro.

Somente a literatura cristã estava realmente viva. O nú­mero de leitores por ela atingidos e convencidos aumentava constantemente. Inspirada num impulso cada vez mais forte, obtinha fôrças na luta sangrenta contra os defensores do velho mundo e os dissidentes entre suas próprias fileiras. Fertiliza­va-a um contato íntimo com a cultura antiga, da qual aprendia tudo o que necessitava para a tarefa de proporcionar uma edu­cação cristã a todos os súditos do império. Na forma, essa lite­ratura não poderia rivalizar com os defensores do passado; es­tava porém cheia de idéias novas e mantinha fortes ligações com o povo em geral, nela interessado. Era, na realidade, unilateral e limitada: a religião e a teologia constituíam seus te­mas principais. Com o tempo, entretanto, abarcou outros te­mas e procurou cristianizar a retórica e a História e influen­ciar as escolas. Algumas correntes literárias surgiram nas províncias, entre as quais, nos séculos IV c V, as figuras mais destacadas foram os Pais Africanos, como Lactâncio (cêrca de 325) e Agostinho (354-430), que foram precedidos por Tertuliano, em fins do século II, e Cipriano, um século mais tarde. Estrê­Ias brilhantes da cristandade latina são o vigoroso Ambrósio, bispo de Milão na segunda metade do século IV, e o culto Jerônimo, que viveu de 335 a 420.

Ainda mais vigorosa foi a vida do cristianismo no Oriente. Ali, o século IV constitui a culminância do crescimento literá­rio. As bases da teologia e poesia cristãs foram então lançadas por Atanásio de Alexandria, Eusébio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo e João Crisóstomo. Devemos notar que a maioria dêsses homens nasceu nas cercanias, e não no centro, do mundo helênico. Essa literatura cristã nos coloca à frente um nôvo mundo e nova gente, cujos atos estão fora do alcance da His­tória antiga. Na competição com os representantes do passa­do, êsses escritores saíram vitoriosos, mas não nos devemos esquecer que também êles vieram da civilização antiga e levantaram seu edifício nôvo sôbre alicerces velhos.

O desenvolvimento das artes plásticas - escultura, pintura e artes aplicadas - não foi diverso do literário. A arte helenístico-romana ainda sobrevivia, a arquitetura ainda florescia. Em­bora o arco triunfal de Constantino seja uma simples cópia de obras semelhantes pertencentes à era de Domiciano e Tra­jano, muitos outros edifícios - os banhos de Diocleciano em Roma, seus palácios em Espálato e Antioquia, os banhos e a basílica de Constantino em Roma - são originais e imponen­tes: devem seu efeito à liberdade do desenho e à habilidade com que a luz e o ar são distribuídos pelas paredes colossais, e à singular variedade de seus tetos arqueados. Impressionam o espectador também por sua conquista do espaço e pelo es­plendor maciço de sua decoração, com uma imponente varie­dade de côres. Não podemos considerá-las como os mais no­bres produtos da arquitetura antiga, mas mesmo assim seria impossível negar a seus autores impulso criador e a capacidade de lhe dar forma magnífica. esse impulso não se esgotou logo: foi sob o govêrno de Justiniano que se ergueu a maravi­lha arquitetônica que chamamos de Igreja de Santa Sofia. Mais tarde ainda muitos edifícios magistrais foram levantados no Oriente e Ocidente por uma arte patrocinada pela Igreja e pelo Estado, principalmente pela primeira.

O declínio da originalidade e da fôrça é mais acentuado na escultura e na pintura. Os bustos-retratos de muitos dos imperadores, com sua imponência sombria, refletem a tendência característica do império, para as formas maciças e pesadas. A escultura, como a arquitetura, perdera a graciosidade, a ha­bilidade técnica, a preocupação com o detalhe, o amor à ori­ginalidade. Pouco sabemos da pintura, mas também nela a beleza e harmonia de composição, que levam à consideração dos detalhes, foram afastadas pelos efeitos vistosos da côr.

Parece, portanto, que o enfraquecimento da fôrça criadora em todo o império é menos acentuado na arte do que nos ou­tros setores da atividade humana. Como em outras épocas da História, a arte continuou seu curso individual, refletindo com brilho e capacidade criadora a vida a seu redor, e o pensa­mento e o sentimento dos contemporâneos. Sua principal ta­refa, naturalmente, era encontrar formas adequadas para os principais artigos do credo cristão e por isso os arquitetos se empenharam em fazer as igrejas cristãs, ou casas de oração, tão perfeitas quanto possível, com todos os adornos de pintura, mosaico e escultura.

Essa nova arte cristã, embora empregando a técnica e as formas da arte antiga, dela se distanciava. As figuras natura­listas e os ornamentos sutis, que marcaram o estilo greco-ro­mano das épocas imperiais, com todo o seu simbolismo e im­pressionismo, foram afastados no doloroso esfôrço de encon­trar formas artísticas que representassem as pessoas e símbolos caros a todos os cristãos. Com o tempo, as figuras centrais da religião e culto cristãos, Cristo e a Mãe de Deus, encontraram sua expressão típica, numa técnica antiga renovada por um impulso artístico nôvo e por um profundo sentimento religioso. Ao mesmo tempo, o progresso obtido pelos artesãos era preser­vado e continuado, com o decorrer do tempo. Encontramos, é verdade, certa perda de refinamento e acabamento, certa ten­dência consciente ou não para o arcaísmo. Mas em tudo isso não há sabor de morte, e sim o palpitar de uma nova vida.

As artes aplicadas foram menos atingidas pela modificação do pensamento associada ao cristianismo, embora a Igreja naturalmente exigisse seus serviços, adaptando as velhas técnicas e as velhas formas às necessidades do culto cristão. Essa arte, porém, era antes a preferida da côrte e de um grupo de ho­mens ricos, a cujo gôsto tinha de servir. A nova aristocracia não podia apreciar a elegância da antiga arte industrial - ne­cessitava de algo mais rude e mais fácil de sentir. Queria que a ornamentação, as roupas, jóias e móveis atraíssem imediata­mente o olhar e chocassem o observador. O Oriente podia atender a tal exigência com facilidade, especialmente o Oriente iraniano, que sofrera menos influência helênica e por isso era inferior à Síria e ao Egito em elegância e refinamento. Assim, as artes aplicadas do Irã e da Ásia Central chegaram a Roma por diferentes caminhos e derrotaram todos os concorrentes, em todo o império. Mais uma vez, era o triunfo do volume, da variedade da côr, das linhas duras e agudas - na verdade, de todos os traços peculiares à arte oriental, em sua fase primitiva.

O mundo antigo envelheceu e lentamente passou à decre­pitude, reduzindo-se a pó. Uma nova vida, entretanto, cres­ceu entre as ruínas, e o nôvo edifício da civilização européia levantou-se sôbre o antigo alicerce, que continuava firme e bom. O nôvo edifício foi erguido pedra a pedra, mas suas li­nhas principais foram determinadas pela velha estrutura, e muitas pedras antigas empregaram-se na construção. Embora aquêle mundo tivesse envelhecido, não morreu nem desapare­ceu nunca: continua vivo em nós, como base do nosso pensamento, de nossa atitude para com a religião, nossa arte, nossas instituições sociais e políticas e até mesmo nossa civilização material.

Por ROSTOVTZEFF, M. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1977 (original de 1922)


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