A Instalação dos Bárbaros - Século V - VIII

O Ocidente medieval nasceu sobre as ruínas do mundo ro­mano. Nelas encontrou, ao mesmo tempo, apoios e desvantagens. Roma foi o seu alimento e foi a sua paralisia.

Antes do mais, Roma legou à Europa medieval a dramática alternativa que a lenda das suas origens simboliza: a Roma fe­chada, do pomerium e do templum, que triunfa da Roma sem limites, sem muralhas, em vão planeada pelo infeliz Remo.

Posta por Rômulo sob o signo do fechado, a história romana, mesmo nos seus êxitos, é apenas a história de uma grandiosa clau­sura. A Cidade reuniu em seu redor um espaço, dilatado pelas conquistas até ao perímetro ótimo de defesa, que a si própria se impôs no século I encerrar atrás do limes - verdadeira mu­ralha da China do mundo ocidental. E, no interior desses muros, explorou sem criar: não houve nenhuma inovação técnica depois da época helenística, a economia era alimentada pela pilhagem, as guerras vitoriosas forneciam a mão-de-obra servil e os metais preciosos recolhidos nos tesouros acumulados pelo Oriente. Roma foi inexcedível nas artes conservadoras: a guerra, que foi sempre defensiva apesar das aparências da conquista; o direito, construído sobre a infra-estrutura dos precedentes, que precavia contra as inovações; o sentido do Estado, que assegurava a estabilidade das instituições; a arquitetura, que por excelência era a arte da habi­tação e da permanência.

Essa obra-prima de imobilismo que foi a civilização romana sofreu na segunda metade do século II a erosão de forças destru­tivas e renovadoras.

A grande crise do século III minou o edifício. A unidade do mundo romano desfez-se e o seu coração - Roma e a Itália­ deixou de irrigar os membros, que procuraram viver com vida própria as províncias emanciparam-se e passaram a ser, por sua vez, conquistadoras. Espanhóis, gauleses e orientais invadiram o Senado. Os imperadores Trajano e Adriano eram de origem espanhola e Antonino de ascendência gaulesa; na dinastia dos Severos, os imperadores foram africanos e as imperatrizes sírias. O édito de Caracalla, em 212, deu direitos de cidadania romana a todos os habitantes do Império. Esta ascensão das províncias manifesta em igual medida o êxito da romanização e o aumento das forças cen­trífugas. O Ocidente medieval vai herdar dessa luta: unidade ou diversidade, cristandade ou nações?

Outro desequilíbrio, mais profundo: o Ocidente perde subs­tância em proveito do Oriente. O ouro que paga as importações de luxo foge para o Leste, produtor e intermediário, cujos merca­dores judeus e sírios monopolizam o grande comércio. As cidades do Ocidente entram em anemia e as do Oriente prosperam.

A fundação de Constantinopla - a nova Roma – por Cons­tantino (324-330) materializa esta inclinação do mundo romano para o Oriente. E esta clivagem vai marcar também o mundo me­dieval: os esforços para a união entre o Ocidente e o Oriente não resistirão a uma evolução definitivamente divergente. O cisma está inscrito nas realidades do século IV. Bizâncio continuará Roma e, sob as aparências da prosperidade e do prestígio, prolon­gará até 1453, por trás das suas muralhas, a agonia romana. O Oci­dente empobrecido e barbarizado terá de repetir todas as fases de um levantar vôo que no fim da Idade Média lhe abrirá os cami­nhos de todo o mundo.

Ainda mais grave: a fortaleza romana, de onde as legiões partiam para a captura dos prisioneiros e para a pilhagem, está, ela própria, cercada; e dentro em breve cederá ao assalto. A úl­tima grande guerra vitoriosa data de Trajano e o ouro dos Dácios, em 107, foi o último grande repasto da prosperidade romana. Ao esgotamento do exterior vem somar-se a estagnação interior - em primeiro lugar, a crise demográfica, que agudiza a penúria de mão-de-obra servil. No século lI, Marco Aurélio contém o assalto bárbaro no Danúbio, onde morre em 180; o século III vê um assalto geral às fronteiras do limes, assalto que amaina menos por efeito dos êxitos militares dos imperadores ilíricos de fins do século e dos seus sucessores que devido à acalmia obtida com a aceitação, como federados, aliados, dos Bárbaros - admitidos no exército ou nas margens interiores do Império: primeiro esboço de uma fusão que vai caracterizar a Idade Média.

Os imperadores julgam conjurar o destino ao abandonar os deuses tutelares, que falharam, pelo Deus novo dos cristãos. A re­novação constantiniana parece justificar todas as esperanças: a paz e a prosperidade parecem estar de volta sob a égide de Cristo. Mas é apenas uma curta recuperação. De resto, o cristianismo é um falso alíado de Roma. Para a Igreja, as estruturas romanas são simplesmente um quadro onde tomar forma, um alicerce em que apoiar-se um instrumento para se afirmar. O cristianismo, religião de vocação universal, hesita em fechar-se nos limites de uma única civilização. Será, sem dúvida, o principal agente de transmissão da cultura romana ao Ocidente medieval. Herdará sem dúvida de Roma e das suas origens históricas, a tendência para dobrar-se só a si próprio. Mas, além dessa religião fechada, a Idade Média ocidental conhecerá também uma religião aberta; e o diálogo entre estas duas faces do cristianismo dominará essa idade intermédia.

Economia fechada ou economia aberta, mundo rural ou mundo urbano, fortaleza única ou casas diversas - o Ocidente medieval levará dez séculos a resolver tais alternativas.

Podendo-se encontrar na crise do mundo romano do século III o início da profunda perturbação de que sairá o Ocidente medie­val, é legítimo considerar as invasões bárbaras do século V como o acontecimento que precipita as transformações, que lhes dá um aspecto catastrófico e que lhes modifica profundamente a apa­rência.

As invasões germânicas do século V não foram novidade para o mundo romano. Sem recuar até aos Cimbros e aos Teutões, ven­cidos por Mário no princípio do século II a. c., convém recordar que a ameaça germânica pesava permanentemente sobre o Impé­rio desde o reinado de Marco Aurélio (161-180). As invasões bár­baras foram um dos elementos essenciais da crise do século III. Os imperadores gauleses e ilírios do fim. desse século afastaram o perigo durante algum tempo. Mas - para ficar apenas na parte ocidental do Império - a grande incursão dos Alamanos, dos Fran­cos e de outros povos germânicos que em 276 devastaram a Gália, a Espanha e o Norte da Itália prefiguravam já a grande cavalgada do século V deixou feridas mal cicatrizadas - campos devasta­dos, cidades em ruínas -, precipitou a evolução econômica - de­clínio da agricultura, recuo urbano -, a recessão demográfica e as transformações sociais: os camponeses tiveram cada vez mais de colocar-se sob a proteção, gradualmente agravada, dos grandes proprietários, que assim passavam a ser chefes de bandos militares, e a situação do colono estava cada vez mais próxima da do escravo. E a miséria dos camponeses transformou-se, por vezes, em jac­querie e recordemos os vagabundos africanos e os bagaldos gau­leses e espanhóis, cuja revolta, nos séculos IV e V, foi endémica.

E também no Oriente aparecem bárbaros que hão de abrir caminho e que virão a desempenhar papel de capital importância no Ocidente: os Gados. Em 269 são contidos em Nisch pelo impe­rador Cláudio lI, mas ocupam a Dácia e a sua estrondosa vitória em Andrinopla sobre o imperador Graciano, a 9 de Agosto de 378, se não é aquele acontecimento decisivo, descrito com terror por tantos historiadores «romanófilos» (Poderíamos ficar por aqui­ escreve Victor Duruy -, pois de Roma nada ficou: crenças, ins­tituições, cúrias, organização militar, artes, literatura, tudo desa­pareceu), nem por isso deixa de ser o trovão anunciador da tem­pestade que está a submergir o Ocidente romano. Estamos mais bem informados a respeito dos Godos que da maioria dos outros invasores graças à história de Jordanes, ten­denciosa, é fato, visto que é de origem bárbara, e tardia, já que o autor escrevia em meados do século VI mas utiliza uma documentação, escrita e oral, séria, especialmente a História dos Godos, perdida, de Cassiodoro. Historiadores e arqueólogos con­firmam, grosso modo, as Wanderungen dos Godos descritas por Jordanes, da Escandinávia ao Mar de Azov através do Meck­lemburg, da Pomerânia e dos pântanos do Pripet. Foi da ilha de Scanzia (Suécia), que é uma espécie de fábrica de povos, ou, se preferirem, de matriz de nações - escreve Jordanes -, que os Godos saíram com seu rei, chamado Berg. Depois de avançar até à morada dos Ulmerugos (Pomerânia Oriental), com a população a crescer, resolveram, no reinado do quinto rei a seguir a Berg levar para diante o exército, com as famílias dos Godos, para pro­curar morada mais vasta e territórios mais convenientes, e foi assim que os Godos chegaram à Chia; a grande fertilidade desta região agradou à hoste; mas, depois de metade ter passado, a ponte que atravessava o rio desmantelou-se e não se podia andar para diante nem para trás, pois a região estava rodeada de pântanos movediços que a cercavam à maneira de abismo.

As causas das invasões importam-nos pouco. Crescimento demográfico ou atração por territórios mais ricos, como Jordanes invoca, foram motivos que provavelmente só atuaram na seqüência de um impulso inicial que poderia muito bem ter sido uma modificação do clima, um arrefecimento que, da Sibéria à Escan­dinávia, teria feito diminuir as terras de cultivo e de criação de gado dos povos bárbaros e os teria posto em movimento, empur­rando-se uns aos outros, para sul e para oeste até as Finisterras ocidentais: a Bretanha, que iria ser a Inglaterra, a Gália, que seria a França, a Espanha, em que só o sul tomaria o nome dos Vânda­los (Andaluzia) e a Itália, que só no norte, na Lombardia, conser­varia o nome dos seus tardios invasores.

Maior importância têm certos aspectos dessas invasões. Em primeiro lugar, elas foram, quase sempre, uma fuga para diante. Os invasores eram fugitivos pressionados por outros, mais fortes ou mais cruéis que eles. A sua crueldade era muitas vezes a crueldade do desespero, em especial quando os Romanos lhes re­cusavam o abrigo que eles tantas vezes pacificamente lhes pediam. No fim do século IV, Santo Ambrósio compreende bem estas invasões em cadeia: Os Hunos precipitaram-se sobre os Alanos, os Alanos sobre os Godos, os Gados sobre os Taifalas e os Sármatas; os Gados, expulsos da sua pátria, expulsaram-nos a nós para o Ilírico. E ainda não acabou.

Quanto a Jordanes, acentua que, se os Godos pegaram em armas contra os Romanos em 378, foi porque tinham sido confi­nados num território exíguo e sem recursos, onde os Romanos lhes vendiam a peso de ouro carne de cão e de animais repugnantes exigindo-lhes os filhos como escravos em troca de uma escassez alimento. Foi à fome que os armou contra os Romanos. De fato, há duas atitudes romanas tradicionais perante os Bárbaros. A prin­cípio, conforme as circunstâncias e os homens dispunham-se a acolher os povos que se lhes apinhavam à porta e, mediante o estatuto de federados, respeitavam-lhes as leis os costumes e a originalidade; desse modo lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito, soldados e camponeses - minorando a crise de mão-de-obra militar e rural.

Os imperadores que praticaram esta política não ficaram com boa reputação junto dos tradicionalistas, para quem os Bárbaros eram mais bestas que seres humanos - e esta segunda atitude foi mais freqüente.

Constantino - diz o historiador grego Zózimo - abriu a porta aos Bárbaros foi ele a causa da ruína do Império.

Amiano Marcelino denuncia a cegueira de Valens, que em 376 organizou a travessia do Danúbio pelos Godos. Foram envia­dos muitos agentes com o encargo de arranjar meios de transporte para aquele povo selvagem. Tomou-se todos os cuidados para que nenhum dos futuros destruidores do Império Romano, mesmo que sofresse de doença mortal, não ficasse na outra margem . E tanto zelo, tanto barulho, para acabar na ruína do mundo romano E o mesmo quanto a Teodósio, grande amigo dos Godos, amator generis Gothorum segundo Jordanes.

De entre esses Bárbaros, alguns ganharam especial fama de fieldade e brutalidade. Eis os Hunos na descrição célebre de Amiano Marcelino: A sua ferocidade ultrapassa tudo sulcam de profundas cicatrizes, com um ferro, as faces dos recém-nascidos para lhes destruir as raízes dos pêlos; e desse modo crescem e envelhecem imberbes e sem graça, como eunucos. Têm o corpo atarracado, os membros robustos e a nuca grossa; a largura das costas grandes assustadores. Dir-se-ia que são animais de duas patas ou então daquelas figuras mal desbastadas, em forma de troncos de árvores, que ornamentam os parapeitos das pontes. Os Hunos não cozinham nem temperam aquilo que comem; alimentam-se de raízes selvagens ou de carne crua do primeiro animal que apanham e que aquecem por algum tempo na garupa do cavalo, entre as coxas. Não têm abrigos. Não usam casas nem túmulos. Cobrem-se com um tecido grosseiro ou com peles de ratos do campo, cozidas umas às outras; não têm uma roupa para estar em casa e outra para sair; desde que enfiam aquelas túnicas de cor desbotada, só as tiram quando elas estão a cair aos bocados. Não põem pé em terra nem para comer nem para dormir e dor­mem deitados sobre o magro pescoço da montada, onde sonham à sua vontade.

E os Lombardos, no século VI, conseguirão - depois de tantas atrocidades que cometeram - fazer-se notar pela ferocidade: selvagens de uma selvajaria pior que a habitual selvajaria ger­mânica.

Claro que os autores destes textos são, principalmente, pagãos, animados, como herdeiros da cultura greco-romana, de ódio ao Bárbaro, que, destruindo-a ou aviltando-a, aniquila por fora e por dentro essa civilização. Mas muitos cristãos, para quem o Império Romano é o berço providencial do cristianismo, sentem pelos invasores a mesma repulsa.

Santo Ambrósio vê nos Bárbaros inimigos destituídos de humanidade e exorta os cristãos a defender com as armas “a pátria contra a invasão bárbara”. O bispo Synesius de Cirene chama Citas - sinônimo de barbárie - a todos os invasores e aplica­-lhes o verso da Ilíada em que Homero aconselha a “expulsar esses cães malditos trazidos pelo Destino”.

Mas em outros textos o sino toca de outro modo. Santo Agos­tinho, embora deplorando as infelicidades dos Romanos, recusa-se a ver na tomada de Roma por Alarico, em 410, mais que um facto corrente, doloroso como tantos outros que a história romana conheceu; e acentua que, ao contrário da maioria dos generais romanos vitoriosos, que se distinguiram pelo saque das cidades que conquistavam e pelo extermínio dos seus habitantes, Alarico acedeu a considerar as igrejas cristãs como locais de asilo e res­peitou-as. Tudo o que de devastações, morticínios, pilhagens, incêndios e maus tratos se cometeu neste recente desastre de Roma foi obra dos costumes da guerra. Mas aquilo que sucedeu de maneira nova, essa selvajaria bárbara que, por prodigiosa mu­dança da face das coisas, se mostrou tão suave a ponto de escolher e indicar, para as encher de povo, as mais vastas basílicas, nas quais ninguém seria tocado, das quais ninguém seria retirado, às quais muitos foram levados por inimigos compadecidos para que fossem libertados e das quais ninguém seria levado em cativeiro nem por cruéis inimigos: isso foi em nome de Cristo, é aos tempos cristãos que deve ser atribuído.

Mas o texto mais extraordinário vem de um simples monge, que não tem as mesmas razões que os bispos aristocráticos para poupar a ordem social romana. Cerca de 440, Salviano, que se intitula padre de Marselha e é monge na ilha de Lérins, escreve um tratado, Do Governo de Deus, que é uma apologia da Provi­dência e uma tentativa de explicação das grandes invasões.

A causa da catástrofe é interna. São os pecados dos Romanos incluindo os cristãos - que destroem o Império, entregue pelos seus vícios aos Bárbaros. Os Romanos eram contra si próprios, inimigos ainda piores que os inimigos do exterior, pois, embora os Bárbaros já os tivessem quebrado, eles ainda se destruíam mais por si próprios.

De resto, que havia a reprovar a esses Bárbaros? Ignoravam a religião e, se pecavam, era inconscientemente. A sua moral e sua cultura eram outras. Porque condenar aquilo que era dife­rente?

O povo saxônico é cruel, os Francos são pérfidos, os Gépidas são desumanos e os Hunos são impudicos. Mas os seus vícios serão tão culposos como os nossos? A impudicícia dos Hunos será tão criminosa como a nossa? A perfídia dos Francos será tão digna de censura como a nossa? Um alamano embriagado será tão digno de repreensão como um cristão embriagado? Um alano rapaz será tão condenável como um cristão rapaz? A impostura do huno ou do gépida será de admirar quando eles não sabem que a impos­tura é um pecado? O perjúrio de um franco será algo de inaudito quando ele pensa que o perjúrio é uma vulgar maneira de falar e não um crime? Acima de tudo - além das suas opções pessoais, que podem ser discutidas - Salviano dá-nos as razões profundas do êxito dos Bárbaros. Sem dúvida que houve superioridade militar. A supe­rioridade da cavalaria bárbara dá à superioridade do armamento todo o seu valor. A arma das invasões é a espada comprida, cortante e ponte aguda, uma arma de corte cuja terrível eficácia é a fonte real dos exageros literários da Idade Média: capacetes abertos, cabeças e corpos fendidos a meio, incluindo por vezes o cavalo. Amiano Marcelino anota com horror um feito de armas deste gênero e desconhecido dos Romanos. Mas haviam bárbaros nos exércitos romanos; e, passada a surpresa dos primeiros embates, uma superioridade militar depressa é assimilada e compartilhada pelo adversário.

A verdade é que os Bárbaros beneficiaram da cumplicidade ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o êxito das invasões bárbaras. Ouçamos Salviano: Os pobres estão despojados, as viúvas gemem e os órfãos são pisados a pés, a tal ponto que muitos, incluindo gente de bom nascimento e que recebeu educação superior, se refugiam junto dos inimigos. Para não perecer à perseguição pública, vão procurar entre os Bárbaros a humanidade dos Romanos, pois não podem suportar mais, entre os Romanos, a desumanidade dos Bárbaros. São dife­rentes dos povos onde buscam refúgio; nada têm das suas manei­ras, nada têm da sua língua e, seja-me permitido dizer, também nada têm do odor fétido dos corpos e das vestes dos Bárbaros; mas preferem sujeitar-se a essa dissemelhança de costumes a sofrer, entre Romanos, a injustiça e a crueldade. Assim, emigram para os Godos ou para os Bagaldos, ou para os outros bárbaros que em toda a parte dominam, e não têm de que arrepender-se com o auxílio. Pois gostam mais de viver livres sob a aparência da escravidão que de serem escravos sob a aparência da liberdade. O nome do cidadão romano, que outrora não só era muito apre­ciado, mas comprado por alto preço, é hoje em dia repudiado e evitado, já não, é apenas considerado pouco valioso mas mesmo abominável. Daí que mesmo aqueles que não fogem para os Bárbaros se vejam também forçados a fazerem-se bárbaros, como sucede à maioria dos espanhóis e a uma notável parte dos gau­leses e a todos os que, em toda a extensão do mundo romano, a iniqüidade romana obriga a já não ser romanos. Falamos agora dos Bagaldos, que, desapossados por juízes mals e sanguinários, feridos, mortos e tendo perdido o direito da liberdade romana, perderam também a honra do nome romano. E chamamos-lhes rebeldes e homens perdidos quando fomos nós que os obrigamos a serem criminosos.

Tudo fica dito nestas frases: a conivência entre o bárbaro e o revoltado, o godo e o bagaldo, e a evolução das massas popu­lares romanas antes da chegada dos Bárbaros. O erudito que disse que a civilização romana não morreu de morte natural mas que foi assassinada disse três contra verdades, pois a civilização romana, na realidade, suicidou-se e este suicídio nada teve de natu­ral nem de belo; e não está morta, pois as civilizações não são mortais. A civilização romana sobreviveu, mediante os Bárbaros, ao longo de toda a Idade Média e para além dela.

A bem dizer, a instalação de muito bárbaro em solo romano fez-se a contento de todos. Cloro, panegirista de Constança, decla­rava no princípio do século IV: «O chamava trabalha para nós; ele, que durante tanto tempo nos arruinou com as suas pilhagens, trata agora de nos enriquecer ei-lo vestido de camponês, ei-lo que se mata a trabalhar, que freqüenta os nossos mercados ei-lo leva a vender os seus animais. Grandes espaços ocultos dos territórios de Amiens, de Beauvais, de Troyes, de Langres verdejam agora por obra dos Bárbaros. E o tom é o mesmo noutro gaulês, o retórico Pacatus, que em 389 foi a Roma fazer o pânico de Teodósio. Felicitou o imperador por ter feito dos Godos Ini­migos de Roma, camponeses e soldados ao seu serviço.

No meio das provações, há espíritos clarividentes que perce­bem a solução do futuro: a fusão entre Bárbaros e Romanos. O retórico Themistius predizia, no fim do século IV de mo­mento as feridas que os Godos nos fizeram ainda estão frescas; mas bem depressa teremos neles ,companheiros de mesa e de combate, participantes das funções públicas.

Afirmações demasiado otimista, pois, se, a longo prazo, a realidade se assemelhou ao quadro um tanto ou quanto de Themistius, foi com a notável diferença de que foram os Bárbaros, vencedores, quem admitiu a seu lado os Romanos ven­cidos.

Mas a aculturação dos dois grupos foi desde o início facilitado por determinadas circunstâncias.

Os Bárbaros que se instalaram no século V no Império Ro­mano não eram aqueles povos jovens mas selvagens, ainda há pouco saídos das florestas ou das estepes, que foram descontos pelos seus detratores da época ou pelos admiradores modernos destes. Embora não fossem, como Fustel de Coulanges exagera­damente pretendeu restos de uma raça enfraquecida, despeda­çada pelas suas lutas internas, enervada por uma série de evoluções sociais e que perdeu as suas instituições, tinham já evo­luído bastante durante as deslocações, em vários casos seculares, que por fim os lançaram sobre o mundo romano. Tinham visto muito, tinham aprendido muito e não tinham deixado de o fixar. Os caminhos percorridos tinham-nos levado a constatar com culturas e civilizações em que recolheram costumes, artes e téc­nicas. A maior parte deles tinha sofrido, direta ou indiretamente, a influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano e do pró­prio mundo greco-romano especialmente da região oriental deste, que, enquanto se ia fazendo bizantina, continuava a ser a mais rica e mais esplendorosa.

Traziam consigo técnicas metalúrgicas muito evoluídas, as incrustações, as técnicas da ourivesaria, a arte do couro e a admi­rável arte das estepes, com os seus motivos animalescos estilizados. Tinham sido em muitos casos, seduzidos pela cultura de impérios vizinhos e criara-se neles uma admiração pelo seu saber e pelo seu luxo, sem dúvida desajeitada e superficial mas não isenta de respeito.

Os Hunos de Átila não eram, de maneira alguma, os sel­vagens descritos por Amiano Marcelino. Se bem que seja len­dária a imagem de uma corte de Átila aberta aos filósofos, é notável que em 448 um médico gaulês de nomeada, Eudóxio, comprometido por ligações com os Bagaldos, se tenha refugiado junto dos Hunos. Nesse mesmo ano, um embaixador romano de Constantinopla junto de Átila, Prisco, encontra um romano da Mésia, ex-prisioneiro que se deixou ficar com os novos senhores, casado com uma mulher bárbara, que lhe gabou a organização social dos Hunos em comparação com a do mundo romano.

Jordanes, que, na verdade, é parcial e escreve no século VI, diz dos Godos o seguinte esta nação teve um rei, Zalmóxis, que foi filósofo e cuja ciência prodigiosa é atestada pela maioria dos cronistas; já antes tinha tido homens de grande sabedoria:
Zeutas, e depois dele Dicineu. Os Godos não tiveram, portanto, falta de professores para aprender filosofia e sempre foram mais ilustrados que a maior parte dos Bárbaros; quase igualaram os Gregos, como no caso de Dion, que escreveu em língua grega a história dos Godos.

Outro fato de capital importância transformara a face dos invasores bárbaros. Embora uma parte deles se tivesse mantido pagã, outra, e não pequena, cristianizara-se. Mas, por um curioso acaso que viria a mostrar-se carregado de conseqüências, esses Bárbaros convertidos - Ostrogodos, Visigodos, Burgúndios, Vân­dalos e, mais tarde, Lombardos - tinham sido convertidos ao arianismo, que, depois do concílio de Niceia, era uma heresia. De facto, tinham sido cristianizados pelo apóstolo dos godos, Ulfila, neto de capadócios cristãos aprisionados pelos Godos em 264. A criança, “gotizada”, fora enviada, ainda jovem, para Cons­tantinopla, onde fora ganha para o arianismo. Voltando para os Godos como bispo missionário, traduziu a Bíblia para o gótico a fim de edificá-los e assim os fez heréticos. De modo que aquilo que poderia ter sido um laço religioso foi, pelo contrário, um tema de discórdia e gerou ásperas lutas entre os Bárbaros, arianos, e os Romanos, católicos.

Havia ainda a atração exercida pela civilização romana sobre os Bárbaros. Os chefes bárbaros não só chamaram romanos para seus conselheiros como muitas vezes procuraram macaquear os costumes romanos e ornar-se com títulos romanos: cônsules, patrícios, etc. Não se apresentavam como inimigos das instituições romanas mas como seus admiradores. Quando muito, podiam ser tomados por usurpadores eram, simplesmente, a última geração daqueles estrangeiros, Espanhóis, Gauleses, Africanos, Ilírios e Orientais, que aos poucos tinham chegado às mais altas magis­traturas e ao Império. Melhor ainda: nenhum soberano bárbaro ousou fazer-se imperador por si. Quando, em 476, Odoacro depôs o imperador do Ocidente Rômulo Augústulo, enviou as insígnias imperiais ao imperador Zenão de Constantinopla dizendo-lhe que um só imperador bastava. Admiramos mais os títulos conferidos pelos imperadores que os nossos, escreve um rei bárbaro a um imperador. O mais poderoso de todos, Teodorico, tomou o nome romano de Flavius e escreveu ao imperador: ego qui sum servus vester et filius, (eu, que sou vosso escravo e vosso filho), declarando-lhe que a sua única ambição era fazer, do seu reino uma imitação do vosso, uma copia do vosso filho apenas sem rival). Foi preciso esperar pelo ano 800 e por Carlos Magno para que um chefe bárbaro ousasse fazer-se imperador.


Deste modo, cada um dos dois campos parecia ter caminhado ao encontro do outro. Os Romanos, decadentes, barbarizados por dentro, rebaixavam-se ao nível dos Bárbaros, ainda mal talhados, só polidos por fora.

Mas ver nas invasões bárbaras um episódio de instalação pací­fica e, como já foi dito jocosamente, um fenômeno de “deslocações turística”, estaria longe da realidade.

Aqueles tempos foram, sem dúvida, e antes do mais, tempos de confusão. Confusão devida, em primeiro lugar, à própria mis­tura dos invasores. No caminho, as tribos e os povos tinham-se combatido, tinham-se subjugado uns aos outros, tinham-se mis­turado. Alguns deles formaram confederações efêmeras, como os Hunos, que englobaram no seu exército os restos de Ostrogodos, Alanos e Sármatas vencidos. Roma tentou romanizar a pressa os primeiros recém-chegados para deles fazer seu instrumento contra os seguintes, ainda mais bárbaros. O vândalo Stilicon, tutor do imperador Honório, utilizou contra o usurpador Eugénio e o seu aliado franco Arbogast um exército de Godos, Alanos e Cauca­sianos.

Acontecimentos menores, mas significativos numa frente essencial - a frente do Danúbio médio, de Passau a Klosterneu­burg -, enchem essa história exemplar que é a Vida de S. Seve­rino, da segunda metade do século V, tal como foi contada pelo seu discípulo Eugippius. Severino, vindo do Oriente mas latino, tenta organizar em redor dos restos das populações romanas do Nórico ribeirinho, com o auxílio da tribo germânica dos Rúgios e dos seus «reis», a resistência à pressão de outros invasores pres­tes a forçar a travessia do rio - Alamanos, Gados, Hérulos, Turín­gios. O monge-eremita percorre as praças fortificadas onde se refu­giou a população romano-rúgia, lutando contra a heresia, o paga­nismo e a fome, e opõe às investidas dos Bárbaros, na falta de armas materiais, as armas espirituais. Previne os habitantes con­tra as ações imprudentes: sair dos acampamentos para apanhar frutos ou para as colheitas é expor-se a ser morto ou feito prisio­neiro pelo inimigo. Intimida ou faz vergar os Bárbaros com a palavra, os milagres, o poder das relíquias dos santos. Mas não tem ilusões. Quando algum otimista ou inconsciente lhe pede que obtenha do chefe rúgio o direito de fazer comércio, responde: para quê pensar em mercadorias em lugares onde não poderão vir mer­cadores? Eugippius descreve maravilhosamente a confusão dos acontecimentos ao dizer que a fronteira do Danúbio está perma­nentemente perturbada e em situações ambíguas: utraque Pan­nonia ceteraque confinia Danuvii rebus turbabantur ambiguis. Toda a organização militar, administrativa e econômica se esboroava. A fome instalava-se. As mentalidades e as sensibilidades estavam cada vez mais embotadas e supersticiosas. E, pouco a pouco, o inelutável ia chegando. As praças caíram umas a seguir às outras em mãos de bárbaros e, por fim, depois da morte do homem de Deus, que fora chefe para todos os fins daqueles gru­pos de gente desamparada, Odoacro resolveu deportar para Itália os que ainda subsistiam. Os deportados levaram consigo os restos mortais de Severino e colocaram a relíquia num mosteiro próximo de Nápoles. Assim foi e assim seria durante dezenas de anos o desenlace freqüente das res ambiguce das invasões.

A confusão aumentava com o terror. E, mesmo que descon­temos os exageros, as narrativas de morticínios e de devastações que enchem toda a literatura do século V não nos deixam dúvidas acerca das atrocidades e destruições que acompanharam os “pas­seios” dos povos bárbaros.

Eis, segundo Oriênsio, bispo de Auch, a Gália depois da grande invasão de 417: Vê com que rapidez a morte pesou sobre todo o mundo, como a violência da guerra atingiu tantos povos. Nem o chão acidentado dos bosques espessos ou das altas montanhas, nem a corrente das ribeiras de rápidos remoinhos, nem o abrigo das cidadelas e dos muros das cidades, nem a barreira do mar, nem as tristes solidões do deserto, nem os desfiladeiros, nem as cavernas encimadas de sombrios rochedos puderam escapar às mãos dos Bárbaros. Muita gente pereceu vitimada pela má fé, pelo perjúrio, pela denúncia dos seus concidadãos. As emboscadas fizeram muito mal, mas também fez muito mal a violência popu­lar. Quem não foi dominado pela força foi dominado pela fome. A mãe sucumbiu tristemente com os filhos e seu esposo, o senhor, caiu em servidão com os seus escravos. Alguns foram pasto dos cães; a muitos, as casas incendiadas lhes tiraram a vida e lhes serviram depois de pira mortuária. Nos burgos, nas propriedades, nos campos, nas encruzilhadas, em todos os sítios, aqui e além ao longo dos caminhos, se vê morte, sofrimento, destruição, fogo e luto. Uma enorme fogueira desfez em fumo toda a Gália.

E a Espanha segundo, o bispo Idácio:

Os Bárbaros espalham-se pelas Espanhas; o flagelo da epi­demia é também violento, a tirania dos exatores pilha recursos e fortunas escondidas nas cidades e a soldadesca esgota o resto. Reina tão atroz penúria que, sob o império da fome, os homens comeram carne humana; houve mães que degolaram os filhos para os cozinhar e com eles se saciar. Os animais, habituados aos cadáveres dos que tinham morrido de fome, das vítimas do ferro e dos que sucumbiram à doença, já matam homens em plena saúde; não contentes de alimentar-se com a carne dos cadáveres, atacam a espécie humana. Assim, os quatro flagelos do ferro, da fome, das epidemias e dos animais devastam tudo em todo o mundo e as predições do Senhor através dos seus profetas realizaram-se.

Eis a macabra abertura com que começa a história do Ocidente medieval. Continuará a dar o tom durante dez longos séculos. O ferro, a fome, as doenças, as feras serão os sinistros protagonistas desta história. Claro que não foram só os Bárbaros que os trouxeram consigo. O mundo antigo tinha já tomado conhecimento deles; e, no momento em que os Bárbaros os desen­cadearam, tendiam já a voltar em força. Mas os Bárbaros deram uma violência inaudita a este vendaval de violência. O gládio, a espada comprida das grandes invasões, que depois será a arma dos cavaleiros, estende doravante a sua sombra mortífera sobre o Ocidente. Antes que lentamente se reate o trabalho construtivo, um frenesi de destruição se apodera durante muito tempo do Ocidente. Os homens do Ocidente medieval são bem os filhos desses Bárbaros, semelhantes aos Alanos descritos por Amiano Marcelino: “O prazer que os espíritos amáveis e pacíficos encon­tram no lazer estudioso encontram-no eles nos perigos e na guerra. A seus olhos, a suprema felicidade é perder a vida no campo de batalha; morrer de velho ou de acidente é um opróbrio e uma cobardia que eles cobrem de horríveis injúrias; matar um homem é um heroísmo para o qual não têm elogios que cheguem. O tro­féu mais glorioso é a cabeleira de um inimigo escalpado; serve de enfeite aos cavalos de guerra. Entre eles não se vê templo nem santuário, nem sequer um nicho coberto de colmo. Uma espada nua, espetada na terra segundo o ritual bárbaro, é o em­blema de Marte; honram-no devotadamente como soberana das regiões que percorrem.

Paixão de destruição que o cronista Fredegário expõe e no século VII pela boca da mãe de um rei bárbaro ao exortar o filho: “Se queres realizar uma· façanha e ganhar nome, destrói tudo o que os outros tiverem construído e mata todo o povo que venceres; pois não és capaz de construir um edifício superior ao que os teus antecessores fizeram e não há mais bela façanha com que possas erguer o teu nome.”

Ora ao ritmo de lentas infiltrações e de avançadas mais ou menos pacíficas ora ao ritmo de bruscas arremetidas acompanha­das de lutas e morticínios, a invasão dos Bárbaros modificou pro­fundamente entre o início do século V e o fim do século VII, o mapa político do Ocidente, que estava sob a autoridade nominal do imperador bizantino.

De 407 a 429, uma sucessão de investidas devastou a Itália, a Gália, a Espanha. O episódio mais espetacular foi o cerco, conquista e pilhagem de Roma por Alanco e os Visigodos no ano de 410. Muitos ficaram estupefato com a queda da Cidade Eterna. “A voz fica-me na garganta e os soluços interrompem-me ao ditar estas palavras - geme S. Jerónimo na Palestina. - Foi conquistada a cidade que conquistou o universo.” Os pagãos acusam os cristãos de terem sido causa do desastre ao expulsar de Roma os deuses tutelares. Santo Agostinho encontra no acontecimento pretexto para na Cidade de Deus definir as relações entre a sociedade terrestre e a sociedade divina. Desculpa os cristãos e reduz o caso às suas proporções: um fato vulgar, trágico, que se repetirá - dessa vez sem efusão de sangue, sine ferro et igne ­em 455 com Genserico e os seus vândalos.

Vândalos, Alanos, Suevos devastam a Península Ibérica.
A instalação dos Vândalos no Sul de Espanha, embora breve, batiza a Andaluzia. Em 429, os Vândalos - os únicos bárbaros que possuíam frota - passaram à África do Norte e conquistaram a província romana de África, ou seja, as atuais Tunísia e Argélia oriental.

Depois da morte de Alarico, os Visigodos refluíram de Itália para a Gália em 412 e depois, em 414, para a Espanha, de onde em 418 retiraram para se instalar na Aquitânia. De resto, a diplo­macia romana atuou em cada uma destas fases·. Foi o imperador Honório quem desviou para a Gália o rei visigodo Ataulfo, e este casou em Narbonne, a 1 de Janeiro de 414, com uma irmã do imperador, Galla Placidia. Foi ainda ele que, depois do assassínio de Ataulfo, em 415, incitou os Visigodos a ir disputar a Espanha aos Vândalos e aos Suevos e depois os chamou novamente para a Aquitânia.

A segunda metade do século V assistiu a mudanças decisivas. A norte, bárbaros escandinavos - Anglos, Jutas e Saxões-, depois de uma série de investidas na Bretanha (a Grã-Bretanha), acabaram por ocupá-la entre 441 e 443. Uma parte dos Bretões vencidos atravessou o canal e instalou-se na Armórica, que passou a chamar-se Bretanha.

Entretanto, porém, o acontecimento mais importante, apesar de efêmero, foi a formação do Império Huno de Átíla. De fato, fez tremer tudo. Em primeiro lugar, como oito séculos mais tarde faria também Gengis-Khan, Átila unificou, por volta de 434, às tribos mongóis que tinham passado ao Ocidente e bateu e absorveu outros bárbaros; durante algum tempo manteve com Bizâncio relações ambíguas, roçando-se pela sua civilização mas espreitando-a, ao mesmo tempo, como a uma presa - tal como Gengis-Khan faria depois com a China - para finalmente se deixar persuadir, depois de uma tentativa nos Bálcãs em 448, a precipitar-se sobre a Gália, onde o romano Etius, graças princi­palmente aos contingentes visigóticos de que dispunha, o deteve em 451 nos campos cataláunicos. O Império Huno desfez-se e as hordas arrepiaram caminho para leste quando, em 453, morreu aquele que ficaria na história, nas palavras de um obscuro cro­nista do século IX, como o “flagelo de Deus”.

Tempos confusos, com estranhas figuras e estranhas situações. Uma irmã do imperador Valentiniano II, Honória, toma por amante o seu intendente. O augusto irmão irrita-se e castiga-a exilando-a para Constantinopla. A princesa, já por temperamento já por despeito, faz chegar um anel às mãos de Átila, que fascina as mulheres. Valentiniano apressa-se a casar a irmã antes que o huno exija a noiva e, com ela, em dote, metade do Império.

Átila, ao voltar da Gália, precipitou-se em 452 sobre o Norte de Itália, tomou Aquileia e levou parte da população sob cativeiro. Seis anos depois, os prisioneiros, que todos julgavam mortos, vol­taram. Muitos deles encontraram as mulheres novamente casadas. O bispo, embaraçado, consultou o papa, Leão o Grande, e este pronunciou a sentença: os repatriados tinham direito às mulheres, aos escravos, aos bens. Mas as mulheres casadas segunda vez não seriam castigadas a não ser que recusassem os antigos maridos: neste caso, seriam excomungadas.

Entretanto, o imperador instalou no Império um novo povo: os Burgúndios, que por algum tempo tinham estado em Worms, de onde tinham tentado invadir a Gália, mas que tinham sofrido sangrenta derrota às mãos de Jétius e dos seus mercenários hunos. O episódio de 436, em que o seu rei Gunther encontrou a morte, será o ponto de partida da epopéia dos Niebelungen. Em 443, os Romanos concederam-lhes a ocupação da Sabóia.

Em 468, os Visigodos de Eurico lançam-se de novo à conquista da Espanha, que concluem em dois anos.

Surgem então Clóvis e Teodorico.

Clóvis é o chefe da tribo franca dos Sábios, que, durante o século V, se deslocou primeiro à Bélgica e depois para o Norte da Gália. Junta em sua volta a maior parte das tribos francas, sub­mete a Gália do Norte vencendo o romano Siágrio em 486 em Soissons, que passa a ser a sua capital, repele na batalha de Tolbiac uma invasão dos Alamanos e conquista finalmente em 507 a Aqui­tânia aos Visigodos, cujo rei, Alarico II, é vencido e morto em Vouillé. Quando Clóvis morre, em 511, os Francos são senhores da Gália com excepção da Provença.

Os Ostrogodos tinham finalmente caído sobre o Império.

Conduzidos por Teodorico, atacaram Constantinopla em 487, foram desviados para Itália e conquistaram-na em 493. Teodorico, instalado em Ravena, ali reinou durante trinta anos e, se os pane­giristas não exageraram muito, deu a conhecer à Itália, que gover­nou com conselheiros romanos - Libério, Cassiodoro, Símaco e Boécio -, uma nova idade de ouro. Ele próprio, que tinha vivido como refém na corte de Constantinopla dos oito aos dezoito anos, era o mais completo e o mais fascinante de todos os bárbaros romanizados. Restaurador da pax romana na Itália, só em 507 interveio contra Clóvis, a quem proibiu que juntasse a Provença à Aquitânia tomada aos Visigodos. Não tinha interesse em ver os Francos chegar ao Mediterrâneo.

No início do século VI, a partilha do Ocidente parece estar garantida entre os Anglo-Saxões, numa Grã-Bretanha completa­mente isolada do continente, os Francos, que têm a Gália, os Burgúndios, limitados à Sabóia, os Visigodos, senhores da Espanha, os Vândalos, instalados em África, e os Ostrogodos, que dominam a Itália.

Em 476, um fato menor passa quase despercebido. Um romano da Panónia, Orestes, que fora secretário de Átila, reúne a seguir à morte do seu senhor, alguns restos do exército: Escires, Hérulos, Turcilingos e Rúgios, e põe-nos ao serviço do Império em Itália. Senhor da milícia, aproveita-se deste fato para depor o imperador Júlio Nepos e fazer proclamar em 475 o seu jovem filho Rómulo. Mas, no ano seguinte, o filho de outro favorito de Átila, o esciro Odoacro, levanta-se contra Orestes à frente de outro grupo de bárbaros, mata-o, depõe o jovem Rómulo e envia as insígnias do imperador do Ocidente ao imperador Zenão de Constantinopla. Este acontecimento parece não ter afetado muito os contemporâneos. Cinqüenta anos depois, um ilírio ao serviço do imperador de Bizâncio, o. conde Marcelino, escrevia na sua crónica: “Odoacro, rei dos Godos, obteve Roma. O Im­pério Romano do Ocidente, que Octávio Augusto, o primeiro Imperador, começara a reger no ano 709 de Roma, acabou com o pequeno imperador Rômulo.”

O século V viu o desaparecimento das últimas grandes perso­nagens que estavam ao serviço do Império do Ocidente: Jétius, o “último romano”, assassinado em 454; Siágrio, entregue pelos Visigodos a Clóvis, que o mandou decapitar em 486; e os bárbaros Estilicão, patrício e tutor vândalo do imperador Honório, executado por ordem do pupilo em 408, Rimicer, suevo que tinha também o título de patrícia e que foi senhor do Império do Ocidente até morrer em 472, e Odoacro, atraído por Teodorico a uma cilada e morto pelo próprio ostrogodo em 493.

Até então, a política dos imperadores do Oriente procurara limitar os estragos: impedir que os bárbaros tomassem Constan­tinopla comprando a peso de ouro o seu recuo, desviá-los para a parte ocidental do Império, contentar-se com uma vaga submissão dos reis bárbaros, a quem eram prodigamente concedidos títulos de patrício ou de cônsul, tentar afastar do Mediterrâneo os invasores.

Paz romana, a tranqüilidade que Roma impunha no seu Império pela força.
amare nostrum não era apenas o centro do mundo romano: era a artéria essencial do seu comércio e dos seus abastecimentos. Em 419, uma lei promulgada em Constantinopla punia com a morte quem ensinasse aos Bárbaros as coisas do mar. Teodorico, como já vimos, retomou essa tradição e impediu Clóvis de chegar ao Mediterrâneo por meio da tomada da Provença. Mas os Vân­dalos tinham ultrapassado essas pretensões ao construir a frota que lhes permitiu conquistar a África e devastar Roma em 455.

A política bizantina modificou-se com o advento de Justiniano em 527, um ano depois da morte de Teodorico em Ravena. A política imperial abandonou a passividade e passou à ofensiva. Justiniano queria reconquistar, senão a parte ocidental do Império Romano por completo, pelo menos o essencial do seu domínio mediterrânico. Pareceu conseguir esse intento. Os generais bizan­tinos liquidaram o reino: vândalo em África (533-534); depois, com maior dificuldade, puderam pôr fim à dominação gótica em Itália (entre 536 e 555); em 554 arrancaram a Bética aos Visigodos de Espanha. Efémeros êxitos que enfraqueceram ainda mais um pouco Bizâncio perante os perigos orientais e esgotaram ainda mais o Ocidente, tanto mais que, a partir de 543, a peste negra viera juntar os seus danos aos da guerra e da fome. A maior parte de Itália, com exceção do exarado de Ravena, de Roma e dos seu arredores, bem como do extremo sul da península, foi per­dida entre 568 e 572 a favor de novos invasores, os Lombardos, empurrados para sul por nova invasão asiática - a dos Á varas. Os Visigodos reconquistaram a Bética no fim do século VI. E a África do Norte foi conquistada pelos Árabes depois de 660.

O grande acontecimento do século VII - até para o Oci­dente - foi à aparição do Islão, com a subseqüente conquista árabe. Veremos mais adiante qual o alcance que para a cristan­dade teve a formação do mundo muçulmano. De momento, exa­minaremos apenas o impacto exercido pelo Islão no mapa político do Ocidente.

A conquista árabe começou por arrancar o Maghreb à Cris­tandade ocidental; depois submergiu a Espanha, facilmente con­quistada aos Visigodos entre 711 e 719, exceptuando-se o Noroeste da península, onde os cristãos se mantiveram independentes. Domi­nou por algum tempo a Aquitânia e, principalmente, a Provença, até que Carlos Martel a deteve em 732 em Poitiers e os Francos a repeliram para sul dos Pireneus, atrás dos quais teve de limitar-se ao perder Narbonne em 759.

De fato, o século VIII foi o século dos Francos. A ascensão dos Francos no Ocidente, apesar de alguns desaires - por exemplo, perante Teodorico -, foi, depois de Clóvis, bastante regular. A grande esperteza de Clóvis esteve na conversão, dele e de todo o seu povo, não ao arianismo, como no caso dos outros reis bár­baros, mas ao catolicismo. Pôde com isso jogar a cartada religiosa e beneficiar de apoio, senão do papado - que era ainda fraco-, pelo menos da poderosa hierarquia católica e do não menos pode­roso monarquismo. Logo no século VI, os Francos conquistaram, entre 523 e 534, o reino dos Burgúndios e, em 536, a Provença.

As partilhas e rivalidades entre os descendentes de Clóvis atrasaram o desenvolvimento dos Francos, que no início do sé­culo VIII pareceu mesmo comprometido pela decadência da dinastia merovíngia - que passou à lenda na imagem dos «reis preguiçosos» - e do clero franco. Nessa altura, os Francos já não eram os únicos ortodoxos da Cristandade ocidental. Os Visigodos e os Lombardos tinham abandonado o arianismo pelo catolicismo; o papa Gregório Magno (590-604) iniciou a conversão dos Anglo­-Saxões, que confiou ao monge Agostinho e seus companheiros; e, graças a Willibrod e Bonifácio, a primeira metade do século VIII viu o cristianismo penetrar na Frisia e na Germânia.

Mas, ao mesmo tempo, os Francos estavam já a aproveitar novamente de todas as suas possibilidades. O clero reformava-se sob a direção de Bonifácio e a jovem e empreendedora dinastia dos carolíngios substituía a desvitalizada dinastia merovíngia.

Os mordomos do palácio carolíngios dominavam, sem dúvida, as rédeas reais do poder havia decénios; mas Pepino o Breve, filho de Carlos Martel, deu um passo em frente ao conferir todo o alcance possível à chefia católica dos Francos. Concluiu com o papa uma aliança favorável a ambas as partes. Apoiado numa falsi­ficação forjada entre 756 e 760 pela chancelaria pontifical - a pretensa Doação de Constantino -, nasceu o Estado pontifical, ou Patrimônio de S. Pedro, fundando o poder temporal do papado, que viria a desempenhar tão importante papel na história política e moral do Ocidente medieval. Em contrapartida, o papa reco­nhecia a Pepino o título de rei (751) e sagrava-o (754) no próprio ano em que surgia o Estado pontifical. Estavam lançadas as bases que, em meio século, iriam permitir à monarquia carolíngia reunir sob o seu domínio a maior parte do Ocidente cristão e, a seguir, restaurar em seu proveito o império do Ocidente.

Mas, durante os quatro séculos que mediaram entre a morte de Teodósio (395) e a coroação de Carlos Magno (800), nascera no Ocidente um mundo novo, lentamente surgido da fusão do mundo romano com o mundo bárbaro. Tomara corpo a Idade Média ocidental.


LEGOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Estampa, 1983.


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COMENTÁRIO POR BRUNA LETÍCIA COLITA

Le Goff apresenta uma fase das transformações na Idade Média, ou melhor, no resultado do que aconteceu na Antiguidade Tardia, às modificações do Império romano com as influências do cristianismo onde ele mesmo coloca “o principal agente de transmissão da cultura romana ao Ocidente medieval”.

Segundo Le Goff, a Idade Média apresentou muitas contradições as quais demoraram dez séculos para serem esclarecidas, e tudo está de certo modo incluído para este caos que se apresenta na Idade Média, tudo é conseqüência desde as invasões e crises no Império Romano.

Os bárbaros afetam o mundo romano, até os camponeses sentiam-se constantemente ameaçados e sua situação estava cada vez mais próxima da dos escravos.

As causas das invasões segundo Le Goff, não são de tanta importância, de modo geral as cita como necessidade, e a crueldade dos bárbaros talvez se explique pelo desespero em que encontravam. Por exemplo, os germânicos viviam numa fria região, com solo ruim, e a eles foi recusado abrigo, que pacificamente alguns povos solicitavam aos romanos e lhes era negada.

Muito interessante, nas palavras de Le Goff, é a noção dos bárbaros, que traz a idéia não somente de povos sanguinários como é comum na noção geral, mas também de povos que sofreram nas “garras” do Império romano, passando fome se tornando escravos e perdendo sua cultura, seus valores.

Os Hunos são descritos por Amiano Marcelino numa visão praticamente de monstros, animais de duas patas, selvagens e grotescos, assim como os Lombardos também são definidos.

Destaca-se as fontes destas definições, a maioria das descrições destes povos é cristã, ou pagã, ou seja: ódio aos bárbaros. Santo Ambrósio, é citado como grande inimigo dos bárbaros, e os vê como cães malditos trazidos pelo destino.

Mas surge um texto, citado por Le Goff extraordinário de Salviano um monge em 440, que contesta pelo pensamento dos bárbaros, o qual é de certa forma ingênuo, pois eles não eram cristãos e as invasões e saques era algo comum, não havendo pecado nem maldade ( do ponto de vista religioso) nenhum. E ainda comenta que os próprios romanos foram destruindo seu grande Império.

Segundo uma narrativa de Oriênsio, bispo de Auch a Gália depois da invasão de 417, ficou em ruínas, nada nem ninguém escapou ileso da grande invasão, “quem não foi dominado pela força, foi dominado pela fome”.

Os bárbaros em sua grande maioria admiravam segundo Le Goff, a cultura e civilização romana adotando em seus reinos o modo de vida e conduta romano.

Várias características foram sendo adotadas conforme influências de outros povos, outras regiões, mas podemos citar que o cristianismo esteve sempre presente e influenciando muitos reinos,principalmente com armas espirituais.

Os Bagaldos foram expulsos e julgados, desapossados, feridos; e ainda os julgam “bárbaros”, mas Le Goff cita que: “E chamamo-lhes de rebeldes homens perdidos quando fomos nós que os obrigamos a ser criminosos”.

O certo segundo Le Goff é que Roma não foi assassinada, nem morta naturalmente, através dos bárbaros ela sobreviveu e ainda está presente, não desapareceu e os bárbaros são responsáveis por essa continuidade.

Em alguns momentos a frieza de Roma era esmagadora ao ponto dos próprios romanos se juntarem a civilização dos bárbaros para se refugiarem devido à grande perseguição que ocorria.

Certamente os bárbaros são grandes responsáveis pelas mudanças da Europa, grandes invasões e investidas marcam principalmente de 407 a 429.

Grandes e inúmeras invasões ocorrem nos seguintes séculos, grandes dominações no início do século VI, parece estar garantida a partilha do Ocidente: Anglo-saxões numa Grã Bretanha, os Francos: Gália, Burgúndios: Sabóia, Visigodos: Espanha, Vândalos:África, Ostrogodos: Itália.

O século VIII é destacado pelos Francos, que se aliaram as forças cristãs e com isso se fortaleceram e conquistaram entre 523-534 o reino dos Burgundiose em 536 a Provença.

Podemos então perceber o apanhado geral aos reinos bárbaros que Le Goff expõe na sua obra, e principalmente a idéia de ligação e importância desses reinos a história da antiguidade tardia numa transição a Idade Média, onde tudo está sendo moldado e preparado para as grandes modificações do poder em que o cristianismo, e tudo que este representa como resposta, apareceria nas realizações dos séculos seguintes.