a) Desaparecimento da realeza borgonhesa.
Clóvis não conseguira anexar o reino borgonhês, que parecia destinado a formar um enclave no reino franco. A posição e a organização da Borgonha pareciam dar a esta realeza hipóteses de perdurar.
Enquadrado pelos planaltos de Champanhe e do Jura, este reino ocupava o corredor rodaniano até Avignon e interceptava' todas as relações entre a Gália e a Itália. Instalados desde 475, os Burgúndios tinham sabido aliar·se às populações romanas e conservar boas relações com o Império. Gondebaud, rei em 485, deixou fama de príncipe humano e inteligente; mandou redigir, sem dúvida por galo-romanos, dois códigos, um para a população das grandes cidades e de Lião, a sua capital a Lex Romana Romanorum, outro para o seu povo, a Lex Burgondionum, chamada depois «Lei Gombette». Estas leis determinaram a partilha das terras e as relações jurídicas entre as pessoas, mas mantiveram a desigualdade entre Bárbaros e Romanos. Porém, parece que a fusão das suas sociedades se fez bastante cedo. O que poderia tê-lo impedido era a fidelidade dos Burgúndios ao arianismo. De facto, se Gondebaud conservou até à morte esta crença religiosa, ele não era nada intolerante e o seu principal conselheiro foi o bispo católico de Viena, Santo Avito. Esta grande personagem da família senatorial dos Aviti, primo e discípulo literário de Sidónio Apolinário, conseguiu levar ao catolicismo o sucessor de Gondebaud, seu filho Sigismundo (516-523). Tudo parecia anunciar um grande reino.
Infelizmente para Sigismundo, os vizinhos do seu reino eram demasiado ousados. Retomando os projectos de seu pai, encorajados pela mãe, Clotilde, sobrinha e vítima de Gondebaud, os filhos de Clóvis invadiram a Burgúndia em 52.3, enquanto, no Sul, os seus aliados astro gados ocupavam as planícies do Baixo Ródano e Sigismundo foi aprisionado e torturado, mas o seu irmão Godomar conseguiu manter-se até 5.34. Um novo ataque dos Francos obrigou-o a fugir e o seu reino foi partilhado entre Childeberto, Clotário e o seu sobrinho Teodeberto. Eles ocuparam mesmo a Provença, que os sucessores de Teodorico, ameaçados por Justiniano, não tiveram possibilidade de defender: a posse de Arles e de Marselha fazia do reino franco uma potência mediterrânica (536). Nada restará da ocupação dos guerreiros de «Gunther» na Gália. Só o nome de uma província, a Barganha, lembrará a efémera permanência destes germanos.
b) A realeza franca no século VI
A conquista da Borgúndia não passa de um episódio da expansão dos Francos em direccão a leste. Os filhos de Clóvis herdaram o ímpeto do pai, impõem o seu domínio aos Turíngeos e aos Bávaros a leste e dominam os Saxões e os Frisões a norte.
Se lhes é possível reunir os seus esforços é porque, contrariamente aos reinos anglo-saxónicos, os reinos francos nascidos das múltiplas partilhas (teilreiche) que a morte de um soberano ocasiona conservam, porém, características comuns e instituições semelhantes.
Destas instituições a principal é a monarquia. Ao contrário dos príncipes godos, o rei merovíngio lembra mais os chefes germânicos que os imperadores. Ele herda dos seus antepassados não só o traje, como os hábitos de guerra e de devassidão. Só o interesse e o capricho o fazem agir e a idéia do bem comum lhe é estranha.
Se certos decretos revelam preocupação pelo bem comum, isso é devido a uma influência eclesiástica. Da mesma forma, o exercício da justiça muitas vezes se confunde com a percepção dos direitos de justiça. O “palácio” continua a ser uma espécie de acampamento que se desloca segundo as necessidades materiais; os dignatários que seguem o rei são os camerarius, que toma conta das câmaras, em especial da do tesouro, o major domus, administrador da villa real, o sinischal, chefe dos lacaios, ou o marischal, responsável pelas cavalariças. Sem dúvida, devemos igualmente mencionar o referendário, de que dependem os serviços administrativos do rei. O merovíngio que reina sobre populações romanas deixou, com efeito, numerosos autos escritos, todos redigidos por galo-romanos e que lembrariam os autos imperiais se as regras do latim neles fossem observadas,
Para fazer aplicar os editos nas diferentes regiões do seu reino, os principes enviam condes francos ou romanos, que, nos limites da cidade, têm plenos poderes: mandam aumentar os impostos segundo o hábito imperial e as taxas indirectas (alfândegas, peagens, direitos sobre as mercadorias, portagens, etc.) para maior proveito do tesouro real; recrutam os exércitos quando rebenta uma guerra com um soberano vizinho; dirigem os debates do tribunal (mallus) e são ajudados nessa tarefa por aqueles que os textos chamam Boni Homines, ou ratchimbourgs, sem dúvida os notáveis da cidade. Os abusos de poder do conde não são raros, mas são denunciados por aquele que se torna uma espécie de defensor da cidade, o bispo.
O bispo merovíngio é, com efeito, igualmente poderoso. Sendo, em geral, galo-romano (dos 536 bispos reunidos nos concílios, entre 475 e 576, 28 têm nomes de origem germânica), os bispos têm a confiança do rei e a simpatia das populações. De origem aristocrática, são quase os únicos a ter uma cultura e, o que é mais importante, possuem numerosas terras. Estes bens, que a caridade e a piedade dos fiéis aumentam continuamente e que mais tarde. graças ao privilégio de imunidade, escaparão ao controlo fiscal do rei, permitem-lhes sustentar os seus clérigos, resgatar os cativos, socorrer os pobres, construir igrejas ou monumentos de interesse público (fortificações, diques, etc.). A isto acrescenta-se o prestígio religioso desses "homens de Deus», pregadores ou taumaturgos, que, no meio da anarquia geral do século VII, aumenta constantemente.
c) A preponderância austrasiana nos séculos VII / VIII. - A acção dos bispos contribui em parte para realizar a fusão entre os diversos povos da Gália. Quando Gregório de Tours escreve a História dos Francos, conta, na verdade, a história de todos aqueles que são súbditos dos Merovíngios e que, conscientemente ou não, se sentem solidários no mesmo destino. Mas essa fusão realizou-se quase exclusivamente nas regiões compreendidas entre o Loire, o Marne e o Escalda (Nêustria). Noutros lados, a influência germânica foi muito fraca (Aquitânia, Borgonha, Provença), nula (Armórica) ou preponderante (regiões do Leste).
São essas regiões, chamadas Austrásia no século VII, que no decurso das guerras civis que se seguem ao reinado de Dagoberto (629-639), vão decidir a sorte da Gália Franca. Uma família descendente de Pepino de Landen (perto de Liege) e de Arnoul, bispo de Metz, consegue impor a sua política aos reis merovíngios e, graças a Pepino de Herstal, vence os Neustrianos (687). A morte deste provoca de novo a anarquia, mas um dos seus bastardos, Carlos, restabelece a situação e tem a sorte de deter perto de Poitiers uma invasão muçulmana (732). Desta vez, a família austrasiana ganha uma situação sólida e o filho de Carlos, Pepino-o-Breve, pode aprisionar o último merovíngio e tomar o seu lugar. Para realizar o que se chamou o «golpe de Estado de 751», Pepino apoiou-se nas forças germânicas do reino, cujo centro de gravidade se desloca das regiões marítimas para os vales do Mosa e do Reno. Mas teve sobretudo o apoio da Igreja e do arcebispo de Mogúncia, São Bonifácio, com quem realizara a reforma eclesiástica na Gália. Além disso, consultado o papa, este aprovou a mudança de dinastia. Enfim, é sagrado o novo rei à maneira dos reis visigodos. A aliança que se estabelece entre a igreja católica e a família carolíngia está destinada a ter futuro.
por RICHE, P. As Invasões bárbaras. Lisboa: europa-América, s/d.veja também Mapas e Cronologias
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