Oriente e Ocidente: A Carne

O grande medo da carne

O paradigma monástico colocou um ponto de interrogação no casamento, na sexualidade e até na diferenciação dos sexos. Pois no paraíso Adão e Eva eram seres assexuados. Se perderam seu es­tado "angélico" de adoradores exclusivos de Deus foi porque, ao menos indiretamente, caíram na sexualidade; e dessa queda na sensualidade começa a deriva de homens e mulheres rumo a um mundo de preocupações próprias dos corações divididos e ligadas ao casa­mento, ao nascimento de crianças e à dura labuta necessária para alimentar bocas esfaimadas.

Expressa nesses termos, a história da queda da humanidade, representada por Adão e Eva, é um espelho fiel da alma dos asceta da época: tremendo diante do envolvimento com as obrigações desastrosas da vida "no mundo' " ele resolve optar pela vida' 'angé­lica" do monge. Pois no mundo rígido das aldeias do Oriente Próximo como nas famílias austeras dos cristãos citadinos, a entrada "no mundo" começa na prática por um casamento que os pais arranjam para os jovens casais desde o início da adolescência.

Expresso de forma radical, como designando o caminho de um "paraíso reconquistado" no deserto, o paradigma monástico ameaça varrer alguns dos mais sólidos sustentáculos da vida" mun­dana" no Oriente mediterrâneo. Implica que os cristãos casados não podem esperar entrar no paraíso porque o paraíso só é acessí­vel àqueles que durante toda a vida adotaram a abstinência sexual de Adão e Eva antes da queda na sexualidade e no casamento. Se a vida do monge pressagia realmente o estado paradisíaco de uma natureza humana assexuada, o homem e a mulher, enquanto monge virgem cuja sexualidade é eliminada pela renúncia, podem vagar juntos pelas sombrias encosras das montanhas da Síria, assim co­mo Adão e Eva outrora viviam nas vertentes floridas do paraíso, preservados da fecundidade e das agitações e dos tormentos do sexo.

A ameaça de uma anulação dos sexos e da indiferença que daí decorreria, face à sexualidade transformada em algo temível nas relações entre homens e mulheres, constitui o grande medo do mun­do oriental do século IV. Provoca reações imediatas por parte dos monges e do clero. Uma virulenta misoginia é a primeira impres­são que o leitor moderno observa na literatura monástica; a cita­ção da Escritura, "Toda carne é como a erva", é interpretada da seguinte forma: os homens e as mulheres, enquanto seres irreme­diavelmente sexuados, são sempre suscetíveis de combustão instan­tânea. Espera-se do bom monge que cuidadosamente envolva a própria mãe em seu manto antes de tomá-la nos braços para atraves­sar um riacho, "pois o contato da carne de uma mulher é como o fogo". Por trás dos relatos ferinos está o desafio permanente de uma alternativa radical. Nos grupos de ascetas cristãos radicais a negação do valor do casamento acompanha uma negação da pró­pria sexualidade, a qual, por sua vez, implica uma negação da di­visão entre o "mundo" e o "deserto". Pois aqueles cujos pés já pisam as encostas do paraíso, uma vez que optaram pela existência "angélica" do monge ou da virgem, podem atravessar com os olhos inocentes da criança os campos, as aldeias e as grandes cidades e misturar-se sem constrangimento com homens e mulheres. Sobre esse ponto Atanásio deve questionar os discípulos de Hierax no Egito. Pensador ascético e respeitado, Hierax se pergunta se as pessoas ca­sadas têm um lugar no paraíso, mas, ao mesmo tempo, espera de seus austeros discípulos que sejam servidos sem perigo por compa­nheiras virgens. João Crisóstomo prega contra as "associações es­pirituais" de monges e virgens na cidade de Antióquia. Mais tar­de a agitação dos messalianos - monges dedicados à vida errante e à oração perpétua e notoriamente indiferentes à presença de mu­lheres em seus bandos miseráveis - tornou-se epidêmica na Síria e na Ásia Menor oriental.


A carne como revelador

Em conseqüência da necessidade de dominar o radicalismo implícito do paradigma monástico, o Oriente mediterrâneo torna­-se uma sociedade explicitamente organizada e de modo ainda mais agudo que antes em termos de generalização da vergonha sexual. Desde os chefes de famílias das classes sociais superiores até os he­róicos "homens do deserto", todos devem partilhar um código de abstenção sexual, independentemente da classe e da profissão. Em Antióquia, por exemplo, João Crisóstomo ousa atacar os banhos públicos, ponto de reunião social por excelência da sociedade cívi­ca da classe social superior. Critica o hábito das mulheres da aris­tocracia de exibirem a uma multidão de servos suas carnes bem nu­tridas, cobertas apenas de pesadas jóias que constituem a marca de sua elevada posição. Em Alexandria os farrapos dos pobres devem provocar no crente visões perturbadoras: medo inconcebível nos séculos anteriores, em que essa nudez parcial era tida como indigna, mas dificilmente como fonte de inelutável perigo moral.

No tocante aos casais cristãos do Oriente mediterrâneo, neste período e nos seguintes, deparamos com um paradoxo. Os heróis e os conselheiros espirituais dos kosmikoi, ou "homens no mun­do", muitas vezes são os "homens do deserto". Os kosmikoi gos­tam muito de visitar os "homens do deserto" ou de receber esses homens cujo corpo exala "o doce olor do deserto". Como vimos, a literatura monástica, obra dos ''homens do deserto" suscitou uma inquietação excepcional no que se refere à abstinência sexual. Apresenta o impulso sexual como potencialmente atuante no sentido do mal em todas as situações sociais que reúnam homens e mu­lheres. Contudo, apesar disso, a preocupação dos' 'homens do de­serto" quanto à sexualidade não interferiu com a dos homens ca­sados "no mundo".

Os mestres espirituais do deserto, em especial Evagro e João Cassiano, seu intérprete latino, tratam os fatos sexuais como o in­dicador privilegiado da condição espiritual do monge. As visôes sexuais e as manifestaçôes do impulso sexual através dos sonhos e das poluções noturnas são examinadas com uma atenção inimagi­nável nas tradições anteriores de introspecção e sem se levar em conta ocasiões eventuais de contato com o sexo oposto. Encarar a sexualidade dessa forma constitui uma mudança revolucionária. De­pois de ter sido considerada como fonte de "paixões", cujas inci­tações anormais podiam romper a harmonia da pessoa bem edu­cada se fosse desencadeada por objetos de desejo sexual- homens e mulheres sedutoras - a sexualidade doravante é tratada como um sintoma que trai as paixões. Torna-se a janela privilegiada através da qual o monge pode perscrutar as regiões mais privadas de sua alma. Na tradição de Evagro, as visões sexuais são estudadas minu­ciosamente, pois devem revelar de modo concreto (ainda que ver­gonhoso!) a presença na alma de impulsos ainda mais mortais por­que identificáveis com menor facilidade: o frio aguilhão da raiva, do orgulho e da avareza. Por isso é que a diminuição das visões sexuais e até a modificação das poluções noturnas são observadas de perto como um índice dos progressos que o monge realizou ru­mo ao estado de transparência de um coração dedicado ao amor de Deus e do próximo. "Pois vós possuístes minhas partes mais íntimas", escreve João Cassiano ao relatar palavras de Abba Chae­remon: "E assim será encontrado à noite como é durante o dia, em seu leito como em oração, sozinho ou rodeado pela multidão." A lenta pacificação dos objetivos intensamente privados, ligados aos sonhos sexuais, proclama o desaparecimento da cólera e do or­gulho, monstros muito mais temíveis cujos passos pesados ressoam na alma sob a forma de visões sexuais. Feito isso, o monge vedou a última fenda, fina como uma lâmina, que subsistia no "coração simples".


No oriente: a vida conjugal:

A doutrina da sexualidade como sintoma privilegiado da trans­formação pessoal é a mais importante transferência jamais alcan­çada do velho e ardente desejo, judeu e cristão, de um "coração simples". Tal qual foi desenvolvida por um intelectual como Eva­gro, é a aproximação mais original da introspecção que nos vem do mundo antigo tardio. Entretanto mal se refere à experiência dos leigos. As portas da família cristã, que vimos se interpor silencio­samente entre o jovem cristão e sua cidade, considerada como fon­te de direção moral, fecham-se também ao estranho novo sentido da sexualidade que os "homens do deserto" aprofundaram para seu uso; a moral conjugal e sexual dos primeiros cristãos bizantl­nos é austera, porém não coloca problemas. Suas regras fornecem indicaç·ões claras aos jovens que desejam permanecer' 'no mundo". Em todo o Oriente Próximo bizantino as normas da vida conjugal são tão familiares e inabaláveis na aparência como as estruturas da lei secular e da administração que, na época de Justiniano, sempre encerram o Oriente Próximo no sentimento de um império com fronteiras tão' 'firmes como estátuas de bronze".

Na moral cristã oriental os fatos sexuais não são apresentados pelo clero como particularmente misteriosos. Ou se vive com eles, como pessoa casada e "no mundo", ou se renuncia a eles para que o corpo se impregne "do doce olor do deserto". Esta segunda es­colha deve ser feita bem cedo. Terminou a época das tempestuosas conversões da maturidade. Desde o ano 500 é importante que o rapaz e sobretudo a moça optem por uma ou outra via, a favor ou contra o fato de viver' 'no mundo" como pessoa casada, antes que as pesadas obrigações sociais do noivado recaiam sobre elas ao redor da idade de treze anos. Passado esse momento, a incerteza fatalmente leva às conseqüências devastadoras que acarreta um desejo do deserto insatisfeito ao longo da vida conjugal que se seguirá. Muito freqüentemente a escolha que um dos pais poderia ter feito é adiada por uma geração e recai sobre um dos filhos. O século VI é aquele das crianças santas, dos recrutas infantis da vida ascé­tica. Assim, Marta, a piedosa mãe de Simeão, o Jovem de Antió­quia, cria o filho de modo que ele se torne o famoso estilista, em­poleirado em sua coluna. Santo aos sete anos de idade! A própria Marta se casara contra a vontade com um novo rico, o companhei­ro artesão de seu pai. O jovem Simeão é o substituto encarregado de realizar o desejo de santidade de Marta - desejo reprimido, como ocorria freqüentemente, por um casamento de conveniência.

No mundo mediterrâneo oriental, evitam-se as mulheres com maior cuidado ainda do que antes. As antigas fronteiras imaginá­rias entre os sexos reforçam-se em numerosos pontos. Isso exige que as mulheres menstruadas sejam excluídas da eucaristia. Nas cida­des bizantinas, entretanto, as pessoas comuns viviam em aparta­mentos muito próximos, em geral ao redor de um pátio central, e a segregação devia ser meramente teórica. A arquitetura do ha­rêm, que prevê uma separação total dos aposentos das mulheres, no século VI ainda não se manifesta nas cidades cristãs do Oriente Próximo. Entre os homens sabe-se que os "calores" da juventude podem muitas vezes aliviar-se graças a relações sexuais pré-maritais. Nesse ponto a única contribuição da tradição ascética é a tendên­cia a perguntar, mesmo aos penitentes masculinos, se "perderam a virgindade" e em que circunstâncias. Três séculos antes a mesma pergunta teria parecido muito estranha a um homem para quem a "virgindade" era questão exclusiva de suas irmãs e filhas.


A realidade bizantina...

O casamento precoce é proposto aos jovens de ambos os sexos como um quebra-mar que protege o homem cristão das vagas agi­tadas da promiscuidade adolescente. Entretanto até um moralista tão penetrante como João Crisóstomo não encontra nada de pro­blemático no ato sexual realizado nas águas tranqüilas da vida con­jugal legal. As antigas restrições sempre limitam as relações, po­rém se referem principalmente ao quando e como se realizam. A norma que se queria manter sobre a menstruação e a gravidez conjuga-se com a obrigação de conservar a abstinência durante as festas da Igreja. Entretanto, quando autorizada, a experiência das relações entre parceiros casados é considerada, sem nenhuma re­serva, como implícita. E mais, os médicos continuam afirmando que só a realização apaixonada e agradável para os dois parceiros de um ato de amor voluptuoso pode garantir a concepção, assim Como a qualidade do "temperamento" da criança, esse equilíbrio entre os humores quentes e frios que faz dela um menino ou uma menina, um indivíduo doentio ou cheio de saúde.

Voltemos pela última vez para a sociedade dos primeiros ''ho­mens no mundo" bizantinos, agora cercados, mesmo que a uma prudente distância, pelos imponentes ''homens do deserto": uma sociedade urbana muito antiga vê seus derradeiros dias. Fora das portas da basílica e das paredes da casa cristã, a cida­de permanece violentamente profana e sexualmente indisciplina­da. Agora pode ser mantida por notáveis cristãos em nome de um imperador cristão ostensivamente piedoso. Na cidade, contudo, as moças nuas das classes sociais inferiores continuam fazendo as de­lícias dos cidadãos das classes superiores de Comtantinopla. Elas se entregam durante os grandes espetáculos náuticos em Antió­quia, Gerasa e outros lugares. Na "cidade bendita" de Edessa, a mais velha cidade cristã do Oriente Próximo, as ágeis dançarinas de pantomima continuam turbilhonando no teatro. Uma estátua de Vênus nua ergue-se diante dos banhos públicos de Alexandria; diz-se que faz o vestido das adúlteras levantar-se acima da cabeça; finalmente será retirada não por um bispo, mas pelo governador muçulmano, no fim do século VII. Ainda em 630, em Palermo, tre­zentas prostitutas provocam um motim contra o governador bizan­tino quando ele entra nos banhos públicos; conhecemos esse inci­dente porque o governador, um bom bizantino que esperava do clero que cumprisse seu dever para com a cidade, satisfizera seu pedido nomeando o bispo para o cargo de impetor imperial dos bordéis, o que lhe valeu uma reprimenda do papa ocidental, cho­cado. O que resra da cidade antiga no Oriente bizantino não se enquadrou visivelmente, em todos os aspectos, com os códigos morais cujo exemplo os monges dão aos leigos.


...No ocidente: o paraiso reconquistado

Deixemos agora o "deserto" e o "mundo" de Bizâncio para considerar esses problemas da sexualidade do modo como os vi­ram santo Agostinho e o clero latino que o sucedeu. Ao longo dos escritos do bispo de Hipona, elaborados nos decênios que prece­dem sua morte em 430, um espírito de uma poderosa individuali­dade impõe um sentido novo à sexualidade e nos faz pressentir os Contornos do mundo que se formará ao redor dos bispos da Igreja católica nas províncias do Ocidente após o fim do Império.

Primeiro, é evidente que o paradigma monástico, baseado no sentimento da glória de um Adão e de uma Eva anteriores ao mun­do social e à sexualidade, que tanto perturbou e torturou os bispos do Oriente mediterrâneo, não atinge o bispo do Ocidente latino. Agostinho firmemente afasta esse postulado. A sociedade humana, que compreende o casamento e a sexualidade. não é de modo ne­nhum a pior de todas. uma etapa transitória da humanidade que a nostalgIa de uma majestade "angélica" e perdida do homem torna impraticável. Para ele, Adão e Eva nunca foram seres assexuados, Usufruíram no paraíso uma existência plenamente conjugal. A ale­gria de se perpetuar por meio dos filhos lhes foi concedida, e Agos­tinho não vê nenhuma razão para que tais filhos não tenham sido concebidos no decorrer de um ato sexual acompanhado de sensa­ções de intenso e sério prazer. Para o bispo de Hipona o paraíso não é uma antítese cintilante da vida ''no mundo". É "um lugar de paz e alegrias harmoniosas", não a ausência de uma sociedade estabelecida, como o deserto, mas, sim, uma sociedade estabeleci­da como deveria ser, quer dizer, livre das tensões inerentes a suas condições atuais. O paraíso e a experiência de Adão e Eva no pa­raíso fornecem um paradigma de intercâmbios concretos sociais e sexuais. A conduta sexual dos leigos casados será julgada em rela­ção a esse paradigma e considerada fraca, pois a condição humana decaiu. Pois, se o paraíso pode ser apresentado como um estado plenamente social, a sombra do paraíso reconquistado pode ser vista não só, como em Bizâncio, nos vastos silêncios do deserto, longe de toda vida humana organizada, mas também na solene hierar­quia do serviço e da autoridade, nas basílicas da Igreja católica das cidades. E uma parte desse paraíso reconquistado pode estar liga­da não simplesmente ao abandono público e total do casamento pelo deserto, e sim ao intenso esforço privado dos cônjuges para elevar sua conduta sexual à altura da harmoniosa inocência da qual Adão e Eva deram o exemplo com sua sexualidade conjugal.

Em tal perspectiva, a sexualidade não constitui mais uma ano­malia cuja importância diminui até a insignificância, se compara­da à anomalia muito maior que representa a queda do homem, decaído do estado "angélico". Contrariamente a Evagro e a João Cassiano, portanto, Agostinho não pode esperar que a sexualidade desapareça da imaginação de alguns ''corações simples", educa­dos nas vastas solidões do deserto. Agostinho não pode também concordar com o chefe de família bizantino e seus guias espirituais, que tratam a sexualidade no casamento como sem interesse desde que respeite as formas tradicionais da moderação social. Pois, sendo pouca coisa diante da evidência muito mais ampla da morte, a sexualidade coloca poucos problemas. A João Crisóstomo e outros bispos gregos era possível reduzir as relações sexuais a um meio desordenado porém absolutamente necessário de assegutar a con­rinuidade pela concepção de filhos e de apresentá-las como tais. João Crisóstomo até podia considerá-las como uma vantagempo­sitiva: Deus concedera a sexualidade a Adão depois da queda para que os humanos, uma vez decaídos de sua majestade' 'angéliGl original com a morte, pudessem ao menos perseguir a sombra fugaz da eternidade gerando filhos semelhantes a eles, Para Agostinho, ao contrário, a sexualidade tal como se observa amalmente constitui um sintoma tão íntimo da queda de Adão e Eva quanto a mortalidade: sua natureza amal incontrolável resulta da queda de Adão e Eva tão imediata e seguramente como o contato glacial da morte.


Descoberta da concupiscência

A anomalia da sexualidade, por conseguinte, reside nas expe­riências concretas da própria sexualidade. Essas experiências mar­cam com triste precisão o abismo que separa a sexualidade da qual teriam desfrutado Adão e Eva caso não tivessem decaído e a sexua­lidade do casal cristão atual e decaído. Com a perspicácia de um velho retórico apresentando suas conclusões como uma exposição de evidências conhecidas de todos os homens de coração e inteli­gência, pagãos e cristãos, Agostinho desvenda os aspectos do ato sexual que parecem trair uma profunda ruptura entre a vontade e o instinto. A ereção e o orgasmo prendem-lhe a atenção, pois a vontade aparentemente não atua sobre um e outro: nem o im­potente nem a frígida podem provocar essas sensações por ato da vontade e, quando elas se manifestam, não conseguem fazer com que a vomade as controle. Para Agostinho trata-se de sinais evi­dentes e irreversíveis em todos os seres humanos - homens e mu­lheres, casados ou castos - da cólera de Deus frente ao frio orgulho de Adão e Eva quando contrariaram sua vontade. Uma concupis­cência da carne, sem idade, sem rosto e proteiforme, capaz de se manifestar através desses sinromas muito precisos nas relações se­xuais de pessoas casadas e requerendo uma constanre vigilância mo­ral por parte de pessoas castas, é o sinal da ruptura fatal da pro­funda harmonia que anreriormente reinava entre o homem e Deus, o corpo e a alma, o homem e a mulher, e da qual Adão e Eva usu­fruíram por algum tempo no paraíso. Ali viveram não como celi­batários assexuados, e sim como um casal humano plenamente ca­sado, tão representativos de uma sociedade humana in nuce como qualquer chefe de família de Hipona. A justaposição de um esta­do humano casado ideal com a vida conjugal presente de um leigo era uma comparação eficaz, repetida sem cessar e forçosamente ofen­siva para o casal médio.

Essas idéias ou suas variantes tornaram-se de tal modo parte inregrante do universo mental da cristandade ocidental que é preciso recuar um pouco para sentir sua estranheza e avaliar a especi­ficidade da situação que levou Agostinho e seus sucessores a modi­ficarem de modo tão significativo o paradigma monástico que her­daram do Oriente.

Para o leigo cristão está em jogo uma nova inrerpretação do significado do sexo. A nova interpretação implica também o desu­so dos códigos de comportamento arraigados num modelo fisioló­gico específico da pessoa humana. Os códigos e a fisiologia haviam conspirado na época antonina para submeter as energias da paixão sexual a um modelo específico de sociedade. Os médicos e os moralistas dessa época procuraram integrar a sexualidade na boa ordem da cidade. Achavam natural que uma vigorosa descarga de "calor fecundo", mobilizado no corpo em seu conjunto, no ho­mem e na mulher, e acompanhado de nítidas sensações de prazer físico, fosse a condição sine qua non da concepção: concepção e paixão não podiam ser dissociadas. O único problema para o moralista era que tal paixão não minasse o comportamento público do homem que a ela se entregasse de modo frívolo e excessivo no privado. Mais ainda, muitos acreditavam que as relações sexuais de acordo com as normas do decoro - que de algum modo eram o prolongamento dos códigos de comportamento - produziriam crianças mais perfeitas que aquelas concebidas em relações nas quais se desprezavam tais normas, entregando-se a preliminares orais, ado­tando posições inadequadas ou aproximando-se de uma mulher menstruada. Assim, o ato sexual em si podia ser apresentado como o sinal mais íntimo da "moral da distância social". ligada à manu­tenção dos códigos de decoro público específicos da classe superior.

Agostinho desmonta por completo esse modelo e suas con­cepções implicam uma imagem do corpo totalmente nova. A paixão sexual já não é apresentada essencialmente como um "calor físico, difuso e indjferente, que culmina nas relações. A atenção, ao contrário, volta-se para as zonas precisas de sensação especifica­mente sexual: para os homens, o processo de ereção e o detalhe da ejaculação. São fraquezas que todos os humanos partilham. Em conseqüência, as formas mais brutais de misoginia se atenuam, ao menos no pensamento de Agostinho senão na prática cotidiana no Ocidente no começo da Idade Média. Já não é possível dizer que as mulheres têm mais sexualidade que os homens, ou que elas minam a razão dos homens provocando-os à sensualidade. Agosti­nho acha evidente que os homens são tão profundamente passí­veis de fraqueza moral sexual quanto as mulheres. Todos levam em seu corpo insubmisso o sintoma fatal da queda de Adão e Eva. O fato de que num e noutro o espírito consciente seja vencido du­rante o orgasmo eclipsa o velho terror romano da "efeminação", de um enfraquecimento da pessoa pública devido a uma depen­dência passional com relação a inferiores de um ou outro sexo.


O embargo da igreja

A crença surpreendentemente tenaz de que o decoro das classes sociais superiores observado nas relações sexuais contribui para gerar crianças "bem concebidas", cheias de saúde, dóceis e de prefe­rência do sexo masculino, reveste-se de uma concepção nova do ato sexual como um momento de disjunção inevitável com os aspectos racionais, ou sociais, da pessoa. A concupiscência da carne, tal co­mo se revela no ato sexual, é um traço da pessoa humana que cla­ramente desafia uma definição social e só pode ser alcançado do exterior pela obrigação social. Para o leigo, homem ou mulher, as obrigações normais nas relações sexuais, que eram principalmente de natureza exterior e social, devem incluir a concepção nova de uma profunda brecha na textura do próprio ato sexual. Afinal, Deus cria e forma a criança; e o ato sexual, graças ao qual os parceiros lhe fornecem o material de seu ato criador, não deve rigorosamen­te nada às disciplinas sutis e penetrantes da cidade.

Saber se pensamentos tão tristes e originais muitas vezes en­sombreceram as relações sexuais dos casais no final do Império Ro­mano do Ocidente é outra questão. Suspeita-se que não, o que, em si, constitui um silencioso testemunho da força dos antigos modos d.e vida diante da dominação clerical cristã. Os casais cristãos con­tInuam a crer em seus médicos; de qualquer modo, só um ato de amor caloroso e agradável pode lhes dar as crianças que justificam os fatos sexuais aos olhos do clero celibatário. Doravante os cristãos evitam Com cuidado as relações sexuais nos dias proibidos pela Igreja - pnncipalmente o domingo, a vigília das grandes festas religio­sas e durante a quaresma, pois temem os efeitos genéticos de tais infrações ao novo código de decoro público. Entretanto a insis­tência de Agostinho no papel do pecado venial nas relações sexuais entre pessoas casadas - embora descrito sem a menor lascívia e com muito mais tolerância do que os autores da Antiguidade tar­dia (que de hábito condenavam sem exceção todos os atas sexuais realizados fora de um projeto consciente e sério de conceber filhos "para a cidade") - implica uma noção de que há algo indecoroso no próprio âmbito do amor conjuga!. Um dia, na sociedade muito diferente da Alta Idade Média, pensar-se-á que o amor conjugal pode ser também conscientemente controlado para minimizar seus aspectos inadequados, modificando deliberadamente o elemento de alegria subjetiva na relação, graças ao controle de algumas for­mas de carícias, por exemplo. Então se há de considerar que a dou­trina agostiniana abriu nas defesas da família cristã uma brecha tal que bizantino nenhum jamais teria ousado imaginar; por essa bre­cha soprará um forte vento frio; terá como origem os canonistas e seus leitores, os padres confessores da Idade Média mais tardia.


Obessão ocidental do sexo

As idéias de Agostinho impuseram um rigor e uma consciên­cia ascéticas da fraqueza moral do homem aos humildes chefes de família "no mundo". Ele mesmo reuniu o "mundo" e o "deser­to" na Igreja católica. Nesse ponto será seguido durante a silencio­sa ascensão da Igreja católica na Europa ocidental. Na Gália, na Itália e na Espanha, os bispos católicos das cidades - e não os ''ho­mens do deserto" tornam-se os árbitros do paradigma monástico tal como Agostinho o modificou de modo sutil e irreversível para que englobe até a sexualidade' 'no mundo' '. Sob essa forma o "de­serto" penetra a cidade pelo cume. "Deserto" e "mundo" já não se distinguem estritamente, como ainda é o caso em Bizâncio. Ao contrário, estabelece-se uma nova hierarquia: formado com freqüên­cia, como na época de Agostinho, nas comunidades monásticas ur­banas, o clero casto governa os leigos essencialmente disciplinando-os e aconselhando-os quanto à anomalia perpétua e partilhada de uma sexualidade decaída.

À parte essa hierarquia clara e única, vemos uma estrutura so­cial laminada sob o olhar do velho bispo de Hipona. Os homens e as mulheres, os "bem-nascidos", seus inferiores e os "homens do deserto" de maneira menos sinistra porém tão inelutável quanto os homens casados' 'no mundo", todos participam de uma fraqueza universal e primitiva: uma natureza sexual herdada de Adão e Eva sob sua forma desmembrada. Nenhuma renúncia pode elevar al­guém acima dessa natureza; nenhum código laboriosamence inte­riorizado pode mais do que contê-la. E tal desmembramenro ago­ra é apresentado como um sintoma privilegiado. porque singularmente íntimo e apropriado, da condição humana: o homem, co­mo ser sexual, tornou-se o menor denominador comum da grande democracia dos pecadores reunidos na Igreja católica.

Chegando a esse ponto, encontramo-nos diante de uma últi­ma encruzilhada. Por volta de 1200 um autor menor de um manual de confissão declarava: "De todas as batalhas dos cristãos, o combate pela castidade é o maior. Aqui a luta é constante e a vitó­ria, rara. Com efeito, a continência é a grande guerra. Pois, como disse Ovídio [...], e como nos lembram Juvenal e Claudiano [ ... ], assim fizeram são Jerônimo e santo Agostinho".

Em todos os escritos ulteriores da Igreja latina, a brilhante poesia amorosa de Roma antiga e as sombrias predições dos escritores cris­tãos de nosso período se misturam para comunicar o sentimento muito singular de que a preocupação prioritária, o horror e as delí­cias do europeu ocidental, é sobretudo a sexualidade, e não, como para os bizantinos sempre assombrados pela miragem de um pa­raíso reconquistado nas profundezas do deserto, o orgulho e a vio­lência mais negros e impessoais do "mundo".

É talvez em direção a tais etapas, passando através de tais te­mas - e, de fato, através de muitos outros -, que a história da vida privada na Antiguidade tardia pode conduzir os que escolherem estudá-la mais profundamente do que é possível em algumas páginas. Começamos com o homem e a cidade; terminamos com a Igreja e "o mundo". Qual dessas antíteses mais contou na cria­ção da cultura ocidental que partilhamos? Deixo ao leitor a decisão.

por BROWN, P. "Antiguidade Tardia" in ARIES, P. & DUBY, G. (orgs.) História da Vida Privada. vol. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


Oriente e Ocidente: a carne, comentado por Carlos Almir Matias

Neste texto Peter Brow vai nos mostrar de que maneira o paradigma monástico influenciou as pessoas do Oriente e do Ocidente na Antuiguidade Tardia nas questões de casamento e sexualidade.

A primeira questão é sobre a queda na sexualidade, segundo o paradigma monástico Adão e Eva eram seres assexuados, a partir do momento que eles cairam na sexualidade todos os homens e mulheres entraram num mundo cheio de preocupações ligadas ao casamento e criação de filhos.

O monge, com medo de se envolver em todas essas obrigações opta por uma vida ´´angélica´´ longe do mundo, ai surge o primeiro debate, cristãos casados podem esperar o paraiso ou esse está reservado somente para quem adota uma vida de abstinencia sexual tal qual a do monge.

Talvez a resposta esteja na citação das Escrituras ´´Toda a carne é como a erva´´,ou seja, homens e mulheres são seres sexuados suscetiveis a combustão , então espera-se do monge que ele controle essas combustões. Peter Brow analisa os grupos ascetas cristãos mais radicais, esses grupos negavam o valor do casamento e a própria sexualidade que segundo o autor implica a negação entre o ´´mundo´´ e ´´deserto´´ ou seja, esses seres ´´angélicos´´´podem misturar-se com homens e mulheres da cidade sem correr o risco de cair na sexualidade,esse ponto de vista vai ser questionado por Atanásio e João Crisóstomo que prega contra a associação ´´espiritual´´ de virgens e monges na cidade de Antióquia.

Peter Brow percebe a necesidade de se controlar esse radicalismo monástico, então o que vai ocorrer no Oriente Mediterraneo é uma organização da sociedade onde todos devem praticar um código de abstenção sexual independente da classe e profissão.João Crisóstomo por exemplo ataca os banhos públicos e critica o hábito das mulheres da aristocracia de mostrarem suas carnes nutridas cobertas apenas por pesadas joias que determinavam sua elevada posição social.

A literatura monástica sempre viu o impulso sexual como algo ruim, mas parece não ter interferido na sexualidade do homem do ´´mundo´´.Os mestres espirituais do deserto começaram a estudar as visões sexuais e seus impulsos através de sonhos.Evagro estuda minuciosamente todas essas visões e percebeu que esses impulsos revelam impulsos mais mortais como a raiva, o orgulho e a avareza. A diminuição dessas visões mostra que o monge progrediu na busca de um coração dedicado ao amor de Deus e do próximo.

A moral cristã oriental é bem clara; ou se vive os fatos sexuais dentro do casamento, ou se renuncia a eles para viver uma vida no deserto. Porém essa escolha tem de ser feita bem cedo, mais precisamente para as moças antes dos 13 anos para não cair nas obrigações sociais do noivado. Percebe-se no século VI um recrutamento de crianças para a vida ascética.

Segundo Peter Brow o casamento precoce é proposto aos jovens para que não caiam na armadilha dos desejos incontroláveis da juventude, João Crisóstomo por exemplo não encontrava problemas no ato sexual dentro da vida conjugal legal.As únicas restrições são nas época de menstrução, gravidez e nas festas da Igreja.No entanto podemos percebemos que ainda se mantinham antigas tradições na qual uma relação agradavel para os dois garante que a criança seja concebida bonita e saudável. Pórem fora da basilica e das paredes da casa cristã, a vida continua indisciplinada, continuam os banhos públicos e os espetaculos das dançarinas turbilhando nos teatros.

No Ocidente o paradigma monástico não atinge o ocidente latino.Agostinho diz que a sociedade que compreende a sexualidade e o casamento não é a pior de todas. Para ele Adão e Eva nunca foram seres assexuados, pelo contrário, viveram uma vida conjugal plena, Agostinho também não via problemas na perpetuação de filhos acompanhados de um prazer sério e intenso.

Agostinho não esperava que a sexualidade desaparecesse da iamginação das pessoas e acha que os leigos casados podem se esforçar para alcançar o paraiso,desde que vivam uma vida conjugal harmoniosa.

O leigo cristão começa a reinterpretar o significado do sexo e a abandonar códigos morais da sexualidade quwe determinam normas e proibem algumas coisas como por exemplo preliminares orais ou posições consideradas inadequadas. A sexualidade seria segundo esses códigos um prolongamento do comportamento em sociedade e um sinal intimo de distância social.

Agostinho muda totalmente esse modelo, para ele a paixão sexual não é um ´´calor´´ indiferente que culmina nas relações sexuais e sim uma fraqueza que todos partilham, volta-se a atenção para as partes do corpo mais sensiveis a sexualidade, não é mais possivel dizer que o homem tem mais mais sexualidade do que a mulher ou que a mulher corrompe o homem moralmente,pois todos levam os sintomas da queda de Adão e Eva.

O que vai ocorrer é um processo de ´´disjunção inevitável´´ ou conscupiscencia da carne, o ato sexual passa a desafiar a ordem social, homens e mulheres não precisam mais seguir as obrigações morais das relações sexuais, abre-se uma grande brecha para os casais.Porem as pessoas continuam acreditando em seus médicos que dizem que um ato sexual caloroso pode lhes dar uma criança bonita e saudável,mas ao mesmo tempo passam a respeitar os dias que a Igreja proibe as relações sexuais, como as festas religiosas ou a quaresma pel ofato de temerem um castigo divino.Também se condena um ato sexual realizado fora de um projeto consciente de conceber filhos para a cidade.

Agostinho conseguiu reunir ´´mundo´´ e ´´deserto´´ na Igreja Católica, os bispos passam a controlar e aconselhar os leigos,forma-se então uma hierrquia entre os ´´bem nascidos´´, seus inferiores e ´´homens do deserto´´ , só que ao contrário do Oriente , todos participaram da fraqueza herdada de Adão e Eva, nenhuma renuncia, nenhum isolamento e nenhum código moral pode conte-la.

No final do texto o autor deixa o questionamento, o que influenciou mais na cultura ocidental, o homem e a cidade ou a Igreja e o mundo?


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