A ocupação do império no decorrer dos séculos V e VI

EM cerca de um século (fins do século IV a fins do século V) o Império Romano do Ocidente foi ocupado por uma primeira grande vaga invasora e dividido numa série de unidades políticas de vida instável e por vezes mesmo efémera. A rapidez e a brutalidade da ocupação, destruindo os quadros da administração romana, não puderam contudo fazer desaparecer a cultura subjacente, a qual se foi impondo às tribos invasoras. Esta situação modificou-se no entanto no decorrer dos séculos V e VI; Novas vagas germanas, agora numa infiltração mais lenta mas mais segura, se apropriaram do solo da România. Os Francos, lançando os fundamentos de uma nação estável, os Alamanos e os Bávaros fixando-se ao longo do Reno e do Danúbio, os Anglos e os Saxões ocupando a Bretanha, os Lombardos trocando a Panónia pela Península Itálica, operaram uma germanização progressiva de vastas zonas do Império. Pela primeira vez o latim sofreu um recuo nítido na sua área linguística.


SOBRE A ORIGEM DOS FRANCOS

É muito obscura a origem do povo franco. Gregorio de Tours, nos passos célebres que a seguir transcrevemos, registou algumas explicações mais ou menos lendárias correntes na sua época (século VI).

Sobre os reis dos Francos, ignora-se qual tenha sido o primeiro de entre eles: com efeito, se bem que na sua História Sulpício Alexandre (1) fale muito destes povos (2), todavia não nomeia de maneira alguma o seu. primeiro rei: diz apenas que eles tinham duques. [ ... ] Muitos autores contam que estes povos saíram da Panónia e que se estabeleceram primeiro na margem do Reno; tendo em seguida atravessado este rio, passaram à Turíngia (3) e aí nas aldeias ou nas cidades escolheram reis cabeludos idos buscar à primeira, e, se assim posso dizer, à mais nobre das suas famílias. Isto foi provado mais tarde pelas vitórias de Clóvis, que contaremos em seguida. Lemos nos Fastos consulares (4) que o rei dos Francos Teodomiro, filho de Ricimer e de Áscila e sua mãe, morreram pela espada. Diz-se também que então Clódio, notável entre o seu povo, tanto por méritos próprios como por nobreza, foi feito rei dos Francos. Ocupava no termo dos Turíngios a fortaleza de Dispargum (5). Nessas mesmas partes, ou seja em direcção ao sul e até ao rio Loire, habitavam os Romanos. Para lá do Loire dominavam os Godos (6); os Burgúndios, seguidores da seita dos Arianos, habitavam do outro lado do Ródano que banha a cidade de Lyon. Clódio, tendo enviado batedores para a cidade de Cambrai e mandado explorar toda a região, pôs-se ele próprio em seguida a caminho, esmagou os Romanos e apoderou-se da cidade. Residindo aí por pouco tempo, ocupou tudo até ao rio Somme. Há quem pretenda que o rei Meroveu, de quem Childerico (7) foi filho, era da sua estirpe. Mas este povo mostrou-se sempre entregue a cultos fanáticos sem ter qualquer conhecimento do verdadeiro Deus. Fez imagens das florestas e das águas, dos pássaros, dos animais selvagens e dos outros elementos aos quais tinha por hábito prestar um culto divino e oferecer sacrifícios. [ ... ]

[Sancti Georgii Florentii Gregorii, Episcopi Turonensis, Historiae Ecclesiasticae Francorum. líb. lI, IX-X, com trad. francesa e revisão de J. Guadet et Taranne, ed. Société de I'Histoire de France, Paris, 1836, t. I, pp. 147 a 163.]

(1) Este historiador so e conhecido atraves de Gregorio de Tours. (2) Os Francos resultaram aparentemente da fusão de diversas tribos que habitavam a zona inferior do Reno. (3) Erro geográfico manifesto. (4) Conjunto de anais onde os anos eram contados segundo o sistema romano, ou seja pelos cônsules epónimos. A obra a que se refere Gregório de Tours perdeu-se. (5) Era o principal povoado dos francos Sálios. Trata-se possivelmente da actual Diest, no Brabante. (6) Estabelecidos na Aquitânia, desde 418, como federados. (7) A existência histórica de Meroveu é duvidosa. Só com Childerico, pai de Clóvis, a genealogia dos reis francos se torna mais clara.


A FIXAÇÃO DOS ANGLOS E DOS SAXÕES NA BRETANHA (SÉCULO V).

A historiografia medieval inglesa localiza o desembarque anglo-saxónico na Grã-Bretanha em meados do século V. Assim no-lo diz o trecho que se segue do venerável Beda (675-735).

No 449.o ano da encarnação do Senhor, tendo Marciano (1) com Valentiniano (2) obtido o reino, o 46.o a partir de Augusto, deteve-o por sete anos. Então o povo dos Anglos ou Saxões, convidado pelo rei citado, arribou à Bretanha (3) em três longos navios e por ordem do mesmo rei recebeu como local de permanência a parte oriental da ilha, como para combater a favor da pátria, mas na realidade a fim de a conquistar. Iniciada a batalha com os inimigos que do norte tinham vindo para a luta, os Saxões obtiveram a vitória. Por isso mandaram para casa a notícia tanto da fertilidade da ilha como da inércia dos Bretões e imediatamente lhes foi enviada uma frota maior, transportando um grupo mais forte de homens de armas, os quais juntos à coorte anterior constituíram um exército invencível. Os que chegaram, obtiveJ:am, por doação dos Bretões, um lugar para habitarem entre eles, com a condição de que uns lutariam contra os adversários pela paz e salvação da pátria e outros contribuiriam com o estipêndio devido para os que combatem. Vieram porém os povos mais fortes das tribos da Germãnia, ou seja Saxões, Anglos e Jutos. Dos Jutos são originários os [habitantes] de Cantuária e de Victuária (4), ou seja aquele povo que detém a ilha Vecta e aqueles que até hoje são Chamados a nação dos Jutos na província dos Saxões Ocidentais, junto da própria ilha Vecta. Dos Saxões, ou seja daquela região que agora é chamada dos Antigos Saxões (5), vieram os Saxões Orientais, os Saxões Meridionais e os Saxões Ocidentais. Mais adiante, dos Anglos, isto é, daquela terra que se chama Angulus (6) e desde aquele tempo até hoje se diz permanecer deserta, entre as províncias dos Jutos e dos Saxões, descendem os Anglos Orientais, os Anglos Mediterrâneos (7), os Mércios e toda a geração dos Nordanímbrios (8), ou seja daqueles povos que habitam para norte do rio Humbrus (9) e dos restantes anglos.

[Baedae Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, lib. I, capo xv, in Baedae, Opera Historica, com trad. inglesa de J. E. King (The Loeb Classical Library), London, New York, 1930, pp. 68 a 71.]

(1) Imperador do Oriente de 450 a 457. (2) Valentiniano III, imperador do Ocidente de 423 a 455. (3) Desde o fim do século II que a Bretanha sofria incursões de povos germanos. No entanto, s6 a partir dos últimos anos do século v estas tribos iniciaram uma verdadeira colonização. (4) Da ilha de Wight. (5) O Holstein. (6) O Schleswig. (7) Os chamados Uplandish Angles. (8) Os Northumbrianos. (9) O rio Humber.


O REI DOS OSTROGODOS TEODORICO VENCEU ODOACRO E ESTABELECEU-SE NA ITÁLIA (493)

Educado em Constantinopla, para onde havia sido enviado como refém em criança, Teodorico conhecia de perto todos os meandros políticos do Império do Oriente. Este conhecimento proporcionou-lhe a criação do estado ostrogodo na Itália. A obra de Jordanes que inclui o relato aqui transcrito data de meados do século VI.

Quando o imperador Zenão (1) ouviu que Teodorico tinha sido nomeado rei do seu povo (2), recebeu com prazer a notícia da nomeação e convidou-o a vir para junto de si na cidade. Recebendo-o com todas as honras, colocou-o entre os grandes do seu palácio. Algum tempo depois [Zenão], para lhe aumentar as honrarias nas armas, adoptou-o como filho e concedeu-lhe, à sua custa, um triunfo na cidade.

[Teodorico] foi também feito cônsul ordinário (3), o que se diz ser a benesse suprema e a mais alta honra no mundo. Nem isto foi tudo, pois [Zenão] ergueu diánte do palácio· real uma estátua equestre para glória daquele grande homem.

[Entretanto Teodorico, sabendo que a sua tribo, estabeleciáa na [líria, estava longe de viver com bem estar e abundância, pediu licença ao imperador para abandonar Constantinopla e ir libertar o Ocidente «da tirania do rei dos Turcilingos e dos Rugios» (4).]

Teodorico deixou pois a cidade real e voltou para junto dos seus. Em companhia de toda a tribo dos Gados, que lhe deu o seu consentimento unânime, partiu para ocidente. Caminhou a direito de Sirmium (5) até à vizinhança da Panónia e, avançando no território da Venécia até junto da Ponte de Sontius (6), acampou aí. Tendo feito alto por algum tempo, a fim de dar descanso aos corpos dos homens e dos animais de carga, Odoacro enviou contra ele uma força armada, com a qual se encontrou nos campos de Verona, destruindo-a e fazendo nela grande mortandade. Então desfez o acampamento e avançou pela Itália com a maior ousadia. Atravessando o rio Po, assentou campo perto da cidade real de Ravena, cerca do terceiro marco miliário a partir da cidade, no lugar chamado Pineta. Quando Odoacro viu isto, fortificou-se dentro da cidade. Frequentes vezes atacou o exército dos Godos durante a noite fazendo surtidas furtivamente com os seus homens, e não uma ou duas vezes, mas muitas; e assim combateu durante quase três anos completos. Mas trabalhou em vão, porque toda a Itália por fim chamou a Teodorico o seu senhor e a República obedeceu aos seus desejos. Mas [Odoacro], com os seus poucos partidários e os romanos que estavam presentes sofria quotidianamente com a guerra e a fome em Ravena. Visto que nada conseguia, enviou uma embaixada e pediu clemência (7). Teodorico primeiro concedeu-lha, mas depois tirou-lhe a vida.

Foi no terceiro ano depois da sua entrada na Itália, como dissemos, que Teodorico, por conselho do imperador Zenão, pôs de lado o traje de cidadão privado e o vestuário da sua raça e adoptou uma veste com um manto real, visto ter-se transformado, agora, no dirigente tanto dos Godos como dos Romanos.

[Jordanes, Romana et Getica, in Monumenta Germaniae HistoricaAuctorum Antiquissimorum, t. v, pars prior, pp. 132 a 134.]

(1) Imperador do Oriente de 474 a 491. (2) Em 473. (3) Em 484. (4) Aparentemente o imperador achou a oportunidade excelente para se desembaraçar dos Ostrogodos e simultâneamente liquidar Odoacro. (5) Hoje Mitrovica, na Iugoslávia. (6) O rio Isonzo. (7) Em 25 de Fevereiro de 493.


A INVASAO DA ITALIA PELOS LOMBARDOS (568)

A deslocação dos Lombardos em direcção à Península Itálica foi, momentâneamente, de consequências desastrosas. Por um lado, a Itália, onde os Lombardos não conseguiram estabelecer um estado unitário e organizado, caiu na anarquia. Por outro, afixação dos Ávaros na Panónia veio cortar durante séculos as comunicações entre o Adriático e o Báltico. Paulo Diácono (século VIII), o autor do trecho que se transcreve, era um lombardo que redigiu com certa parcialidade a história do seu povo.

Na verdade, Alboíno (1), antes de partir para a Itália com Os Lombardos, pediu auxílio aos seus velhos amigos Saxões a fim de entrar naquela espaçosa terra e ocupá-Ia com maiores efectivos. Acorreram ao apelo mais de vinte mil saxões (2), acompanhados pelas mulheres e os filhos, para com ele penetrarem na Itália. Tendo conhecimento disto, Clotário e Sigeberto, reis dos Francos, colocaram Suevos e outros povos nos locais de onde tinham saído os Saxões (3). Então Alboíno entregou aos seus amigos Hunos os próprios territórios, ou seja a Panónia, sob a condição de que, se em qualquer altura fosse necessário aos Lombardos voltar para trás, tornariam a pedir aquelas terras (4).

Portanto os Lombardos, abandonada a Panónia, com as mulheres, os filhos e todas as alfaias, precipitaram-se na Itália para a ocupar. Tinham habitado a Panónia durante quarenta e dois anos. Dela saíram no mês de Abril, pela primeira indicção (5), no dia seguinte à santa Páscoa, cuja festividade se deu naquele ano de acordo com os cálculos da razão no próprio dia das Calendas de Abril (6), quinhentos e sessenta e oito anos depois da encarnação do Senhor.

[Paulus Diaconus, Historia Langobardorum, in Monumenta Germaniae Historica - Scriptores Rerum Langobardicarum et Italicarum, Saec. VI-IX, Hannover, 1878, p. 76.]

(1) Rei dos Lombardos de 561 a 572. (2) Além dos Saxões, ter-se-iam unido a Alboíno Bávaros, Suevos, Búlgaros, Gépidas e Sármatas, entre outros. (3) Os reis francos procuravam estabelecer protectorados no Saxe, Baviera e Panónia. (4) Este acordo foi feito por um prazo de duzentos anos, não com os Hunos, mas sim com os Á varas. (5) No primeiro ano de um ciclo de quinze anos. (6) A 1 de Abril.


LEOVIGILDO TENTOU A UNIFICAÇÃO pOLíTICA DA ESPANHA (568-586)

O reinado de Leovigildo marcou um grande avanço no processo de unificação política do estado visigodo e de fortalecimento do poder real. Santo Isidoro de Sevilha (c. 560-636), autor do texto que se segue, é um contemporâneo dos eventos que nele registou.

Na era de 606 (1), no terceiro ano do governo de Justino II (2), Leovigildo(3) tornou-se o dirigente da Espanha e da Gália e decidiu alargar o reino pela guerra e aumentar o poder. Assim, com o ímpeto do seu exército e a boa fortuna das suas vitórias adquiriu muita coisa com distinção. Obteve a Cantábria, tomou Arégia (4) e toda a Sabária (5) foi conquistada por ele. Também muitas cidades rebeldes da Espanha se renderam às suas armas; igualmente derrotou em várias batalhas os soldados romanos (6) e recuperou pela luta certos fortes por eles ocupados. Então cercou o seu filho flermenegildo, que estava actuando como um tirano no império, e venceu-o. Finalmente fez guerra aos Suevos e com espantosa velocidade transferiu o reino deles para a autoridade da sua nação (7), conquistando o domínio da maior parte da Espanha. [... ]

[Sancti Isidori, Hispalensis Episcopi, Historia de Regibus Gothorum. Wandalorum et Suevorum. in J. P. Migne, Patrologiae Cursus Completus, Series Latina, t. LXXXIII, Paris, 1862, col. 1092.]

(1) 568. (2) Imperador do Oriente de 565 a 578. (3) Rei dos Visigodos de 568 a 586. (4) Região vizinha de Orense, onde Leovigildo dominou uma rebelião chefiada pelo nobre romano Asturia. (5) Zona das Astúrias. (6) As forças bizantinas que haviam ocupado a faixa costeira entre Denia e Cádiz. (7) Em 585.


por Espinosa, F. Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa, 1972


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