O Conceito de Antiguidade Tardia

Um pouco contrariado (dir-se-ia contra o tempo), o Museu do Louvre continua a expor aquela imensa máquina de Thomas Couture que, ao ser apresentada ao Salon de 1847, foi saudada como obra¬-prima. O pintor, que, no fundo, como bom discípulo de Ingres, o que mais queria na era pintar nus femininos e atitudes voluptuosas, deu-lhe o muito sábio nome de "Os Romanos da decadência", e o seu quadro suscitou comentários apaixonados, de um ardor que não pode deixar de nos espantar. Mas era de esperar que o seu significado pretensamente histórico fizesse dele objecto de sisudas reflexões.

Menos ênfase, e uma boa dose de ironia, encontramos em ' "Langueur", soneto que, em 1883, Verlaine dedicava a Georges Courteline e que, no ano seguinte, entraria, sob a rubrica "A maneira de muita gente", no seu "Jadis et Naguere":

Sou o Império no fim da decadência,
que vê, altos e brancos, os Bárbaros passar, e compõe e compõe acróstico indolente,
de um estilo de oiro em que dança a languidez do Sol. Sozinha, a alma pena, perdida em denso tédio,
Diz-se que algures se travam longas lutas sangrentas. Quem me dera poder (tão fraco e em ritmos lentos!), Quem me dera querer florir ar a minha vida!
Oh não querer... , oh não poder morrer ar um pouco A taça já secou (não te rias, Bathyllal)
Tudo já está bebido, e comido! Silêncio
Só um poema idiota que vou lançar ao fogo; Só um escravo atrevido que não trata de mim' Só o tédio de tudo, e de nada, consome !


Vê-se bem que o poeta não toma muito a sério esse título de "decadente" com que os estetas "fin de siècle" gostavam de se adornar. Mas, se por esses anos de 1880 a 90, e não digo apenas em França mas também na Itália, na Inglaterra, na própria Alemanha, a imagem da decadência esteve assim tanto em moda, foi porque tal noção - melhor dizendo, 'cliché' ou mania - havia quatro séculos que circulava na consciência ocidental. Desde o século XV, desde o humanismo renascentista, todo este período para que quereríamos chamar a atenção do leitor estava ferido de um mesmo juízo pejora¬tivo: entre o esplendor da Antiguidade clássica e a "renovação'" das Letras e das Artes, nada havia - literalmente nada. Um vazio, um negro túnel separava esses dois momentos gloriosos da civilização.

As manifestações artísticas da Antiguidade tardia eram, tal como os balbuceios das idades obscuras, englobadas nesse geral desprezo. Os humanistas italianos não usam senão adjectivos desagradáveis para as qualificar: Arte ultramontana, tudesca, gótica, - este termo de gótico, que havia de ser tão glorificado, era então, na pena de tais homens, o mesmo que bárbaro. Escutemos Vasari nas suas Vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitectos (a obra é de 1550; mas, já um século antes, Ghiberti, o escultor das portas do Baptistério de Florença, também datava a decadência da época de Constantino): "Se bem que as artes tivessem continuado a florescer até ao fim do império dos XII Césares, não puderam manter-se na mesma perfeição e qualidade que anteriormente tinham atingido (...) Declinando de dia para dia, elas acabaram, pouco a pouco, por perder toda a perfeição da forma. E disso dão testemunho claro as obras de escultura e de arquitectura executadas em Roma no tempo de Constantino ( ... )."

Em França, na época clássica, este juízo pejorativo virá a ser reforçado pela estreiteza do gosto e a rigidez do cânon estético. Assim, vemos Moliére, celebrando, em 1663, a obra do seu amigo Mignard na cúpula do Val-de-Grâce:

( ... ) Tu, que foste um dia a senhora do Mundo, Douta e famosa escola, fértil em raridades, onde, por nobre esforço, as obras exumadas compensaram as perdas dos Bárbaros do Norte, Fonte dos belos restos dos séculos memoráveis, Ó Roma ( ... )

No século XVIII, a mesma atitude se repete, ainda mais nítida. Para Montesquieu, a arte do Baixo-Império é já decadente: nada mais tem que "essa dureza gótica" (ao visitar a colecção dos bustos romanos de Florença, Montesquieu sentiu muito bem que, na arte romana, desde o século IV até ao fim da dinastia dos Severos, se esboçava uma viragem. Nos filósofos do Século das Luzes, o neo-classicismo con¬juga-se com a aversão que sentem pelo Cristianismo. Edward Gibbon condensou a tese do seu grande livro Declínio e Queda do Império Romano (1776/88), na fórmula célebre: “Deste modo, assistimos ao triunfo da religião e da barbárie" - sinónimos, para este voltaireano.

E curioso que o processo não foi aberto, pelo Romantismo quando este redescobriu a Idade Média, embora este termo tenha deixado de ter, nessa altura, o valor neutro de um intervalo vazio, para progressivamente se ir enchendo de conteúdo positivo. A arte e toda a civilização do Baixo-Império (em França, ainda está em voga esta desi¬gnação, de ressonâncias pejorativas, que Lebeau forjou em 1759) continuaram a ser subestimados. Por exemplo, Jacob Burckhardt, no seu “Constantin” (1853), não vê nelas senão manifestações de senilidade e decadência do mundo antigo. Para ele, essa arte, que julga remontar, na sua degenerescência, a meados do século II, mostra-nos a dissolução definitiva do sistema estrutural que Roma herdara da Grécia...

Podemos dizer que só com a nossa geração esse preconceito foi ultrapassado, embora essa correção tivesse começado com o século e com os livros, publicados em 1900/1, desses pioneiros que foram Dmitri V. Ainalov (The Hellenistic Origins of Byzantine Art. São Petersburgo, 1901), em Petersburgo, e Alois Riegl (Spatromische Kunstindustrie nach der Funden in Oesterreich. Viena. 1901), glória da escola de Viena. Mas a verdade é que a adopção de uma óptica nova não é apenas devida aos progressos da investigação histórica: depende também das profundas transformações operadas no plano da expe¬riência estética e na sensibilidade contemporânea, entre o fim do expressionismo e o aparecimento da arte abstracta, revolução do gosto que veio a ser expressa nos livros brilhantes de André Malraux, desde les Voix du silence (1947/51) até a La Métamorphose des dieux (1957), para não citar outros.

No entanto, se é certo que é hoje geralmente reconhecida a originalidade da primeira arte bizantina, e a arte pré-românica tem sido objecto de estudos cuidadosos e deixou de ser desdenhada como horrendo infantilismo, temos de reconhecer que essa revalori¬zação ainda não transpôs verdadeiramente o círculo dos historiadores profissionais. O período que estudamos é ainda demasiadas vezes evocado em termos meramente negativos, Quer nele se veja "o fim da Antiguidade", quer "os começos da Idade Média". O que nós quereríamos era ajudar o leitor a olhar, finalmente, esse período em si mesmo e pelo Que representa. Vamos deixar, por ora, de parte os aspectos propriamente "decadentes", que, no mundo ocidental, foram o resultado das invasões bárbaras. O que importa é que o termo "Antiguidade tardia" receba de uma vez por todas uma conotação positiva (como, já o vimos, aconteceu com O termo Idade Média). Mas será lícito dizer que o termo entrou mesmo no uso corrente? Em francês (e o mesmo se dirá dos seus equivalentes italiano e inglês, a expressão conserva ainda alguma coisa de esotérico. Só o alemão, mais plástico, parece ter acolhido melhor a palavra Spatantike.

Será já tempo de admitir que a Antiguidade tardia não é somente a última fase de um desenvolvimento contínuo: é uma outra antiguidade, uma outra civilização, que temos de reconhecer na sua originalidade e julgar por si própria e não através dos cânones das épocas anteriores.

A História regista neste ponto uma mutação, se é lícito ir buscar a palavra e a imagem à Biologia. Um espírito novo se manifesta nos mais diversos domínios, desde as técnicas mais materiais e as formas mais externas da existência quotidiana, à estrutura mais secreta da mentalidade colectiva, à idéia, ao ideal que os homens desse tempo conceberam em relação ao mundo e à vida, o seu Lebens-und Weltanschauung. Evoquemos, de ambos os lados do fosso de quatro séculos e meio que os separa, esses dois homens bem representa¬tivos do seu tempo, Cícero e Santo Agostinho: quantas coisas mudaram, na passagem de um para o outro!


No plano da cultura, recordemos que as obras de Cícero eram transcritas, coluna a coluna, em longos retângulos de papiro ou de pergaminho, enrolados em cilindro, que se iam desenrolando à medida da necessidade da leitura, para em seguida os enrolar de novo - forma de livro frágil, atravancadora, incômoda (imobilizando as duas mãos, impedia o folhear rápido, obter unia visão sintética duma obra extensa, e relê-la). Na Antiguidade tardia, o volumen cedeu o lugar ao codex, isto é, ao livro que ainda agora utilizamos, formado de cadernos cosidos, e que permite edições compactas como os actuais Shakespeare completos num só volume (bastavam a Santo Agostinho cinco ou mesmo dois tomos para compor a obra de dimensões consideráveis que é a sua Cidade de Deus), e que, por outro lado, permite ainda juntar numa só pessoa as funções de leitora e de escrita. Cada vez mais se vai dispensando o serviço de um leitor, dantes praticamente indispensável; difunde-se o uso da leitura em silêncio, e assim a escrita suplanta definitivamente o primado por tanto tempo incontestado da fala, que só voltará a impor-se quando se der esta nova revolução que os nossos olhos estão a ver, fruto dos embates conjugados do disco, da fita magnética, da rádio e da televisão.

MARROU, I. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? Lisboa: Aster, 1979.


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