Bizâncio

A criação de uma capital imperial em Constantinopla, no século IV e no início do V teve um impacto colossal. Mobilizou os recursos da faixa de terra desde as costas do Mar Egeu até as margens do Mar Negro. Apesar da presença da grande cidade "universitária" de Atenas, a região se atrasara até o ponto de estagnação sob o Império Romano, como parte do corredor que ligava as bandas oriental e ocidental. As cidades provincianas prosperaram como dependentes da nova capital imperial.

A fundação e o crescimento de Constantinopla alteraram inteiramente o equilíbrio do Império Romano: seu centro de gravidade passou para o Orien­te. Deixou-se o Ocidente aberto à conquista dos bárbaros, que foi tanto mais um insulto porque os conquistadores alemães adotaram a forma herética ariana do cristianismo. Os imperadores em Constantinopla a princípio cumpriram suas responsabilidades de ir em ajuda do Ocidente. Isso culmi­nou na grande expedição que o Imperador Leão I (457-74) lançou em 468 contra o Norte da África, numa tentativa de arrancá-la dos vândalos. Ao mesmo tempo, despachou outro exército para a Itália, com o objetivo de pôr um candidato oriental no trono ocidental. Essa tentativa de recuperar o Império do Ocidente antecipou os planos de Justiniano, mas foi um desas­tre total. Os sucessores de Leão abandonaram o Ocidente à própria sorte. O governo imperial em Constantinopla reduziu suas perdas e reconheceu a autoridade dos líderes bárbaros que controlavam a Itália. Até os laços ecle­siásticos foram, para todos os efeitos, cortados.

O credo acertado em Calcedônia em 451 devia muito às formulações do Papa Leão I. Não foi, contudo, aceitável para a maioria das províncias orien­tais, onde a opinião favorecia uma interpretação monofisista, enfatizando a divindade de Cristo. O governo imperial não demonstrou a menor vontade de convocar outro Concílio Geral da Igreja para decidir a questão. Calcedô­nia teve certas vantagens. Apresentou uma teologia conciliatória e confir­mou as pretensões da Igreja de Constantinopla a status patriarcal. Era, em todo o caso, responsabilidade do imperador pôr em prática as decisões a1can­çadas num Concílio Geral. O resultado foi um edito imperial de 484, conhe­cido como Henotikon. Este não ab-rogou os cânones promulgados em Calce­dônia. Admitia que Cristo era homem perfeito e Deus perfeito, mas insistia em que, num determinado nível- muito além da compreensão humana-, os elementos divino e humano em Cristo se fundiam numa só natureza. O pa­pado entendeu isso como sendo dirigido contra o Papa Leão I, e seguiu-se um estado de cisma.

Quando o Imperador Anastácio (491-518) ascendeu ao trono de Cons­tantinopla, constatou que governava uma Igreja e um Império limitados às províncias orientais. O Ocidente fora alijado. O que não significava que exis­tisse ,um Império "Bizantino". O império que Anastácio presidiu foi curiosa­mente insatisfatório. Como ele deixou para trás o maior tesouro já registrado por um imperador romano, passou para a história como um grande gover­nante. Na verdade, seu reinado foi excessivamente tumultuado. A mais sé­ria oposição veio de dentro de sua capital, e pode ser vista como as contínuas dores do parto de Bizâncio. O patriarca de Constantinopla opôs-se à ascen­são de Anastácio e insistiu em que, como preço de sua coroação, fizesse uma profissão de fé confirmando que, em questões de fé e conduta, o imperador se sujeitava à vigilância não apenas da Igreja, mas especificamente do patriar­ca de Constantinopla. Isso causou uma nova reviravolta num relacionamento situado no coração de Bizâncio. Anastácio ficou numa difícil posição. Era um monofisista convicto; o patriarca de Constantinopla, um seguidor de Ca1cedônia. A população da capital ficou dividida, com uma grande parte de língua latina que tendia a favorecer Roma. Em 511, Anastácio depôs o pa­triarca e substituiu-o por um clérigo mais flexível, que fez a seguinte con­cessão às simpatias religiosas do imperador: permitiu o acréscimo do lema monofisista "que foi crucificado por nós" ao canto processional conhecido como trisagion: "Santo Deus, santo e poderoso, santo e imortal, tende piedade de nós". Isso levou a distúrbios nas ruas de Constantinopla. Anastácio era velho então, com mais de oitenta anos. Apresentou-se perante a plebe no hipódromo e ofereceu sua renúncia ao trono, diante do descontenta­mento popular. O povo ficou encantado com essa exibição de humildade e aclamou-o mais uma vez. Quando todos partiram, o imperador mandou os guardas massacrá-los. Embora terminasse da forma como terminou, o inci­dente serviu como prova do poder da opinião popular.

O massacre não acabou com os distúrbios populares, que passaram en­tão a ser espontaneamente gerados por causa das atividades das facções do circo - os Azuis e os Verdes. Essas facções, que se tornariam um aspecto característico da vida pública bizantina até 1204, foram originalmente uma importação de Roma, parte do modo como a nova Roma se equipou com as instituições da antiga. O hipódromo era o principal lugar de reunião das pes­soas da capital e as facções eram responsáveis pela organização das corridas e de outras atividades que ali se realizavam. Também se envolviam na acla­mação de um novo imperador, depois da transferência do cerimonial da ele­vação ao cargo imperial para lá em meados do século V Isso dava às suas ações um caráter político que faltava antes, e os imperadores passaram a prestar mais atenção às facções do circo no transcorrer do século V Como um gesto, Anastácio mandou decorar o camarote imperial no hipódromo com retratos de famosos corredores de bigas da época. Seu favorito era um líbio chamado Pórfiro, para quem ergueu pelo menos duas estátuas. Esses monu­mentos representavam em parte o reconhecimento imperial de suas proezas esportivas, mas também um sinal de gratidão pela maneira como o competi­dor ajudara, na liderança dos Verdes, a defender o Imperador contra as reclamações de um adversário.

A irrupção das facções na vida política de Constantinopla acrescentou um elemento em tudo anárquico. As facções não tinham nenhum programa religioso ou político bem definido, além da proteção de seus privilégios, mas valia a pena cultivar o apoio delas, como provou Anastácio. A composição social das facções era idêntica: os líderes e os patronos vinham das classes altas da sociedade; os ativistas eram arrebanhados entre os jovens de todos os setores da sociedade, que seguiam os líderes do momento. Os membros da facção eram dados a estilos particulares: usavam a barba e o bigode bem longos, à maneira persa; copiavam os nômades selvagens das estepes, deixando os cabelos crescer e escorrer pelas costas como uma juba, cortando-os ao mesmo tempo rentes na testa. Usavam capas e calças ao estilo bárbaro, e uma túnica presa bem justa nos pulsos, com mangas bufantes encapeladas e ombreiras de largura exagerada. Adotavam de propósito um estilo de roupa e penteado que os destacassem do resto da sociedade. Suas lealdades eram exaltadas, passando por cima de qualquer outro laço social concebível, mas só de vez em quando se revelava a base dessas lealdades.

No caso de Teodora, que se tornou a imperatriz de Justiniano, foi uma amarga experiência. Ela vinha de uma família que trabalhava para os Verdes. Seu pai era barbeiro deles. Morreu quando Teodora ainda era criança; a mãe se casou de novo, mas o novo marido não foi nomeado barbeiro dos Verdes, nem sequer quando Teodora foi com as irmãs ao hipódromo como suplicantes perante a facção reunida. Teodora se tornou uma adversária vitalícia e venenosa dos Verdes. Vinculou-se aos Azuis, e assim obteve a apresentação pela qual tanto ansiava a um patrono daquela facção. Foi Justiniano, um sobrinho de Justino I (518-27), que conquistou a dignidade imperial com a morte de Anastácio.

Justino era um homem de língua latina vindo do coração dos Bálcãs. Ainda rapaz, fora a pé para Constantinopla e se inscrevera na guarda do palácio. Ascendeu à influente posição de conde das sentinelas, que o tornou res­ponsável pela segurança do palácio. Embora não tivesse instrução alguma, mal conseguindo assinar o nome, tomou providências para que o sobrinho obtivesse uma excelente educação. Justiniano retribuiu ao tio sendo mentor do golpe que o levou ao trono. Embora os detalhes sejam complicados, o drama foi encenado no hipódromo. Justiniano conseguiu subornar as facções do circo para aclamar o tio como imperador, em vez de qualquer dos outros candidatos, num episódio que fundamentou o poder das facções do circo.

Também expôs como fora insatisfatório o estilo de governo de Anastá­cio. “Autocracia temperada com assassinato" é a forma preferida para descre­ver a constituição bizantina, embora muito longe da verdade. A sucessão em Bizâncio era na maioria das vezes pacífica e, em termos gerais, dinástica. Anastácio talvez não tenha deixado quaisquer herdeiros sangüíneos, mas tinha sobrinhos, dos quais se esperava que no curso normal dos aconteci­mentos saísse o sucessor, da mesma maneira como Justiniano sucederia ao tio. A falha de Anastácio foi não fornecer uma direção clara. A tolerância e a conciliação são admiráveis do ponto de vista de hoje; não eram encaradas assim na época de Anastácio. A política imperial de indiferença a Calcedônia resultou na falta de clareza nas questões centrais do dogma. Abandonar Roma e o Ocidente aos bárbaros significou o esvaziamento de sentido de Romanitas - o que deveria ser um romano. Concessões desse tipo feitas por Anastácio só enfatizaram como era fraco o controle imperial da capital. O centro não se agüentava. Mas, assim que Justiniano assumiu o poder, começou a refrear as atividades das facções do circo, como um primeiro passo para restaurar a ordem nas ruas da capital.

Sob Justiniano, linhas claras substituíram a deriva característica do reinado de Anastácio. Sua primeira ação importante foi liquidar o cisma que isolara a Igreja de Constantinopla do papado. A restauração da unidade eclesiástica era uma condição essencial para a restauração da unidade política. Justiniano talvez tenha esperado que os governantes germânicos do Ocidente pu­dessem ser induzidos a abandonar a forma de cristianismo ariano como um primeiro passo para sua incorporação no novo Império Romano. Estabeleceu laços pessoais com as famílias vândalas e ostrogodas governantes, o que cau­sou o seu fracasso. Provocou apenas uma violenta reação, pois a elite germâ­nica considerou ameaçada a sua privilegiada posição. Justiniano recorreu à força. Em 533, mandou o general Belisário contra o reino vândalo de Car­tago. Os novos exércitos romanos tomaram tudo de roldão. Cartago foi cap­turada em 534 e o rei dos vândalos levado como prisioneiro para Constanti­nopla, onde em triunfo o fizeram desfilar pelo hipódromo. Belisário depois fez a travessia para a Sicília e avançou pelo Sul da Itália em direção a Roma. Os ostrogodos ofereceram uma resistência mais forte que os vândalos, mas em 540 Belisário entrou vitorioso na capital deles, Ravena. Esse não foi o fim da história, pois os ostrogodos lançaram um contra-ataque, envolvendo a I tá­lia em acirrada guerra que durou uns doze anos e deixou a península devas­tada. Os exércitos de Justiniano combateram até a vitória final. Outro exér­cito conseguiu capturar as costas do Sul da Espanha. Apesar de enormes dificuldades, Justiniano conseguiu em grande parte pôr as províncias ocidentais - pelo menos aquelas em torno do Mediterrâneo- sob seu con­trole. Criara um novo Império Romano - em termos assim tão literais, por­que era governado a partir da nova Roma.

O imperador não tinha intenção de restaurar um Império do Ocidente com capital em Roma ou em Ravena. Talvez tenha apresentado sua política em termos de uma restauração, ou renovatio, do Império Romano, mas isso combina com a regrinha de bolso que sugere que as medidas mais radicais são tomadas por aqueles que alegam restaurar o passado. O senso de romani­dade de Justiniano era produto de uma nova Roma, que talvez fosse em ter­mos superficiais e esquemáticos modelada na antiga, mas de caráter inteira­mente diferente. Formava-a uma ideologia de realeza cristã, não uma nostal­gia do acordo augustano. Os projetos de construção de Justiniano deixam isso claro. Visavam, em primeiro lugar, a transformar Constantinopla numa capital convenientemente cristã, condizente com a nova ordem. A cidade que ele herdou ainda ostentava a marca dos imperadores da dinastia teodo­siana. Seus monumentos -colunas que exibiam seus feitos em relevo, arca­das triunfais, foros - eram todos de inspiração romana. Até as igrejas corres­pondiam ao tipo da basílica romana.

Quando Justiniano chegou ao poder, mal se avistava uma abóbada. Mas por volta de sua morre, em 565, a linha do horizonte de Constantinopla era dominada por prédios abobadados, dos quais o mais magnífico era a Igreja de Sta. Sofia. A oportunidade de apor seu selo em Constantinopla lhe fora dada pela Sedição de Nica de 532, que havia resultado na destruição do núcleo da cidade entre o Foro de Constantino e a Augustaion. A antiga Catedral de Sta. Sofia e toda a sua área norte, incluindo a Igreja de Sta. Irene, foram des­truídas pelo fogo. Essas revoltas foram desencadeadas pelas facções do circo, que se opuseram às medidas tomadas por Justiniano para discipliná-las. Os adversários do Imperador na aristocracia senatorial usaram a insatisfação das facções como encobrimento para suas ambições políticas. Fizeram um dos sobrinhos de Anastácio ser proclamado imperador. Justiniano sentira-se inclinado a aplacar os membros das facções, mas então, incitado por sua imperatriz, Teodora, partiu para a repressão brutal. Mandou seus guardas, sob o comando de Belisário, ao hipódromo, onde dizem que eles massacra­ram 30 mil pessoas. Mandou executar seus mais destacados adversários polí­ticos e confiscou a propriedade de outros senadores. Em conseqüência da Sedição de Nica, Justiniano teve não apenas o controle total de sua capital, mas também uma esplêndida oportunidade de construir.

Mandou reconstruir toda a área em volta da Augustaion, que era o cen­tro cerimonial da cidade. Quase até a queda final da cidade, sua forma e aparência continuaram sendo as cunhadas por Justiniano. Sua lembrança ainda é preservada em forma da grande Igreja de Sta. Sofia. A obra começou quase assim que terminou a Sedição de Nica, e a construção ficou pronta em ape­nas cinco anos, período surpreendentemente curto, em vista das dimensões e da complexidade da igreja. Os contemporâneos se impressionavam não apenas com a escala da construção e a suntuosidade de sua decoração, mas também com o ineditismo de seu planejamento, obra de dois matemáticos, Antêmio de Trales e Isidoro de Mileto. A igreja era uma basílica abobadada, mas também distribuída em volta do núcleo central, de forma tal a deixar o espectador com a impressão de um prédio não alinhado em torno de um eixo, mas unificado sob a gigantesca cúpula. A descrição do historiador Procópio, que jamais foi suplantada por opinião melhor, diz que o domo parecia "de algum modo pairar no ar, sem nenhuma base firme".

O corpo principal da nave embaixo da cúpula proporcionava um conve­niente palco para o encontro do imperador com sua corte, e do patriarca com seu clero, nas grandes festividades do calendário cristão. A mistura de litur­gia imperial e cristã sob o domo de Sta. Sofia tornava-se ainda mais impres­sionante com a luz que brincava acima dos participantes. Entrava pelo cír­culo de janelas instalado na borda da abóbada e pelas fileiras de outras nos clerestórios, e projetava-se do mosaico dourado da cúpula e do revestimento de mármore das paredes. Mais uma vez, segundo Procópio, tinha-se a im­pressão de "que não era iluminada de fora pelo sol, mas de que a radiação era criada de dentro dela mesma".

Durante a celebração da missa, o patriarca e o imperador se encontra­vam logo na saída do santuário e trocavam o "Beijo da Paz". Isso simbolizava a harmonia que Justiniano insistia em que devia existir entre o imperador e a Igreja, se o império quisesse cumprir sua função no divino desenrolar da história. Era um conceito de relações Igreja-estado que ele explicou no prefácio de sua Novela VI, que assim começa: "Entre as grandes dádivas que Deus concedeu por bondade do Céu estão o clero e a dignidade imperial. Desses, o primeiro serve às coisas divinas; o último governa os assuntos humanos e deles cuida". Insistia em que Igreja e estado formassem uma unidade harmoniosa, em virtude de uma divisão claramente delineada de trabalho, mas que tinha o irrevogável efeito de fundir ambos.

A maior realização de Justiniano foi sua codificação da lei romana. Mais uma vez, elaborou-a com impressionante rapidez, graças à competência do conselho de juristas que reuniu, com Triboniano à frente. A primeira codifi­cação ficou pronta em 529, e uma segunda por volta de 534. Complementa­das pelo Digesto e pelas Institutas, as duas foram concluídas em 533. O primei­ro era um pequeno livro de jurisprudência e o segundo um manual de Direi­to. Embora apresentada como um retorno às raízes da lei romana clássica, a obra de Justiniano remodelou a lei, para que fundamentasse uma monarquia cristã. Ele próprio redigiu a maior parte da legislação relacionada com a Igreja e a religião. A lei romana perdeu quase toda a sua independência. Embora ele continuasse a aquiescer à idéia de que o imperador como indiví­duo estava sujeito à lei, insistia em que, devido a seu cargo, ele era a encar­nação da lei. A lei foi atrelada à ideologia absolutista da monarquia cristã, e recebeu forma concreta na estátua eqüestre que Justiniano mandou erguer de si mesmo diante da Igreja de Sta. Sofia: na mão esquerda, segurava uma esfera com uma cruz sobreposta, símbolo de sua autoridade universal e ori­gem divina.

Durante o período inaugural de seu reinado, com a ajuda da equipe de especialistas esplendidamente talentosos que reuniu à sua volta, Justiniano levou tudo de roldão. Seus exércitos entraram vitoriosos em Cartago, Roma e Ravena; a reunificação do império parecia iminente. Organizou conferên­cias teológicas que pareciam oferecer soluções para as divisões doutrinais dentro da Igreja. Articulou uma ideologia de império, que abrangia ao mesmo tempo lei e teologia, e construiu um conveniente palco para sua decretação. Criou o ideal do Império Romano Cristão, que continuaria sendo a base e inspiração de Bizâncio. Talvez malograsse por querer abarcar o mundo com as pernas. Na consagração de Sta. Sofia, em dezembro de 537, acredita-se que tenha murmurado: "Salomão, eu vos superei".

Se assim foi, suas palavras continham, pois, muita arrogância. As cir­cunstâncias voltaram-se contra ele. Em 541, os ostrogodos rebelaram-se na Itália. Os generais de Justiniano levaram uns doze anos para dominar a situa­ção. A Itália sofreu terrível devastação e Roma perdeu grande parte de sua anterior magnificência ao passar de um lado para o outro. A luta foi tão pro­longada porque Justiniano enfrentou uma renovação da guerra ao longo da fronteira oriental com a dinastia sassânida do Irã, ao mesmo tempo que a fron­teira do Danúbio ameaçava ceder sob pressão das tribos eslavas. Estas eram um povo que fazia sua estréia no palco da história, quando começaram a afluir de sua terra original nos pântanos do Pripiat e arredores. Mas o princi­pal perigo era mais insidioso. Em 541, a peste bubônica atingiu o Egito, e no ano seguinte alastrou-se por todas as províncias orientais, chegando a Cons­tantinopla, onde fez sentir um terrível peso. Procópio sobreviveu a ela e reconheceu que no auge morriam 5 mil pessoas por dia. A peste paralisou o governo e a sociedade por pelo menos três anos. O próprio Justiniano adoeceu, mas recuperou-se e concebeu engenhosos expedientes para fazer face ao desmantelamento produzido pela epidemia. Contudo, após superar as dificuldades imediatas que se apresentaram, teve de enfrentar uma amarga tragédia pessoal. Em junho de 548, sua consorte, a Imperatriz Teodora, mor­reu. Ele levou vários anos para se recuperar da perda.

Os últimos anos de Justiniano foram implacáveis. A peste bubônica res­surgiu a intervalos regulares. Minou as fundações econômicas e demográfi­cas do império e solapou a viabilidade da polis, que estivera no centro da vida provinciana. Tão importante quanto seus efeitos sociais e econômicos foi o impacto psicológico. Pelo detalhado relato de Procópio sobre a peste em Constantinopla, sabemos que os médicos se desesperaram com sua ciência. Nada podiam fazer para combater a doença. As pessoas se aglomeravam den­tro das igrejas como a melhor esperança de proteção. Apesar de fugir para áreas mais seguras à aproximação da peste, outro historiador da época per­deu quase toda a família em surtos bubônicos; sua imprevisibilidade deixou-lhe apenas Deus a quem recorrer. Foi tomado por um sentimento de que Deus punia seu povo pelos pecados cometidos. Justiniano baixou legis­lação contra o homossexualismo, a qual prescrevia a pena de morte. Achou que seu império poderia sofrer o mesmo fado das cidades da planície ­Sodoma e Gomorra - e pelo mesmo motivo.

Justiniano sempre fora intensamente religioso. Bebia pouca coisa além de água; comia com parcimônia - apenas legumes, picles e ervas, segundo um relato - e se satisfazia com um mínimo de sono. Deleitava-se na com­panhia de monges, e a teologia proporcionava-lhe o assunto preferido de conversa. Uma vez contraiu uma infecção no joelho, provocada por extenuantes devoções durante a Quaresma. Em outra ocasião - talvez tenha sido quando adoeceu com a peste - os médicos desesperaram-se por sua vida. Mas os santos médicos, Cosme e Damião, visitaram-no numa visão e ele se recuperou. Ele mandou reconstruir o santuário dos dois fora de Constantinopla e fez uma peregrinação ao local. Em 563, fez outra peregrinação ao santuário do Arcanjo Miguel em Germe, no interior da Anatólia. Tinha oitenta anos na época. Um feito extraordinário para alguém que desde a ado­lescência quase nunca viajara além dos arredores da capital.

A força de caráter de Justiniano é evidente pela maneira como enfren­tou as crises do período médio de seu reinado e as superou em grande parte. Um símbolo disso foi sua reação ao colapso da cúpula de Sta. Sofia em 558: mandou reconstruí-la, e a igreja foi reconsagrada quatro anos depois. As realizações da primeira parte de seu reinado foram postas à prova, mas mostra­ram-se basicamente acertadas. O esforço para preservá-las apenas expôs com mais clareza seu verdadeiro sentido e caráter radical. A ênfase foi dada ao cristianismo. Justiniano dedicou uma imensa parte de seu tempo a proble­mas de teologia, na esperança de levar paz à Igreja. Percorreu um longo caminho para abrandar os monofisistas, condenando os teólogos ortodoxos que pareciam dar excessiva ênfase à humanidade de Cristo. Isso não era do agrado do papado. Quando, em 553, Justiniano convocou um Concílio Geral em Constantinopla, coagiu o papa da época a aceitar a fórmula de que Cristo poderia ser homem perfeito e Deus perfeito, "distintos, mas inseparáveis", porém, no nível mais íntimo do ser, era um só. Sob a orientação de Justi­niano, Constantinbpla desenvolveu sua própria teologia distintiva, que ao longo dos três séculos seguintes seria mais criativa do que a de Alexandria ou a de Roma.

Justiniano realizou quase tanto quanto pode um homem vivo, mas pró­ximo ao fim da vida parecia nada ter de novo a oferecer. Ficou isolado e impopular - destino dos governantes, por maiores que sejam, que viveram tempo demais -, e sua morte em 565 foi um alívio. Sucedeu-lhe o sobrinho Justino, que tentou se distanciar da impopularidade do tio. Contudo, sua tentativa de reverter a passiva política externa dos últimos anos de Justi­niano foi mal avaliada. Levou ao rompimento das relações com o Império Sassânida, ao enfraquecimento da fronteira do Danúbio e, por fim, à invasão da Itália pelos lombardos, o que desfez grande parte da obra de Justiniano. Os malogros de Justino contribuíram para seu colapso mental e substituição por Tibério, membro de seu estado-maior. Tibério reinou por um breve período (578-82) e foi sucedido pelo genro, Maurício (582-602), por acaso um dos poucos generais bem-sucedidos da época. Esses imperadores, cada um a seu modo, lutaram para preservar o legado de Justiniano. Embora mais prolongado, foi um período semelhante aos anos intermediários do reinado de Justiniano, quando a luta para superar todos os tipos de dificuldades era alentada pela necessidade de preservar, como uma obrigação religiosa, o império cristão e sua capital, a nova Roma. Nisso, houve completa continui­dade com o reinado de Justiniano. Nenhum desses imperadores teve oportunidade de construir na escala de Justiniano na primeira parte de seu rei­nado, mas eles se mantiveram na mesma tradição de patrocinar relicários de santos e enfatizar a proximidade do imperador com Cristo. Justino II acres­centou uma nova sala do trono ao Chrysotriklinos, o principal salão de recep­ção do Grande Palácio. O trono ficava na abside, sob um mosaico de Cristo, e acentuava o papel do imperador como representante de Cristo na terra, em grande consonância com a concepção do cargo imperial elaborada por Justi­niano. Complementava-se pela forma como os símbolos do cargo imperial perdiam seu cunho romano. O Imperador Maurício substituiu uma vitória romana pela imagem da Mãe de Deus no sinete imperial. Talvez também tenha sido responsável por instalar uma imagem de Cristo sobre o Portão Chalke, a principal entrada do palácio imperial.

por ANGOLD, M. Bizâncio: a Ponte da Antiguidade para a Idade Média. São Paulo: Imago, 2002.


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