Período das Seis Dinastias

Intrusos, Generais e Excêntricos

O Período das Seis Dinastias: 222-589 d.C.

 

 

Durante o século III d.C., um cavalheiro de aparência um tanto dissoluta foi visto pelas ruas de Luoyang conduzindo um pequeno carro puxado por dois gamos. Acompanhavam-no dois criados, um deles com uma garrafa de vinho e um cálice, o outro carregando uma pá. Indagado sobre a finalidade da pá, o segundo criado respondia que, se o seu amo caísse morto, ele tinha instruções para o enterrar aí mesmo. O cavalheiro era Liu Ling, um dos membros do grupo conhecido como os Sete Sábios do Bosque de Bambu. Era evidente que ele fazia questão de atrair as atenções para a sua própria excentricidade. O significado da garrafa de vinho era óbvio, mas o da espada era menos claro e peculiarmente chinês: o de que o intricado ritual confuciano em torno da morte e de outros fatos da vida era absurdo e contrário à natureza. Para aquele que aceitava as coisas tal como se apresentavam, e se divertia num breve estado de embriaguez, os problemas deste mundo pareciam "camalotes flutuando rio abaixo".

 

Essa atitude hedonista, deliberadamente dotada por alguns intelectuais como os Sete Sábios, que se entregavam a debates livres sobre a filosofia daoísta conhecidos como "discussões puras" (qing tan), estava no extremo oposto da moralidade convencional imposta pela erudição oficial confuciana, predominante ao longo da maior parte da história chinesa. Era um subproduto da era de invasões bárbaras e de extrema confusão política. Durante esse período de três séculos e meio, o mais longo período de desunião política na história da China, a reação de muitos homens de pensamento foi a de completa renúncia à vida pública. Assim, esse período é freqüentemente omitido ou apenas tratado por alto nas histórias. Foi, entretanto, uma época em que se insuflou um novo vigor na sociedade, graças ao sangue novo proveniente do outro lado das fronteiras da China. Novas iniciativas no pensamento e na religião, até em administração, introduzidas no período das Seis Dinastias, eram agora vistas como precursoras ou modelos para o grande florescimento da cultura e da sociedade quando o império chinês voltou a unificar- se, uma vez mais, sob as dinastias Sui e Tang.

 

Sumário dos Acontecimentos

 

As alternâncias de poder entre os líderes, muitos dos quais não eram chineses, e suas efêmeras dinastias no Norte e no Sul durante o período das Seis Dinastias, são extremamente complicadas. Os acontecimentos poderão ser resumidos, em suas linhas gerais, da seguinte maneira: Os Três Reinos que surgiram com a derrocada da dinastia dos Han posteriores dominou a cena de 220 até à década de 260- com exceção de Wu, no Sul, cujo domínio se estendeu até 280. No começo, os três lograram expandir-se: o reino Wei, ao Norte, penetrando na Coréia; Shu-Han, no Sudoeste, conquistando algumas tribos aborígines circundantes; e Wu, no Sul, ampliando seu território até o Yietnã. Em 263, Wei anexou Shu-Han, um reino vizinho, e pouco depois um general de Wei anunciou o estabelecimento de uma nova dinastia, a Jin, a qual conquistou o terceiro reino, Wu, em 280, e voltou a unificar a China por breve período. Daí em diante, estabelece-se uma clara divisão entre China setentrional e meridional, divisão essa que persistirá até o fim da era em 589.

 

A história do Norte é marcada, durante uma centena de anos, por numerosas invasões dos "bárbaros", alguns mais sinicizados. outros menos. Os 16 Reinos foram ocupados e perdidos por cinco nações, três das quais, Xiung-nu, Jie e Qianbei, eram oriundas das estepes e falavam turco, mongol e tungúsio, ao passo que as outras duas, os Qiang e os Di, eram montanheses e falavam tibetano e tanguto. A fase seguinte no Norte revestiu-se de grande importância por razões culturais, sobre as quais voltaremos a falar mais adiante, e o poder foi detido pela dinastia Wei Setentrional (386-534; não confundir com o reino Wei de Cao-Cao entre os Três Reinos, o qual é designado algumas vezes como o Cao-Wei). Quatro Estados, subdivididos e de escassa importância, fecharam o período no Norte.

 

No Sul, a classe dominante era constituída por aristocratas chineses, muitos dos quais tinham migrado para o sul ante o avanço dos ferozes líderes tribais, que tinham ocupado a região setentrional de sua pátria. De fato, durante todo o período que vai do século III ao século V, a população de ascendência chinesa na região ao sul do Yangzi registrou um considerável aumento numérico, conquistando e suplantando as tribos nativas. Esse movimento de pessoas. afetando todo o futuro da China, é um exemplo da importância do período que estamos recapitulando, independentemente de sua falta de unidade política. A ascensão dos grandes feudos independentes, que observamos no final da dinastia Han. teve prosseguimento, e a mão-de-obra de que precisavam era fornecida pelos camponeses em fuga do Norte ou pelos nativos do Sul conquistado. No seio das famílias aristocráticas surgiram os generais que se tornaram imperadores da sucessão de dinastias baseadas na capital do Sul, Nanjing (Nanquim).

 

As Seis Dinastias do Sul que deram seu nome ao período foram a Jin Oriental, a Liu Song, a Qi Meridional, a Liang, a Chen e a Sui. Cumpre dizer apenas algumas palavras sobre elas separadamente.

 

A Jin Oriental foi uma continuação no Sul, de 317 a420. da dinastia Jin (ou Jin Ocidental) já mencionada como responsável pela unificação do país durante um breve período. Foi bem-sucedida na conquista de Sichuan, o que lhe propiciou acesso à Ásia central. O reino sofreu uma rebelião no ano 400, liderada por um membro do Bando dos Cinco Celamins de Arroz, o qual recrutava marinheiros, pescadores e piratas para a sua causa, ao longo da costa meridional. O general que sufocou a rebelião, fiel a um padrão corrente nessa época, tratou de aproveitar sua posição vantajosa para tomar o poder em Nanjing; mas foi derrotado, por seu turno, por um rival que fundou a dinastia Liu Song (420-479).

 

Os Liu Song encontraram dificuldades, tanto por parte de seus próprios aristocratas que se obstinavam em manter seus privilégios, quanto dos ataques desencadeados pelos Wei Setentrionais, e acabaram sucumbindo, cedendo o lugar aos Qi Meridionais (479-502). Nessa dinastia, os empreendimentos comerciais fizeram grandes progressos. Tal como na dinastia Liu Song, a tendência geral era antiaristocrática mas, quando ela foi levada longe demais, um massacre de nobres provocou tal resistência que pôs fim a essa efêmera dinastia.

 

A dinastia Liang (502-557) forneceu um ligeiro interregno de paz e prosperidade, em virtude do longo reinado de seu fundador, Liang Wu Di (502-549). Entrementes, estava ocorrendo uma importante mudança econômica, a qual tinha seu paralelo, em anos não muito posteriores, na Europa medieval: as trocas e o comércio registravam um crescimento firme, e a hegemonia do auto-suficiente senhorio feudal, com seu todo-poderoso castelão, estava declinando. Durante a primeira metade do século VI na China, as cidades do Yangzi e Cantão, no Sul, estavam crescendo em importância. As crônicas da dinastia Liang revelam a presença e atividade de um número cada vez maior de mercadores., não só chineses mas também do Sudoeste asiático, indianos e persas. Estavam sendo lançados os alicerces para a vasta expansão comercial do Sul da China e seu intercâmbio ultramarino durante as dinastias subseqüentes. A cultura dos Liang foi estimulada pelo Budismo, do qual o imperador Liang Wu Di era um fervoroso defensor. Mas houve um novo evento militar que também teria seu paralelo europeu, embora em data muito ulterior: a ascensão de exércitos mercenários, sob o comando de caudilhos que da guerra faziam um modo de vida, constituía uma ameaça para a dinastia Liang e para os grandes aristocratas que, por largo tempo, haviam desfrutado um lugar ao sol.

 

A dinastia Liang cedeu o lugar à Chen (557-589), a última das dinastias divididas antes de Sui reunificar a China. Os reveses que acompanharam o declínio dos Liang resultaram na perda de Sichuan e dos territórios ocidentais. Chen estava enfraquecida demais para se defender contra uma coligação de inimigos e caiu em poder dos Sui em 589.

 

Literatura na Era dos Três Reinos.

 

Essas calidoscópicas mudanças políticas ocorreram na cúpula e cumpre registrá-Ias, que mais não seja para manter em ordem a estrutura básica da história chinesa e proporcionar pontos de referência nas dinastias para quem desejar ir mais longe no estudo da arte, filosofia ou literatura chinesa. Mas as mudanças subjacentes que se efetuaram, lentamente, na cultura e na sociedade. durante esse conturbado período, são mais importantes. O estudo de história social despertou-nos para o fato de que existem dois ângulos distintos donde os eventos de qualquer período dado devem ser observados. O ângulo básico é de natureza puramente factual: o que foi que realmente aconteceu? Mas, a longo prazo, o ângulo mais importante pode ser o imaginário: o que é que aqueles que viveram depois dos eventos supõem que aconteceu? Através de que prismas viram eles os acontecimentos? Pois é isso o que determina a história futura.

 

A era dos três Reinos, no começo do período que estamos examinando, oferece um bom exemplo desse ângulo duplo. Havia, de fato, muito pouca escolha entre os três generais - quase lhes poderíamos chamar bandidos - que, impelidos por motivos de engrandecimento pessoal, talharam suas esferas separadas de controle. Traições e matanças marcaram seu avanço. Mas gerações subseqüentes de chineses interpretaram a era dos Três Reinos, em retrospecto, como um período de aventura e de gestas heróicas de cavalaria. Os Chineses realistas, que não são, por via de regra, propensos à glorificação da guerra, deleitaram-se com as façanhas audaciosas e as fugas sensacionais desse período. Assim como Shakespeare se inspirou num repertório de crônicas de batalhas durante as Guerras das Rosas e a dramaturgia Nô japonesa se apoiou no heroísmo das Guerras Gempei, também o teatro chinês subseqüente e o famoso Romance dos Três Reinos descobriram um fecundo manancial de temas nesse período de guerras e de fortunas cambiantes. As aventuras que acarretaram tanta miséria e infortúnio na época tornaram-se mais românticas à medida que se distanciavam nas brumas do passado. A Cao-Cao coube o papel do vilão, enquanto Liu Bei, de Shu-Han, proclamando-se o continuador das tradições da grande dinastia Han, era o herói. Todo chinês está familiarizado com os estratagemas de seu fiel general, Zhuge Liang, e com as façanhas de Guan Yu, que acabou sendo deificado como Guan Di, o Deus da Guerra. Mas, ao contrário do culto clássico de Ares ou Marte, Guan Di é reverenciado pelo povo comum como o deus que impede a guerra.

 

Os ensaios dos pensadores, em contraste com as histórias contadas pelo povo, tendem nessa época a ser uma literatura escapista, escolhendo por tema a renúncia às pesadas responsabilidades que o exercício de um alto cargo envolve e o retorno ao consolo e refrigério da natureza, como indica este excerto universalmente sedutor da literatura do começo do século V. O estilo clássico e ligeiramente pedante da tradução de Herbert A. Giles, o primeiro professor de chinês na Universidade de Cambridge, reflete adequadamente o original, no qual Tao Yuan-ming está deliberadamente saboreando as alegrias simples de um modo erudito.

 

DE NOVO, O LAR!

Encaminho meus passos para casa. Meus campos, meus jardins, sufocam de ervas daninhas: não deveria ir? Minha alma levou uma vida de escravo: Por que haveria de ficar e definhar?(...) Suave, suave, desliza meu barco, minhas roupas esvoaçando na leve brisa. Indago meu caminho à medida que avanço. Deploro a lentidão do alvorecer do dia. Enxergo a distância meu velho lar, e alegremente acelero a cadência, na pressa de chegar. Os servos precipitam- se em minha direção; meus filhos aglomeram-se no portão. O lugar é um descampado ao abandono: mas ali está o velho pinheiro e descortino os meus crisântemos. Tomo as crianças pela mão e entro. Vinho é trazido em garrafas cheias e bebo-o em copos cheios até à borda. Contemplo, lá fora, meus ramos favoritos, a cabeça colada contra a janela, em minha liberdade recém-encontrada. Olho embevecido as doces crianças em meus joelhos. E dedico-me agora com prazer ao meu jardim. Existe um portão mas raramente está aberto. Apóio-me em meu bordão enquanto perambulo ou sento-me para descansar. Ergo a cabeça e contemplo a cena encantadora. As nuvens sobem, relutantes, do fundo das montanhas; cautelosa. a ave busca de novo seu ninho. As sombras dissipam-se, mas eu ainda me atardo junto de meu solitário pinheiro. De novo em casa! Não terei amizades que me desviem daqui e me seduzam com longínquas paragens. Para mim, os tempos estão desordenados; e o que tenho eu a desejar dos homens? Passarei meus dias na pura fruição do círculo familiar, deleitando-me, em minhas horas de ócio, com o alaúde e o livro. Meus agricultores me dirão quando a primavera está próxima, e quando haverá trabalho nos campos lavrados. Para lá irei de carroça ou barco, através da profunda garganta, para lá dos penhascos enevoados, folhagem brotando alegremente nas árvores, o pequeno regato que incha, caudaloso, ao desprender-se de sua minúscula fonte. Feliz é esta renovação da vida em sua estação própria; mas, quanto a mim, rejubilo porque minha jornada terminou. Ah, quão breve o tempo que passamos aqui na terra! Por que não sossegar então nossos corações, parando de nos preocupar sobre se ficar ou partir? De que serve consumir a alma com pensamentos angustiosos? Não quero riqueza nem poder; o céu está para além de minhas esperanças. Assim, deixai-me varar morosamente as horas brilhantes à medida que chegam e passam, em meu jardim e entre as minhas flores; ou subirei a montanha e entoarei a minha canção, ou tecerei meus versos à beira do límpido regato. Desse modo esgotarei o tempo que me foi concedido, contente com a determinação do Destino, meu espírito livre de cuidados.

[Tao Yuan-ming (365-427 d.C.). traduzido por Giles. Gems of Chinese Literature. pp. 103-04.]

 

Budismo

 

Vimos que o Daoísmo proporcionou um canal para o outro aspecto, mais romântico, da natureza humana chinesa, o qual não estava satisfeito com o código prosaico do Confucionismo. Embora o âmbito total do Confucionismo desenvolvido não levasse em conta as aspirações espirituais do homem, em boa parte de sua prática estava limitado a um manual ético para o funcionário erudito e escassa era a sua mensagem - e alívio nenhum - para o camponês comum ou o pequeno mercador, a quem aconselhava que se comportasse bem e mantivesse sua posição subordinada. O Daoísmo, por sua vez, dividiu-se numa filosofia rarefeita para mentes especulativas, por um lado, e num culto popular de superstição e magia, sem desafio a uma existência superior, por outro. Portanto, amadureceu a oportunidade (é lícito generalizar, embora cautelosamente) para a introdução do Budismo, uma religião estrangeira, que doravante constituirá a terceira das três grandes religiões ou modos de pensar dos chineses.

 

Se o solo da sociedade chinesa não tivesse sido tão violentamente devastado pelas guerras do período seguinte à dinastia Han, e não fosse tão alterado pela invasão bárbara, é duvidoso que a nova religião tivesse encontrado acolhimento propício e ganho raízes. O Budismo, em sua forma original, brotando do solo da Índia, é profundamente estranho aos modos de pensar chineses. É sumamente especulativo e abstruso. Envolve uma fuga à responsabilidade social e nega as obrigações familiares através de seu ideal monástico. A noção hindu de karma, a série de atos que determinam o caráter - e, portanto, o destino - através de uma eterna seqüência de reencarnações, é alheia à mentalidade chinesa, embora fosse admitida, em última instância, pelo pensamento chinês e japonês.

 

O Budismo, não obstante, foi acolhido e adotado extensamente na China, e exerceu profunda influência na história subseqüente, embora a própria religião, com o passar do tempo, sofresse significativas mudanças. O Budismo atraiu os chineses porque supriu o vácuo religioso já assinalado. Oferecia uma filosofia profunda e uma explicação coerente da vida e do universo, levando em conta facetas do sofrimento e destino humano sobre os quais a filosofia chinesa, até então, nada tivera que dizer. Era acompanhada de um ritual impressionante e de uma arte e iconografia que nunca foram superadas e só raramente igualadas na representação de qualidades espirituais. Oferecia um desafio espiritual e paz interior, recolhi- mento monástico em épocas perturbadas, e uma espécie de atração mágica às almas simples que não fossem capazes de apreender suas idéias mais avançadas. Era uma religião organizada, com alguma coisa para todos.

 

O Buda histórico, conhecido como Sakyamuni, fundador da religião por volta de 500 a.C., era um príncipe de Magadha, no moderno Nepal, nas faldas do Himalaia. A tradição do Budismo foi, no começo, puramente oral, e não é fácil tarefa distinguir os fatos originais dos aditamentos posteriores no estabelecimento de suas crenças e ensinamentos. Certas experiências do Buda histórico parece terem sido postas em formas facilmente memorizáveis, como o seu encontro com quatro formas de sofrimento - pobreza num mendigo, dor nos gritos de uma mulher em trabalho de parto, doença e morte na forma de um cadáver - quando o jovem príncipe saiu pelos quatro portões do palácio em quatro dias sucessivos, apesar das tentativas de seu pai para mantê-lo no interior das bem protegidas muralhas. Impelido por essas experiências a prosseguir em sua busca espiritual, o príncipe abandonou a esposa e um filho pequeno, e juntou-se a um grupo de ascetas. Iniciou um período de rigoroso jejum mas acabou sentindo que o sofrimento auto-infligido não era a melhor maneira de encontrar a resposta que procurava. Recolhendo-se à selva para meditar, um método tradicional hindu de buscar privacidade total, Sakyamuni sentou-se sob uma baobá e jurou que daí não sairia enquanto não tivesse alcançado a verdade. Suas tentações foram representadas, na arte subseqüente, por donzelas atraentes girando em redor de sua cabeça para distraí-Io de sua busca, e a simpatia da natureza foi representada por terremotos e prodígios que acompanharam sua luta. Finalmente, sua busca foi recompensada e ele alcançou o esclarecimento e a luz, tornando-se Buda, "O iluminado". Cumpre assinalar que não estava envolvida a dependência de um deus pessoal, e que a sua experiência parece ter sido da natureza de um decisivo avanço psicológico, graças ao qual pôde obter uma compreensão intuitiva do sofrimento e da vida como um todo. A experiência foi acompanhada de uma profunda sensação de liberdade e bem-estar. Ele expressou sua compreensão clara e intuitiva da natureza íntima das coisas em sermões que proferiu no parque dos gamos, em Benares, e consta que discípulos, incluindo alguns do grupo de ascetas, não tardaram em reunir-se à volta dele.

 

A essência dos ensinamentos iniciais do Buda foi resumida nas Quatro Verdades Nobres: que a vida é sofrimento, que a causa do sofrimento é o desejo, que a resposta é sufocar o desejo e que o modo para se alcançar essa finalidade é pelo Caminho de Oito Braços, um modelo de existência e pensamento justos. Especificamente, seus seguidores juraram não matar, roubar, mentir, beber ou tornar-se impuros. Não tardaram em criar-se ordens monásticas para homens e mulheres. Declarou-se que as Três Coisas Preciosas eram o Buda, o Dhanna (a Lei ou o Caminho) e o Sangha (a Ordem Monástica).

 

A propagação do Budismo na Índia foi promovida por um certo número de fatores, entre os quais vale salientar um sentimento de irmandade na ausência de casta, e a ênfase sobre um Caminho Intermédio entre a satisfação dos próprios apetites e um ascetismo extremo. Um ponto alto no desenvolvimento do Budismo foi atingido no reinado de seu grande protetor, o imperador Asoka, no século III a. C. A nova religião propagou-se gradualmente ao Ceilão, Sudeste asiático e Sul da China. No ano 100 d.C., o Império Kush, no Noroeste, era fortemente budista e, dessa base, a religião atravessou grande parte da Ásia central, por intermédio de comerciantes e missionários. As regiões do Afeganistão e Noroeste da Índia tinham sido afetadas pela influência grega desde os tempos de Alexandre, o Grande (inícios do século IV a.C.), e vestígios dessa influência podem ser apreciados nas feições e roupagens das imagens budistas dos primeiros séculos de nossa era, uma das grandes épocas da iconografia budista, cujo efeito, por seu turno, se estendeu até à China.

 

O Budismo foi introduzido na China muito lentamente, chegando ao Sul por mar e ao Noroeste por terra. Existe uma tradição segundo a qual o imperador Han, Ming Di, em resposta a um sonho, enviou emissários à Índia para lhe trazerem imagens e escrituras, do que resultou a criação de um mosteiro, em 65 d.C., perto da capital. De acordo com a tradição, a tradução das escrituras para o chinês iniciou-se nesse lugar, chamado Bai Ma Si, Templo do Cavalo Branco, em homenagem ao fiel animal que carregou os rolos em sua longa jornada desde a Índia. O Budismo na China, entretanto, estava limitado nessa fase a um punhado de adeptos na corte. Só obteve acolhimento mais amplo por volta da época da dinastia Wei Setentrional (386-534). Dois fatores sociais tornariam possível, na época, essa mais vasta aceitação. A oposição dos letrados confucianos foi inoperante porque eles já não estavam no poder e os governantes "bárbaros" no Norte estavam dispostos a acolher favoravelmente a nova fé. Ao mesmo tempo, o povo comum abraçou uma religião que prometia uma resposta para o sofrimento e algum consolo numa época de constantes lutas intestinas. Uma correspondente acolhida foi dispensada ao Budismo no Sul, um pouco mais tarde, pelo imperador Liang Wu Di, em começos do século VI, como já se mencionou.

 

O Budismo estabeleceu-se na China em sua forma Mahayana. A cisão entre Hinayana, o Veículo Menor (também conhecido como Theravada, o Caminho dos Anciãos), e Mahayana, o Veículo Maior já ocorrera alguns séculos antes na Índia. O Budismo é praticado hoje como Theravada na ramificação meridional, no Ceilão, na Birmânia, Tailândia e no resto do Sudeste asiático, enquanto o ramo setentrional, na China, Japão, Coréia, Mongólia e Tibete, adere a várias seitas do Budismo Mahayana. As diferenças são significativas. Theravada conserva-se mais próximo do Budismo original, mas Mahayana desenvolveu o culto de toda uma série de deidades, o Buda em várias manifestações como Bodhisattvas ou Existências Iluminadas. Uma delas é Amitabha (em chinês, O-mi-to Fo), o compassivo salvador do Paraíso Ocidental. Uma outra é Maitreya (Mi-Io Fo), correspondendo ao Messias, o Buda que está para vir. Uma terceira manifestação é Avalokitesvara (Guan Yin), literalmente, em chinês, "a que atende ao choro" dos infelizes, e é descrita como a Deusa da Misericórdia. A divindade original aqui representada pelo nome sânscrito é uma figura masculina, mas torna-se uma deidade feminina no decorrer do tempo, uma figura materna colocada de face, não para o afortunado quadrante do Sul, como os imperadores, mas para o frio e inóspito Norte, a fim de prestar ouvidos aos necessitados.

 

O termo Bodhisattva, tal como é religiosamente entendido, encerra a idéia de renúncia por amor aos outros. Essas figuras do Buda estavam prontas para ingressar no Nirvana, uma liberação do ciclo de renascimento e sofrimento, e uma fusão com a Alma Absoluta, tal como uma gota d'água perde sua identidade no oceano; mas comprometeram-se a voltar ao mundo e a não aceitar sua própria salvação enquanto não tiverem sido redimidos todos os seres dotados de sentimentos ou consciência, sejam eles homens ou animais.

 

Ver-se-á que nessas descrições ocorreu uma transferência de termos - de Buda para Bodhisattva, um salvador; da iluminação na experiência original para algo que se aproxima da salvação; e do que para o homem prático é a idéia negativa de Nirvana, literalmente uma extinção, como o soprar de uma vela, para a bem-aventurança e a recompensa positivas do Paraíso Ocidental. Em correspondência com o Paraíso existem as punições do Inferno budista, representadas de forma realista em alguns templos chineses por toscas figuras de gesso sofrendo cruéis formas de tortura. Essas adaptações do Budismo tinham começado antes de a doutrina chegar à China, mas as tendências pragmáticas dos chineses e, na verdade, também dos japoneses, ampliaram-nas à medida que a fé se desenvolvia e se ramificava em várias seitas. Ao mesmo tempo, é importante recordar que grande parte do legado indiano original do Budismo, em sua forma suprema, permaneceu ativa na prática chinesa e japonesa; a disciplina, a compaixão, o profundo discernimento filosófico e psicológico, uma compreensão intuitiva e aceitação limitada do mundo, a ênfase sobre a meditação e a contemplação, e a formação da própria alma, um processo desenvolvido, o que não deixa de ser muito curioso, enquanto o indivíduo se desvencilha do peso do seu ego.

 

A tradição primitiva, como mencionamos, tinha sido inteiramente oral mas, por volta do século I a.C., começou a acumular-se um vasto repositório de escrituras. Estas passaram a ser coletivamente conhecidas como as Três cestas ou Tripitaka, as quais consistiam nos Vinayas, regras para os mosteiros; os Sutras, discursos atribuídos ao Buda; e os Abhidhammas, ou desenvolvimentos escolásticos da doutrina. A sólida base estabelecida pelo Budismo nos vários países da Ásia foi devida, indubitavelmente, ao fato de a nova religião possuir, por essa altura, uma base literária. Isso era particularmente importante na China, onde a palavra escrita era alvo de grande acatamento. Os primeiros missionários e peregrinos dedicaram, pois, uma considerável parcela de seu tempo à difícil tarefa de tradução. A língua chinesa é singularmente inadequada para a transliteração de nomes estrangeiros. Além disso, embora a língua seja rica em vocabulário e expressão de nuanças, as idéias e os termos técnicos do Budismo, com suas origens hindus, formaram um imenso obstáculo à transferência fácil da doutrina para um chinês inteligível, aceitável aos eruditos. As dimensões enormes do corpus de escrituras budistas exigiam também inesgotável paciência no trabalho de tradução. Entre os numerosos tradutores que se empenharam na tarefa durante vários séculos, um dos mais famosos foi Kumarajiva, levado da Ásia central para a China em fins do século IV e que dirigiu uma equipe de eruditos na produção de versões chinesas de 98 escrituras.

 

Com o passar do tempo, chineses budistas começaram a realizar peregrinações à terra sagrada da Índia, a fim de obterem manuscritos e imagens e de visitarem os santuários célebres. Faxian gastou cerca de 15 anos numa viagem à Índia, através da Ásia central, de 399 a 414. Dois séculos depois, Xuanzang realizou uma peregrinação que durou de 629 a 645, tornando-se amigo do grande imperador indiano Harsha e deixando uma valiosa descrição de suas viagens na “Memórias das Regiões Ocidentais". Após seu regresso, ambos os homens dedicaram muito tempo à tradução de obras budistas que tinham levado de volta com eles. As cuidadosas anotações de suas viagens, a par dos comentários por visitantes gregos em outros períodos, fornecem muitos fatos e datas que não foram registrados de qualquer outro modo na história indiana. Dessa forma, a China deu uma contribuição para a civilização indiana, ao mesmo tempo que recebia o tesouro do Budismo; mas as imensas barreiras geográficas limitaram muito o contato entre as duas grandes culturas do Sul e do Leste asiático.

 

in W. Morton, China: história e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.



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