A Vida Intelectual e Artística nos Reinos Bárbaros

Afirmar que as invasões bárbaras destruíram a civilização romana impondo tradições completamente novas é um ponto de vista errôneo, Certamente, o direito bárbaro dá testemunho de uma mentalidade e de práticas Originais: responsabilidade coletiva da família, resgate de crimes por indenizações - wergeld -, duelos ou provas judiciárias. As leis bárbaras, porém, como o Código de Eurico ou a Lei Sálica, redigidas em latim, mos­tram-se profundamente influenciadas pelo próprio direito romano, ao menos por algumas de suas formas provinciais.

A LÍNGUA E AS LETRAS

Dificilmente encontraremos, no domínio literário e intelectual, traços de uma verdadeira cultura germânica. A escrita rúnica, utilizada pelas Iínguas nórdicas, jamais teve grande influência no continente; adotada tardiamente, tende ela a desaparecer desde o século VI (L. Musset). A língua gótica, escrita em alfabeto galego, brilhante no momento da con­versão dos godos, cede definitivamente sua influência ao latim dois séculos mais tarde. Por outro lado, na época dos reinos bárbaros, as manifestações de uma cultura popular, de um folclore rural oposto à cultura dos letrados, parecem ainda difíceis de definir e de analisar. São, sem dúvida, em grande parte a marca de revivescências de antigos temas indígenas, celtas, mais do que de contribuições realmente novas.

A vida literária liga-se sempre às expressões antigas. A língua latina, o gosto pela retórica, mantêm-se com brilho nos reinos godos. Assim em Ravena com Boécio (480-524; a Consolação Filosófica) e Cassiodoro (480­-575; de lnstitutione divinarum litterarum); assim, após a reconquista bizan­tina, no mosteiro de Vivarium, na Calábria, onde Cassiodoro dirige uma espécie de Academia literária e científica, dotada de uma considerável biblioteca. Na Espanha. Isidoro de Sevilha (560-636; História dos Godos, Sinônimos, Origens ou Etimologias, Livro da natureza e das coisas), perso­nalidade forte, um dos clérigos mais brilhantes de toda nossa Idade Média ocidental, permanece também bastante fiel à cultura latina. Depois dele, numerosas obras profanas de valor testemunham sempre o prestígio das letras romanas: as Cartas de Braulion de Saragoça, a Crônica de Juliano de Toledo. Os mosteiros (Dumio perto de Braga, Servitano próximo a Valência, Agaliense perto de Toledo, Caulanium perto de Mérida), as escolas episcopais (Sevilha, Saragoça, Toledo), os reis e os nobres da Espanha enriquecem suas bibliotecas com livros antigos. Na Irlanda, o latim perma­nece uma língua de sábios, erudita, protegida dos atentados do vulgar. Na própria Gália. pode-se encontrar alguma afetação nas lamentações de Gregório de Tours que deplora o declínio das letras: a cultura antiga sobrevive sempre na Provença (Arles) e em Viena (bispos Avit. 450-518. depois Didier 540-610).

Essa imitação, entretanto, não é forçosamente servil. Se a obra de Isidoro de Sevilha marca uma forte nostalgia pela antiga grandeza de Roma, uma viva atração pelos antigos temas filosóficos e uma certa sobriedade de formas de expressão, testemunha também uma profunda originalidade. Encontra-se aí uma sincera emoção, um poder de afeição e de sugestão, uma mentalidade diferente, uma adesão profunda a seu tempo e aos valores do momento. A História dos Godos assemelha-se a uma espécie de canto épico nacional e, para J. Fontaine, a "uma das primeiras formas de expressão literária da sensibilidade medieval". Esta emoção "nacional", o abandono do universalismo romano, do qual Cassiodoro já havia dado os primeiros exemplos, anuncia uma nova cultura.

A ARTE BÁRBARA

As migrações bárbaras trazem para o Ocidente, ao que parece, expres­sões artísticas totalmente novas. Nos tempos bárbaros, as artes ditas "menores" (dever-se-ia mais dizer "mobiliárias" ou "industriais") superam a arquitetura e a grande escultura à maneira antiga. Pode-se, numa certa medida, ligar essa nova arte às tradições nômades, ao desejo de manter a riqueza nas armas, nas vestimentas e nas jóias. A espantosa habilidade dos trabalhadores godos ou francos, primeiramente ambulantes e depois fixados nas margens do Reno, em Worms, Colônia ou Bonn, onde seus ateliers são célebres já no século VI, demonstra todo o interesse mantido no trabalho e na decoração de armas, na joalharia religiosa ou profana (fíbulas, fivelas de cintos, colares de ouro). O trabalho sempre precioso. atento, de um objeto original ao qual o artesão dá o máximo de si, rom­pe claramente com a produção grosseira, em série, da Gália romana. Afirmam-se então novas técnicas: trabalho em finas folhas de metal, em filigrana, em placas cloisonnées incrustadas de esmalte. Das tradi­ções nômades e do Oriente, os bárbaros conservam também o gosto pelo luxo, os metais preciosos e as cores vivas, as vestimentas suntuosas, jóias de ouro e prata, de bronze dourado incrustado de pedras duras ou preciosas. Um grande número de testemunhos tratam do luxo bárbaro: as descrições de Sidônio Apolinário, as dos cronistas árabes que mostram os nobres visigodos cativos em Damasco após a conquista, os tecidos e as jóias encontrados no túmulo da princesa Amegunda em Saint-Denis (por volta de 570), principalmente os extraordinários tesouros visigóticos da Espanha (as coroas descobertas em Guarrazar) e as jóias lombardas de Monza.

Esta arte bárbara liga-se à decoração lisa e negligencia decididamente o relevo: pedras gravadas, desenhos em filigrana. Além disso indica bem um novo gosto: motivos abstratos, entrelaçamentos geométricos, formas estilizadas em todo caso. A arte animalista dos gados (águia, peixe) enriquece-se a seguir, com a chegada dos lombardos cuja influência parece considerável, com temas tomados à arte das estepes (arte dos cito-sármatas), animais fantásticos tais como grifas e dragões. É também uma arte de movimento: feras digladiando-se em duros combates, entrelaçadas, monstros contorcidos.

Entretanto, deve-se, evitar exageros quanto à importância das contri­buições propriamente germânicas. A arte bárbara é também uma arte de síntese, que reúne elementos bastante complexos, de origem por vezes incerta. As tradições romanas permanecem ainda bem vivas nos reinos mediterrânicos dos gados onde são erguidas as grandes igrejas de Ravena, de Mérida ou de Évora; mais tardias (segunda metade do século VII) as de S. João de Bafios, na região de Valência, e de Terrassa, próximo a Bar­celona, com plano cruciforme, ornadas com arcos em ferradura, são cober­tas por abóbadas de pedra. Santo Isidoro consagrou três capítulos de suas Etimologias à construção dos edifícios religiosos ou profanos. Nas regiões do Norte, por outro lado, onde se enfraqueciam as técnicas arquitetônicas, os temas ornamentais não são somente bárbaros. Muitos provêm de antigo fundo celta. A arte irlandesa, através dos magníficos manuscritos ilumi­nados nos mosteiros (o Book of Kells, por exemplo) e as grandes cruzes de pedra esculpida, ofereceu um exemplo apaixonante dessa síntese de elementos diversos: decoração tomada aos sarcófagos gauleses dos séculos IV e V (sacrifício de Abraão; Daniel na gruta dos leões), cenas populares, imitações da joalharia saxônica, imagens pagãs. Os escribas irlandeses adotam naturalmente os motivos pagãos, transformam-nos em símbolos cristãos que, entretanto, respeitam as antigas crenças (os entrelaçados simbolizando a água corrente, os patos símbolo da fertilidade). Enfim, por todo o Ocidente, numerosas contribuições bárbaras refletem empréstimos às civilizações orientais, a Bizâncio, ou à Pérsia dos sassânidas. De maneira que, assim, reforçam a evolução da arte romana, já no fim do Império cada vez mais influenciada pelo Egito e pela Síria, evolução cujos monumentos e objetos bizantinos de Ravena testemunham de forma decisiva. De fato, sem menosprezar a importância das novas técnicas, principalmente no trabalho do metal a estética bárbara deve muito ao Oriente mediterrânico.


HEERS, J. História Medieval. Lisboa: Difel, 1986.