O Fim do mundo antigo - uma introdução

Que a Idade Média não veio a suceder-se bruscamente à Antiguidade parece-me, a priori, um facto evidente. A própria noção de um período intermédio entre os tempos antigos e a época moderna levou algum tempo a surgir. Entrevisto talvez desde o século XVII, só veio, contudo, a ser aceite pela ciência numa data relativamente recente.

Durante longo tempo, os historiadores limitaram-se a desen­volver as suas narrações sem se preocuparem em operar uma pon­tuação cronológica, sem sentirem necessidade de se deterem numa ou noutra pausa de primordial importância. Quando o conceito de medievismo veio a impor-se à atenção de todos e de cada um - há apenas um século -, o dogma da evolução, da transformação lenta e continua da natureza e da humanidade levou ao menosprezo do problema da descontinuidade. De tal modo que as oposições cardinais entre o período ao qual convém reservar o termo «Anti­guidade» e os tempos subseqüentes teriam, sem dúvida, continuado a ser ignoradas se não houvesse a necessidade de operar adentro da narração histórica, determinado tipo de demarcações para fins pedagógicos. Infelizmente, essas divisões cronológicas para fins escolares foram feitas com tão pouco tacto, ou até, por vezes, de um modo tão ridículo, que acabaram por comprometer toda e qualquer tentativa de discriminação entre a Antiguidade e a Idade Média.

Contudo, esta separação corresponde a uma realidade, e seria perigoso recusarmo-nos a operá-la. Se é verdade que o rio do tempo flui com um movimento continuo, também é verdade que a veloci­dade do seu curso nem sempre é igual: ora diminui ao ponto de o seu movimento ser quase imperceptível, parecendo ser possível resumir em algumas páginas a narração de vários séculos, ora avoluma desmesuradamente o seu caudal, fervilha e desaparece ao longe, obrigando o historiador, como que esmagado pela abun­dância dos factos que, rápidos, fluem em tumultuoso cachão, a ter de passar toda uma vida ocupado em traçar o quadro de umas quantas jornadas revolucionárias.

Ao longo da história da humanidade, há certos períodos em que o homem já não compreende os seus antepassados, a começar pelo próprio pai. Parece haver como que uma ruptura de continuidade psicológica. Um contemporâneo de Séptimo Severo ou até mesmo de Diocleciano ter-se-ia podido reconhecer num seu ante­passado do tempo de Augusto. Porque, durante esse intervalo de dois ou três séculos, o seu gosto, a sua língua, a sua arte, a sua concepção do mundo, as suas paixões, não tinham sofrido mais do que algumas modificações de contorno, sem que tivesse havido qualquer esbatimento da similitude intrínseca de base. Mas, que há de comum entre um contemporâneo de Diocleciano e um con­temporâneo do rei Dagoberto? O mundo que os homens do século VII vêm a contemplar é totalmente diferente daquele que os homens do século m ou do século IV tiveram ocasião de ver: o Império Romano já não existe, salvo no Oriente, mas sob uma forma que já nada tem de latino; novas nações o invadiram, estando elas mesmas, por seu turno, ameaçadas por outros povos, ainda mais ferozes e estranhos; novas línguas, novas leis, novos hábitos vieram a impor-se. E, principalmente no caso do mundo interior, houve uma total reformulação vivencial. O homem passou a des­viar-se com indiferença ou repulsa dos objectos mais queridos aos seus mais próximos antepassados: já não compreende a literatura antiga, porque já não a ama; a própria forma que lhe serve de veiculo, a língua, é algo que lhe escapa; as maravilhosas artes plás­ticas deixaram de o encantar. Os deuses vieram a morrer às mãos do Deus único, cujos mandamentos impõem uma regra de vida de tal modo inovadora que doravante o mundo terreno passará para segundo plano; o sábio imbuído da «nova filosofia» irá passar a situar o objecto dos seus desejos no domínio do além. Entre o homem dos novos tempos e o homem dos tempos antigos já não haverá mais lugar para um pensamento comum.

Seguir, tal como seria conveniente, a curva evolutiva de uma tão completa transformação da psicologia humana exigiria o recurso a testemunhos preciosos, delicados, abundantes. Infelizmente, a nossa documentação é indigente, fragmentária, incerta. Colocado perante o «mais difícil dos problemas da história», o historiador sente-se dolorosamente aquém da tarefa a cumprir. A fim de não acabar por vir a renunciar, a fim de poder triunfar dos seus escrú­pulos, quando não mesmo da Suas angústias, tem de nunca se esquecer da importância do fim prosseguido, assim como de que nunca é benéfico que um excesso de humildade venha a impedir-nos de servir o culto. [...]

LOT, Ferdinand O Fim do Mundo Antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa: Ed.70, 1985 (original, 1926)



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