Em Direção ao Abismo

1.TODO UM HEMISFÉRIO EM CRISE

“O mundo envelhecido já não conserva o antigo vigor... o inverno já não tem chuva bastante para alimentar as sementes, nem o verão sol que chegue para alourar as searas... as montanhas desventradas oferecem menos mármore, as minas estão esgotadas, há menos prata e ouro... os campos carecem de agricultores, o mar, de marinheiros, os acampamentos, de soldados... já não há justiça nos julgamentos, competência nos ofícios, disciplina nos costumes... a epidemia dizima o gênero humano... o dia do Juízo aproxima-se.”

Redigida por volta de 250 por Cipriano, esta lista de desventuras (que nós resumimos) pretende oferecer a prova científica de que as pro­fecias, tanto cristãs como pagãs, começavam, inexoravelmente, a reali­zar-se. O “fatal VI milênio depois da Creação” acerca-se do fim. A longa luta entre Deus e o Diabo precipita-se para a explosão final. Que importa se a sucessão dos acontecimentos desmentiu as previsões de Cipriano? O sentimento de que o “Dies Irae” está iminente persistirá durante séculos, exasperando-se a cada nova invasão, precisando-se a cada epidemia de fome, criando uma psicose do Anticristo que todo o homem mau parece encarnar.

O medo não se dissipará senão pouco a pouco e no curso da renova­ção da Baixa Idade Média, não se prestará ao ridículo senão no século XVIII, para renascer, sob outra forma, na nossa época - a da loucura racial e da ciência nuclear. Procuramos reconforto na esperança de que, a despeito de tudo, a razão prevalecerá, o progresso permanecerá sobre a terra; os contemporâneos de Cipriano retomavam coragem espiando, nos sinais da Morte, o anúncio da Ressurreição.

As trombetas do Juízo Final não se fizeram ouvir no fecho do “sexto milênio”, mas o mundo antigo também não lhe sobreviveu. Não se abis­mou de súbito nas chamas dum Apocalipse: em 476, a deposição do último imperador romano no Ocidente, que nos habituamos a considerar como marco inicial da Idade Média, passou quase despercebido fora da Itália. Mas a mudança, conquanto gradual, nem por isso foi menos radical. Se Platão ou Alexandre Magno voltassem a terra sete ou oito séculos depois da morte, ao tempo de Juliano ou mesmo desse infeliz Rômulo destro­nado em 476, teriam encontrado sem dificuldade quem os escutasse e os admirasse; cento e cinqüenta anos mais tarde, pareceriam estranhos e incom­preensíveis aos contemporâneos dum Dagoberto ou dum Agilulfo.

De Roma à China

A revolução foi tão extensa quão profunda. Tudo leva a crer que os abalos se propagaram dum extremo ao outro do continente euro-asiá­tico, onde quer que Estados organizados e civilizados faziam frente aos Bárbaros. Infelizmente, não temos da história persa o conhecimento bas­tante para estabelecer um paralelo frutífero entre as suas vicissitudes pró­prias, nos primeiros séculos da nossa era, e as do Império Romano na época do seu declínio. Aliás, as profundas diferenças entre as estruturas políticas, econômicas e sociais dos dois impérios vizinhos não permitiriam uma comparação rigorosa. O caso mostra-se bem outro no que respeita à China, cujo passado conhecemos melhor e cuja estrutura fundamental, não obstante o enorme afastamento material e cultural, não era muito diversa da de Roma.

Ora, tanto na China como no mundo mediterrâneo, os sintomas de mal-estar tinham começado a revelar-se desde o século II da nossa era e a tornar-se alarmantes desde o III. As lutas civis, a divisão do Império, a efêmera restauração da unidade, a conquista da capital e duma metade do Império pelos Bárbaros do Norte que nele se haviam infiltrado há já longo tempo - todo esse drama se desenrola no Extremo-Oriente com o mesmo andamento e quase os mesmos intervalos que no Extremo­-Ocidente, apenas com a diferença de que a “Bizâncio” da China não sobre­viveu na metade oriental, mas sim na metade meridional do Império. Na China, como no mundo mediterrâneo, a crise política e militar de super­fície faz-se acompanhar por uma profunda crise econômica e religiosa. O velho confucionismo, ressequido na repetição de fórmulas, cede o passo a um taoísmo indígena, mas transformado pelas influências hindus, e, sobre­tudo a um budismo a todos os títulos estrangeiro e místico, ascético, monacal. A população empobrece e rarefaz-se, especialmente nas pro­víncias que sucumbem aos invasores; os cidadãos procuram subtrair-se à opressão fiscal, quer emigrando quer acolhendo-se à proteção dos poderosos.

Será preciso sublinhar que as semelhanças entre as duas revoluções, a chinesa e a mediterrânea, perdem em nitidez logo que nos debrucemos sobre o pormenor? Todavia, tais semelhanças permanecem assas impres­sionantes para que nos perguntemos se não terá havido uma causa comum a evoluções tão paralelas. E a esta pergunta segue-se uma outra: as crises política e militar precederam as crises econômica e religiosa ou sucederam­-lhes? É talvez o problema da galinha e do ovo: se é verdade que as guer­ras civis e as invasões dilapidaram os recursos materiais e orientaram os espíritos para novas crenças, também o enfraquecimento econômico e o tédio do século suscitaram as perturbações e entregaram o país aos inva­sores. Seja: mas entre as tensões concomitantes que conduziam à ruptura do equilíbrio, não existirão graus ou até mesmo uma progressão crono­lógica?

Exclui-se a morte violenta

A hipótese de uma morte violenta das civilizações antigas, na seqüência de choques bélicos, não basta para explicar tudo. Excluam-se as guer­ras civis: tanto a história de Roma como a da China estão cheias delas do princípio ao fim. E então as invasões? A verdade é que os impérios romano e chinês não foram aniquilados, visto que mantiveram uma considerável par­cela do seu território. Até mesmo nas províncias ocupadas, os invasores não desrespeitaram formalmente, não destruíram por sistema a autoridade do império.

Torna-se, aliás, impossível explicar as vitórias dos Bárbaros a não ser por falhas da armadura romana e chi­nesa. Na verdade, a pressão dos povos nômades e seminômades ao longo das grandes muralhas agravou-se a partir dos meados do século II. E em breve se tornou inevitável abrir válvulas de escape, convidando algumas dessas tribos a emparceirarem com os defen­sores das muralhas: o que não impediu a pressão de tudo subverter. Talvez que investigações aturadas, nos setores limítrofes da história, como a arqueologia e a lingüística, permitam um dia que o problema seja visto com mais clareza: Mongóis, Turcos, Sármatas ou Germanos, as tribos das estepes formavam confederações em constante mudança cuja pro­gressão se mantém como fio condutor da história das invasões. Além disso, julgamos entrever alguns elementos materiais do êxito dos Bár­baros: o progresso da metalurgia, oriundo de um centro de difusão na Ásia central, forneceu-lhes espadas mais fortes e mais flexíveis do que as dos Chineses e as dos Romanos, os aperfeiçoamentos represen­tados pelo estribo, a ferradura, os jaezes, aumentaram a sua mobilidade.

Frente a povos melhor organizados, mas enquis­tados nas suas posições defensivas, dispunha de bons trunfos um inimigo que atacava a matar em deslocações contínuas. E se bem que os Bár­baros raramente tivessem triunfado em batalhas campais ou tomado de assalto uma cidade, a ver­dade é que constituíam uma força de desgaste seríssima com o decorrer do tempo.

Não que fossem muito poderosos nem muito encarniçados. Romanos e Chineses recrutaram tantos Bárbaros quantos quiseram e nunca os acharam menos fiéis do que os contingentes nacio­nais - pelo menos até ao momento em que, tendo quase desaparecido tais contingentes, os Bárbaros compreenderam que se podiam apropriar das províncias de que eram, afinal, os únicos defensores. Mas ainda então, bastaram muitas vezes para os reter presentes, honrarias, outorga de naturaliza­ção e até a sua própria convicção de que eram incapazes de tomar conta do governo. Aliás, eles próprios se dividiam em pequenos grupos mutua­mente hostis, dilacerados por ódios implacáveis entre famílias e até entre irmãos. É fato que não deixaram literatura que testemunhe dos seus pen­samentos; mas as lendas, reunidas muito mais tarde, concordam com as descrições dos historiadores romanos e chineses em mostrar que o mono­pólio dos vícios não era detido pelos povos civilizados nem os povos atrasados monopolizavam as virtudes.

E depois, os Bárbaros eram tão pouco numerosos! Sorrimo-nos hoje da historiografia romântica que pintou as invasões como uma avalanche de massas humanas mal contidas na “estreiteza” das vastas planícies do Norte, ao lermos que o povo ostrogodo, na sua totalidade, guiado por Teodorico à conquista da Itália, pôde encerrar-se durante alguns meses dentro dos muros de Pavia, sem mesmo de lá desalojar os habitantes. Os Vândalos, ao que parece, não ultrapassavam o número de 80.000, incluindo aliados, mulheres e crianças. Mesmo quadro na outra extremidade do hemisfério: os T’opa, que dominaram a China do Norte durante quase dois séculos, não conta­vam, segundo se afirma, mais do que 50.000 combatentes; toda a popula­ção de origem tátara da região em que se situava a sua capital, contava 14.700 pessoas (ou famílias?), incluindo o resto das invasões precedentes.

Os argumentos de São Cipriano

Reconsideremos os queixumes de São Cipriano. No meio de mani­festos exageros, encontramos aí os dados essenciais da situação. Por um lado, as populações dos impérios tinham diminuído; por outro lado, haviam envelhecido moralmente, ou seja, perdido tanto a energia necessária para sustentar o antigo equilíbrio como a flexibilidade indispensável para o ajustar às novas exigências. A corrupção dos costumes, provavelmente menos grave e universal do que os moralistas de então e de hoje preten­dem, há de ter ocasionado menos estragos do que a resignação defendida pelo cristianismo e pelo budismo. Desviadas do poder efetivo, verga­das ao peso dos impostos, votadas à miséria, as massas deixavam andar, mesmo quando a sua vida estava em jogo. Quanto às elites, não só se encontravam desmoralizadas, a ponto de freqüentemente pactuarem com os Bárbaros, como ainda tinham perdido até a faculdade de um pensamento original.

Esta demissão do espírito, que mais adiante retomaremos, seria apenas derivada do afrouxamento duma sociedade demasiado tempo amolecida pelo bem-estar? Ou prender-se-ia antes à decadência física diretamente manifestada no declínio da população?

Desse declínio não nos é permitido duvidar, apesar das numerosas exceções locais e da dificuldade em lhe medirmos as proporções exatas. E ele não nos surpreenderá se considerarmos que a taxa de aumento das socie­dades antigas, mesmo nas condições mais favoráveis, estava estreitamente limitada pela insuficiência da higiene, pelos defeitos da alimentação, pela dureza do trabalho, pela freqüência dos casamentos precoces e pela exposi­ção dos recém-nascidos. Bastava uma leve deslocação de qualquer destes fatores para criar um déficit. As guerras eram mais mortíferas pela misé­ria que geravam do que pelos combates em si. Fontes impossíveis de veri­ficar falam-nos de uma intensificação do controle dos nascimentos nos meios laicos; o monaquismo diminuiu igualmente o número dos progenitores.

Uma explicação cíclica?

Mas os fatores mais interessantes são talvez os de caráter cíclico. Se bem que a história médica da humanidade não tenha sido escrita, sabe-se que os grandes flagelos endêmicos e epidêmicos estão submetidos a flu­tuações de longa duração, que mais não fosse pelas altas e baixas das imu­nizações coletivas. Ora, parece que a mais terrível das moléstias conta­giosas, a peste, entrara numa fase de extrema virulência a partir da grande epidemia de 180, que vitimou Marco Aurélio, o último dos “bons impe­radores” romanos, e minou o poder dos imperadores Han em benefício dum médico-taumaturgo. Desde então, as assolações do flagelo repetiram-se com intervalos cada vez mais próximos até cerca dos meados do século VI, conhecendo nova recrudescência no VIII, para depois passar a segundo plano até a Grande Peste de 1348. Da mesma maneira, durante os últi­mos séculos do Império e os primeiros da Idade Média, a malária (cuja evolução nos escapa fora do Ocidente) tornou inabitáveis vastas regiões que se repovoariam na Baixa Idade Média para se esvaziarem de novo a partir do século XIV. E uma vez que esta doença se relaciona com o escoamento das águas, somos levados a reler as afirmações de São Cipriano que tão ridículas pareceram: “O inverno já não tem chuva bastante...”

Os homens de ciência começam justamente a prestar atenção a certas flutuações do clima que se apresentam como periódicas: variações do limite meridional dos glaciares e dos gelos flutuantes, mudança de nível dos lagos, diferença nos anéis de engrossamento anual das árvores, avan­ços e recuos na área da vinha ou da oliveira. A estes dados, que se podem ler no livro objetivo da natureza, convém acrescentar os informes, quantas vezes suspeitos, dos cronistas acerca de inundações, secas e fomes. Nada disto foi ainda catalogado sistematicamente nem interpretado com a pru­dência e a sutileza indispensáveis. Mas não reste dúvida de que o estudo do clima nos poderia ajudar a compreender a aparente simultaneidade das principais flutuações demográficas e econômicas de longa duração, através da Euro - ásia.

Ficaria por determinar se tais fenômenos de decadência física e moral afetaram tanto bárbaros como civilizados: problema quase insolúvel, uma vez que nos falta todo e qualquer testemunho escrito. Todavia, alguns indícios arqueológicos e geológicos, o fato de o clima e a doença não conhecerem fronteiras, e, sobretudo o comportamento dos Bárbaros depois que entraram no círculo das grandes civilizações sedentárias, tudo nos leva a crer que a sua condição não foi radicalmente diversa.

Não se tome turbulência por vigor, nem imaturidade por juventude. É fato que a sua organização, bastante frouxa e rudimentar, se acomo­dava melhor à diminuição dos homens e ao delíquio do pensamento. Mas o seu triunfo não constituiu o dote de uma força fresca, capaz de provocar uma reação salutar. Limitou-se, sim, a acelerar a decadência já decidida dos decrépitos povos dos impérios.

2. OS ESTADOS BÁRBAROS NO OCIDENTE

No Ocidente, a dissolução do Império no século V deu lugar à eclo­são de numerosos Estados bárbaros de grandeza medíocre, talhados ao acaso das conquistas e dos mútuos empurrões, mas freqüentemente decal­cados sobre unidades geográficas (tal como o Vale do Ródano para os Burgúndios), econômicas (as regiões ricas em trigo para os Vândalos), ou administrativas (a prefeitura da Itália para os Ostrogodos). Alguns desses estados, notoriamente o dos Francos, cobriam a fronteira desapa­recida. Outros, um tudo nada mais primitivos, organizaram-se no coração da Germânia, que a germanização do mundo mediterrâneo aproximava de certo modo deste. Da mesma maneira se esbatia a linha de demarcação entre os Celtas independentes da Irlanda e da Escócia e os seus primos romanizados, os Bretões, que as invasões a pouco e pouco comprimiam nos redutos da Grã-Bretanha ocidental e da Bretanha. Por seu lado, os Bascos mantinham a independência, embora, colocados num outro reduto, perdessem o verniz romano.

Difícil aproximação entre Bárbaros e Romanos

Amputação do Oriente, inclusão de uma parte do Norte, substituição da unidade pela pluralidade: eis os compassos iniciais da sinfonia euro­péia que havia de suceder à harmonia greco-romana. Mas faltava ainda muito para que os instrumentistas estivessem prontos. Por toda a parte, salvo na Grã-Bretanha, que os Anglo-Saxões arrancaram aos seus habi­tantes através de uma luta prolongada e sem quartel, de bom grado permi­tiram os Bárbaros aos seus súditos romanos que os desembaraçassem dos cuidados de uma administração cujas leis e engrenagens se revelavam dema­siado complexos para a sua mentalidade. Por toda a parte, menos em Itália onde os Ostrogodos se esforçaram um tanto por assimilar o direito e as instituições dos seus súditos, os Bárbaros transportaram consigo o seu mundo, mantendo os costumes nacionais e uma estrutura política pouco mais evoluída do que a de um bando armado. Fora neste estádio que Roma os admitira no território, ao tempo do seu poderio, esperando que apren­dessem as regras da vida civil e se incorporassem nas cidades. Mas agora as cidades-estados desmoronam-se e os aprendizes, tornados patrões, são incapazes de conceber uma organização que permita às duas sociedades justapostas harmonizar-se e fundir-se.

A harmonia não teria sido tão difícil de realizar com uma aproximação ao nível mais abaixo. Os Bárbaros, soldados por profissão ou por vocação, mas também campo­neses nos intervalos das migrações ter-se-iam podido entender com os simples aldeões do mundo mediterrâneo mais ràpidamente do que com os senhores ou com os intelec­tuais que os serviam por interesse ou resignação. As massas estavam preparadas para acolher bem quem quer que aliviasse a opressão fiscal e senhorial que os tornara indi­ferentes à ruína do Império. Mas os Bárbaros não tinham conquistado o poder para se confundirem com os humildes. Foi precisa a invasão bizantina e a defecção maciça do clero e da aristocracia italiana para que Tótila (541-552), o mais generoso dos reis germânicos, emancipasse em grande número escravos e colonos e os convidasse a unirem-se a ele - tarde demais, uma vez que ele próprio chegara ao último extremo. Contudo este caso mantém-se isolado. Em geral, a aproximação processou-se no escalão de cima, entre os antigos e novos senhores, reunidos pelo desejo de conservar tanto quanto possível a organização fiscal e senhorial romana cujos frutos compartilhavam. Mas este acordo só podia fazer·se plenamente quando o lento progresso da elite bárbara se encon­trasse com a rápida decadência da elite romana. E isso exigiu tempo.

Na primeira linha: Godos e Francos

Desde o princípio, à sinfonia européia faltou também um chefe de orquestra. Os Godos dos dois nomes (“Brilhantes” ou Ostrogodos e “Sabe­dores” ou Visigodos) eram os mais evoluídos dos Bárbaros, os únicos dota­dos duma concepção imperial, embora muito vaga. Destroçados pelo impe­rador Cláudio II em 269, reconstruíram com Ermanarico uma vasta confe­deração que os Hunos vieram a esmagar no século IV. No século V, o rei dos “Godos Sabedores”, Ataúlfo, acariciou por um instante a idéia de “trans­formar o Império Romano em Império Gótico” (se é que os seus pro­pósitos não foram mal compreendidos pelo limitado historiador que no-los refere). Finalmente, o rei dos “Godos Brilhantes”, Teodorico, senhor da Itália e das províncias circunvizinhas (493-526), esforçou-se por organi­zar sob os seus auspícios uma liga de reis bárbaros que se estenderia da Alemanha à África. Contudo estes reis não mostraram qualquer entusiasmo por essa primeira tentativa pacífica de concerto europeu, e os Godos, enfra­quecidos já pelas suas antigas lutas, não se firmavam com muita solidez nos seus domínios. Paradoxalmente, era a sua conversão ao cristianismo, anterior à de todos os outros Germanos, que mais os prejudicava, visto terem aceitado a nova religião numa época em que a doutrina ariana não havia perdido ainda as últimas batalhas no Império. Arianos e propagadores do arianismo junto dos seus vizinhos bárbaros, os Godos inspiravam aos seus súditos católicos mais aversão do que se fossem pagãos.

Antagonismo religioso, desconfiança entre Romanos e Germanos encurtaram os dias da “renascença” prematura que se esboçou em Itália com Teodorico. Não bastava que a aristocracia italiana se tivesse habituado à dominação estrangeira no tempo do seu predecessor, Odoacro (“homem de boa vontade”, no dizer de um cronista condescendente), nem que Teo­dorico tivesse sido legitimado por uma espécie de investidura concedida pelo imperador de Constantinopla e que se tivesse desembaraçado de Odoacro pela guerra e pela traição. Não bastou igualmente que Cassiodoro, ministro romano do rei ostrogodo, organizasse a administração e redi­gisse a correspondência oficial segundo todas as formas usuais no defunto Império, nem que ao povo se oferecessem novamente jogos de circo e que as vitórias do rei sobre outros Bárbaros trouxessem de novo à Itália alguns reflexos do antigo esplendor.

Não fora preciso que Teodorico se romanizasse inteiramente, sem com isso perder o ascendente sobre os Ostrogodos; coisa impossível, ainda que a desejasse. Mas que pretendia ele afinal? As pomposas cartas de Cassiodoro, a história compilada pelo godo Jordanes, a lenda romana que nos pinta um Teodorico diabólico, engolido por um vulcão em castigo dos seus pecados, a lenda germânica que dele faz um herói sem mácula, devol­vem-nos quatro imagens bem diferentes. Concordam apenas em sublinhar­-lhe a grandeza. O seu reinado assinala-se à posteridade pelos mosaicos bizan­tinos e pelo túmulo bárbaro de Ravenna, e pelas obras filosóficas de Boécio, o último dos Romanos antigos, o primeiro dos escritores medievais. Mas Boécio, depois de longamente servir Teodorico, foi acusado de ter cons­pirado com o imperador de Constantinopla, e executado. O reino sobrevi­veu alguns anos a Teodorico, mas a verdade é que os seus dias estavam contados.

Antes mesmo de se ter desmoronado o entendimento romano-gótico, já os votos da Igreja e a lei da selva se haviam encontrado para eleger um povo mais evoluído, mas mais novo do que os Godos: os Francos de Clóvis.

Aos embustes que lhe permitiram anexar aos seus os outros pequenos reinos francos, por onde se espalhava um povo relativamente obscuro, às vitórias externas que lhe entregaram a maior parte da Gália e fragmentos da Ger­mânia, ao faro que o levou a escolher Paris como capital, Clóvis (481-511) acrescentou a decisão que devia fazer dos Francos, pagãos havia pouco, os paladinos do catolicismo ameaçado pelos Arianos. Era armar-se de argu­mentos mais convincentes do que a devoção cristã, mas herética dos Godos e do que os seus esforços para se entenderem com os Romanos.

Será preciso acrescentar um fato de ordem material? Dado que as fontes não mencionam uma distribuição geral de terras como foi feita aos outros povos bárbaros, pretendeu-se deduzir daí (talvez erradamente) que os Francos não perturbaram de modo algum a aristocracia local no gozo dos seus bens. Seja como for - e não obstante o fato de os usos codificados na lei sálica serem muito mais impermeáveis ao direito romano do que as outras leis bárbaras da época - a colaboração da elite franca com a elite galo-romana foi particularmente íntima. Ajudou os filhos e os netos de Clóvis a alargar as conquistas do fundador do Estado.

Senhores da mais vasta e fértil região do Ocidente, os Francos eram de longe os mais poderosos entre os povos bárbaros - demasiadamente poderosos para não comprometerem toda e qualquer possibilidade de confederação de Estados como a que Teodorico havia esboçado, demasiado belicosos para deixarem em paz por muito tempo os seus fracos vizinhos. Iriam eles reconstituir em seu proveito a unidade de um Ocidente alar­gado pela acessão da Alemanha? Se os seus reis se compraziam na guerra, sobretudo como desporto e processo de enriquecimento, não faltavam, toda­via vozes a inspirarem-lhes ambições imperiais. Essas ambições, ostenta­vam-nas, desde antes da primeira metade do século VI, nas moedas de ouro com a efígie coroada de Teodeberto I (534-547), uma das quais atribui ao neto de Clóvis o título de Augusto.

ÚLTIMO REGRESSO DA ROMA LAICA, PRIMEIRO ÊXITO DA ROMA ECLESIÁSTICA

Se freqüentemente os reis bárbaros se emplumaram com títulos roma­nos, como as dignidades concedidas pelos imperadores do Oriente ou a bizarra justaposição do atributo "Flavius" a um nome teutônico, quer isso significar que Roma e só Roma lhes oferecia a idéia dum Estado que ultra­passava a conglomeração de tribos e transcendia a força material.
Nada mais os poderia reunir além desta uniformidade de costumes - interdições e apetites (hesitamos em dizer «ideais») - que toda a sociedade proto-histórica adquire a certo nível de vida, e o fundo comum de tradições, de artes e de técnicas que haviam assimilado na estepe asiá­tica quando da alvorada das suas migrações.

Porque falavam, quase todos, dialetos germânicos sensivelmente aparentados, compreendiam-se uns aos outros, embora a raça estivesse longe de ser una. Até os povos mais ciosos de antepassados haviam acolhido no seu seio os salvados de todos os grupos nômades ou seminômades da Euro-Ásia do Norte que, num momento ou noutro, ficaram colhidos nos seus redemoinhos: Báltico-Eslavos, Iranianos, Turcos, Mongóis. Alguns desses restos chegaram mesmo a conservar a sua identidade no momento da vaga final, como os Alanos (Iranianos) associados aos Vândalos, ou os Esciros e Turcilingos (Huno-Turcos?) de Odoacro, o obscuro protago­nista de 476. Casamentos e ritos de iniciação acabaram por dissolver essas minorias: elas, porém deixaram vestígios.

Modelo huno, modelo bizantino

A epopéia germânica e a poesia escandinava iam colocar em lugar de primeiro plano Atila, rei dos Hunos, embora marido duma germana (Íldico na história, Kriemhild na lenda)... Aliás, para bárbaros em movi­mento, a confederação de hordas controladas por um grande guerreiro, de que o Estado huno constituía o mais terrível, mas também o mais pode­roso dos exemplos que os Germanos conheceriam, era indubitavelmente o modelo de organização política mais fácil de copiar.

Num meio sedentário e cultivado, este modelo tornava-se inutilizá­vel. Por isso os Germanos ficaram fascinados pela idéia imperial romana, presente a todos os espíritos. Mas é claro que não podiam fazer do império sua propriedade absoluta enquanto um imperador dos Romanos reinasse em Constantinopla e se proclamasse igualmente soberano do Ocidente, com a aprovação unânime da Igreja católica. Longe de o discutir, a maior parte dos reis germânicos reconheceram de bom grado esse direito emi­nente, com a condição de lhes não serem exigidas nem tropas, nem dinheiro, nem obediência. Era-Ihes indiferente que as suas próprias moedas fossem cunhadas com o nome e a efígie dos imperadores e os seus documentos datados segundo os cônsules nomeados em Constantinopla. Isso vinha mesmo escorar o seu crédito internacional, até maior afirmação de prestígio.

O novo rosto do Império

Constantinopla não o entendeu, porém, do mesmo modo. O que ela fazia era preparar em silêncio o momento em que pudesse reivindicar toda a herança romana do Ocidente. E em 533 - meio século antes de os imperadores chineses do Sul expulsarem, por sua vez, os Bárbaros para lá da Grande Muralha - os exércitos do imperador Justiniano puseram-se em movimento. Em menos de um ano, Belisário conquistou o reino Vân­dalo, mas já foram precisos dezoito anos de encarniçadas lutas para dominar o reino ostrogodo. Narsés, o eunuco, conseguiu-o em 553, conquanto prosseguissem resistências isoladas até 563. E ainda as tropas “romanas” (cujo grosso, aliás, consistia em mercenários bárbaros) tomaram a Anda­luzia aos Visigodos e varreram para lá dos Alpes os Francos que, aprovei­tando-se da confusão, se tinham apossado da Itália do Norte. É certo que a Itália fora devastada de lés a lés, e que as praças fortes avançadas do reino vândalo em África foram submersas pelos Berberes; mas as cicatri­zes teriam desaparecido se uma paz duradoura tivesse sucedido à guerra prolongada.

Num quarto de século, a quase metade do antigo Ocidente será recu­perada e quase todo o Mediterrâneo voltará a ser um lago romano: “Nunca Deus permitiu aos Romanos tais conquistas, salvo no nosso reinado”, exclama Justiniano na sua primeira Novela.

Contudo, e se bem que uma outra das suas leis exprimisse “a espe­rança de que o Senhor nos concederá o restante deste império que os Roma­nos... perderam por indolência”, Justiniano não tentou consumar o projeto perseguindo até ao fim Francos e Visigodos. Extenuado pelo esforço, o Império tinha necessidade de quanto lhe restava em exército e em dinheiro para conter os Persas, que cobiçavam um corredor até ao mar Negro, e os Bárbaros (antigos e novos) que, na sua totalidade, ameaçavam os Bálcãs.

Conseguiu vencer tais dificuldades, mas não mais encontrou a tranqüilidade precisa para completar as conquistas de Justiniano.

Precárias conquistas tem-se dito: de fato, em 568 os Lombardos invadiram a Itália; entre 571 e 624 os Visigodos retomaram a Andaluzia; a partir de 670 os Árabes darão assalto à África do Norte. Seja. A verdade, porém é que já não era pouco ter readquirido a África por século e meio; quanto à Itália, o que não soçobrou nos primeiros desastres foi defen­dido palmo a palmo. Ravenna, só a abandonaram em 751, Siracusa em 876, Bari em 1071 e ninguém poderá dizer em que momento Veneza se desli­gou de Bizâncio. Sobretudo, pelo fato do seu regresso belicoso ao coração do Ocidente, o Império surgia aos olhos dos Bárbaros com um rosto total­mente diverso do que mostrara a sua aparente agonia no século V. Sobre­posta à Roma defunta, Constantinopla viva oferecia-lhes um modelo menos majestoso, mas mais atraente e melhor adaptado à época.

É claro que a sua influência foi mais incisiva sobre os Lombardos, rudes sucessores dos Ostrogodos num território reduzido e que os domínios bizantinos cortavam ou bordejavam a todo comprimento. Mas exerceu-se sobre os Visigodos e mesmo sobre os Anglo-Saxões que, de tempos a tempos, nele hauriram regras de cerimonial, princípios de administração e elemen­tos de cultura. Quanto aos Francos, viram a sua carreira imperial retardada de dois séculos pela contra-ofensiva do único império legítimo: será, pois de espantar que, geralmente, se mostrassem hostis, não obstante várias tentativas de aliança em que a boa fé faltava a ambas as partes?

O papa, soberano contra vontade

A velha Roma do Tibre, destronada pelos Bárbaros, desvalorizada pelos Bizantinos, abandonada pelos burgueses e pelos nobres, encontrou na sua miséria uma nova razão de grandeza. As bases da sua carreira medie­val vieram-lhe do passado antigo. A doutrina da supremacia do Bispo de Roma sobre os colegas tinha-se desenvolvido lentamente, no tempo em que a cidade era a capital dum imperador pagão; mais rápidos foram os seus progressos com os imperadores cristãos ali não residentes. Em 445, um dos últimos Augustos do Ocidente, Valentiniano III, ordena ao epis­copado das suas províncias que aceite como lei “tudo quanto for sancio­nado pela autoridade da Sé apostólica”. Todavia, esta autoridade choca ainda com tenazes resistências interiores e exteriores.

Por um lado, o clero africano e oriental, incitado pelos patriarcas "das grandes metrópoles como Constantinopla e Alexandria, teimava em favor da doutrina da igualdade básica de todos os bispos. Por outro lado, o imperador, chefe laico da Igreja, reservava-se o direito de con­vocar os concílios, vigiar-lhes as deliberações, fazer cumprir as decisões e, devido a isso, exercer um controle discreto, mas efetivo sobre toda a matéria de fé.

Estas pressões diminuíram desde que o Ocidente foi arrancado ao Império por Bárbaros indiferentes (porque arianos) ou deferentes (porque recém-católicos). O papa não tinha concorrentes sérios entre os bispos da Europa ocidental e encontrava-se desobrigado do poder político do imperador. Foi assim que em 494 Gelásio I, retomando com mais ousa­dia as teses enunciadas pelos seus predecessores e por Ambrósio de Milão, pôde escrever ao imperador residente em Constantinopla que “o império do mundo se reparte principalmente por dois poderes: a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real; o encargo dos sacerdotes é tanto mais pesado quanto no juízo divino deverão prestar contas pelos próprios reis”. Não era ainda a teoria, mas já o prelúdio da subordinação de César a Pedro: como chefe da Igreja, o papa afirmava o seu direito de julgar o imperador no tribunal da penitência.

Programa quimérico, visto que o clero era indócil, o rei, ariano, e lmperador, freqüentemente heterodoxo! O sucessor de Gelásio, acusado por uma parte do clero, teve de se remeter ao julgamento dum concílio de bispos italianos, convocado por Teodorico. A reconquista imperial da Itália permitiu a Justiniano extorquir à força a dois papas concessões às idéias teológicas do clero oriental.

O que libertou o papado e lhe permitiu estabelecer definitivamente a supremacia sobre todo o Ocidente foi a invasão lombarda. Sustida durante dois séculos às portas de Roma, fez do território romano zona de fronteira nominalmente bizantina, mas obrigada a contar com os seus próprios meios. Assim o bispo de Roma torna-se a pouco e pouco num soberano temporal, independente contra vontade.

Não é de admirar que o papa, absorvido pelos problemas imedia­tos deste equilíbrio precário, não tivesse compreendido logo as suas vantagens a longo prazo. Mas Gregório I procede já como me­diador entre Bizantinos e Lom­bardos, reúne as províncias destituídas de governo eficiente e organiza a primeira dessas grandes missões que, partidas de Roma, hão-de converter todo um povo bárbaro ao cristianismo e, do mesmo passo, à autoridade ro­mana: a missão do monge Agos­tinho - Santo Agostinho de Can­terbury - junto dos Anglo-Saxões. Os progressos da evangelização foram, evidentemente, lentos e sofreram numerosos recuos tem­porários antes de toda a Inglaterra estar cristianizada, pelo menos superficialmente, por fins do século VII. Enquanto se afadigavam com os pagãos, os missionários de obediência romana tinham de enfrentar a onda co-beligerante, e não necessàriamente aliada, dos missionários celtas, cuja organização e observância se tinham desenvolvido no isolamento e não se conformavam por completo com a norma romana. Mas aqueles triunfaram no Sínodo de Whitby (664), e a Inglaterra tornou-se a ovelha mais conformista do redil de Roma.

As Igrejas fundadas até então aceitavam, é fato, a preeminência papal, mas estavam organizadas no quadro dos diferentes Estados. Até mesmo no Estado ostrogodo, aliás, a jurisdição de Milão assumia atitudes de auto­nomia para com Roma. Mas as Igrejas instituídas por Gregório e seus sucessores - Igrejas anglo-saxônicas a partir de 597, lombarda e frísia no decurso do século VII, alemã no século seguinte - submetem-se já a uma disciplina mais “católica”, isto é, “universal” ou supranacional... Esse exemplo havia de incitar as Igrejas do Ocidente mais antigas a cerrar fileiras em volta do papa e a lançar as bases dessa união de católicos romanos que, à falta de unidade política, antecipará, sob o aspecto religioso, a formação da comunidade européia.

A POBREZA DO ESPÍRITO

Os progressos incessantes da organização da Igreja católica romana, na época em que os reinos e o Império estavam por assim dizer atolados, não se explicam com certeza pela sua força material, quase insignificante, nem mesmo pelas riquezas temporais, consideráveis já, se bem que infe­riores àquelas que haveria de acumular mais tarde.

Como sempre, os seus verdadeiros tesouros estavam no céu. Mais do que nunca a sua intimidade com a Cidade de Deus impunha-a aos grandes e tocava os vencidos, os insatisfeitos, os desesperados da Cidade dos homens.

Em nada amesquinhamos a glória dos que escolheram Deus se observarmos, todavia que, em dadas circunstâncias, pode ser mais difícil perma­necer no século do que dele desertar.

A vida eclesiástica podia responder a todas as vocações. Alguns mer­gulhavam nas querelas teológicas, tanto mais animadas quanto iam cons­tituir daí em diante a principal manifestação do que subsistia em matéria de atividade intelectual. Outros votavam-se aos labores quotidianos da administração, aumentados pelo desfalecimento do Estado ou pela con­fiança dos governos que transferiam para o clero algumas responsabili­dades do abastecimento, da justiça e até mesmo da defesa, asseguradas até então pela administração laica. Consagravam-se outros ainda à conversão dos heréticos e dos pagãos, sabendo, além disso, que freqüentemente se tornaria necessário ensinar aos convertidos os rudimentos da vida civil. Por último, e eram estes os mais numerosos talvez, havia os que entreviam na paz do claustro o único meio de resolver individualmente os pro­blemas que, numa sociedade corrompida e ensangüentada, lhes pareciam sem saída.

Os mosteiros: um êxito

Os mosteiros constituíram o maior êxito da Alta Idade Média. Que exemplo o de um Cassiodoro, ministro romano de quatro reis ostrogodos, escritor adestrado em todas as sutilezas da retórica e da erudição, que, uma vez dissipados os seus sonhos terrestres, acaba os dias ditando as regras da instituição monástica que ele próprio fundara!

No entanto, não é ele, mas sim um homem mais modesto, Bento de Núrcia, quem transmite às gerações futuras a fórmula em que a longa expe­riência do monaquismo oriental, destilada, se adapta às aspirações do Oci­dente. É verdade que, recentemente, se pôs em questão a originalidade da regra que leva o seu nome: ela derivaria em grande parte de um modelo anterior. Como quer que seja, foi o seu texto que se afirmou e assegurou nos conventos beneditinos o triunfo do bom senso, do equilíbrio entre os rigores do ascetismo e os imperativos da saúde mental e física. “Escuta meu filho, os preceitos do mestre... Quem quer que tu sejas, renuncia ao teu querer para cingires as armas poderosas e esplêndidas da obediência e militares sob as ordens do verdadeiro rei, Cristo Senhor.”

Em breve o apelo ressoou do Monte Cassino a Roma, à Inglaterra, à Espanha, à Gália, à Alemanha. E, a pouco e pouco, suplantou as regras que outros venerados homens, como Cesário de Arles e Columbano de Irlanda, haviam difundido. Voltadas ao trabalho manual ou intelectual, do mesmo modo que à oração, as comunidades monásticas constituíram durante longo tempo os únicos herdeiros do espírito de ordem e de orga­nização latino, as únicas aglomerações capazes de aumentarem e de se multiplicarem no seio da dispersão e da desorientação geral.

Estas comunidades reassumiram em parte as funções de focos culturais e de centros econômicos que os núcleos urbanos deixavam escapar. Nas regiões que ainda não possuíam cidades, como a Irlanda, desempenharam esse papel na medida das suas possibilidades. Não obstante isso foi na Irlanda que o individualismo sem compromisso, o desejo de se subtrair comple­tamente à convivência dos homens para se entregar ao diálogo frente a frente com Deus, se mantiveram durante mais tempo. Em 891, a Crônica Anglo-Saxônica relata-nos a história de três monges “que se evadiram da Irlanda num barco sem remos porque aspiravam a viver como peregrinos pelo amor de Deus”. Com mais utilidade para a salvação de seus irmãos, outros monges, em busca de isolamento, aventuraram-se junto dos pagãos para lhes conquistar a alma. Outros ainda encerravam-se nas celas a fim de estudar e transcrever os textos clássicos que a sociedade caída na bar­bárie deixara de compreender.

A Igreja: uma potência

Já não é preciso fazer o elogio da Igreja da Alta Idade Média: os escri­tores da época, quase todos eclesiásticos, dele se encarregaram. Sem o pro­pósito de os criticar, notemos, contudo que esses altos feitos constituíram o rédito dum enorme investimento. E, muito embora não exista nenhum recenseamento digno de fé, não há, sem dúvida, exagero na avaliação de que pelo menos uma pessoa em cada vinte pertencia ao clero e que a pro­porção era ainda mais forte entre os homens de talento e de boa vontade. Tais homens não tinham o direito de prestar à Terra um cuidado que não fosse subordinado aos seus deveres para com o Céu. Era-lhes inter­dito combater e ter filhos. Deviam consagrar ao serviço divino uma parte considerável dos recursos que acumulavam pelo próprio trabalho e pelo dos fiéis. Numa época em que o rendimento do trabalho e o excedente dos nascimentos sobre os óbitos dificilmente ultrapassavam o mínimo indis­pensável à sobrevivência da sociedade, a Igreja recebia, pois do mundo laico muito mais do que o supérfluo. A despeito das aparências, os Esta­dos bárbaros eram demasiado fracos para se medirem com ela. A sua hos­tilidade acabou por quebrar o reino lombardo, os seus amplexos por atrofiar o reino visigodo, a sua prosperidade por enfraquecer os reinos anglo-saxões. E foi necessário todo o prestígio dos Carolíngios para resta­belecer um certo equilíbrio em benefício dos Francos.

No seu conjunto, e não obstante as inevitáveis irregularidades numa comunidade tão numerosa, a Igreja da Alta Idade Média era mais culta e benéfica do que a média dos fiéis. Embora não estivesse de todo isenta do abatimento geral.

Não esqueçamos que, desde o seu começo, o cristianismo se depa­rava aos melhores representantes da civilização clássica como “uma supers­tição insensata e excessiva” na medida em que apelava para a sensibilidade e para a fé mais do que para o senso comum e para a razão. Contudo, antes do eclipse da cultura greco-latina, uma plêiade houve de pensadores origi­nais que consorciou a nova religião e a filosofia. Os grandes heterodoxos do princípio do século III racionalizaram, através duma interpretação ale­górica, os mistérios das Escrituras (Orígenes) ou celebraram com ousadia até mesmo os seus aparentes absurdos (Tertuliano). Os concílios do século IV e da primeira metade do V definiram a profissão de fé, não sem dilacera­ções, contudo, dado que o triunfo da cristologia grata aos Ocidentais provocou no Oriente revolta atrás de revolta: alünos, nestorianos, mono­fisitas.

O pensamento cristão atingiu a sua cumeada com os padres que assis­tiram à agonia da Roma Imperial: Ambrósio, Jerônimo, Agostinho de Hipone. Depois, e subitamente, houve um retrocesso. As disputas teoló­gicas que antes haviam conduzido à sutil definição dum problema tão capital, como era a inserção de Cristo na Trindade e sua encarnação “consubstancial ao Pai segundo a divindade e a nós segundo a humani­dade (...) em duas naturezas sem mistura, sem transformação, sem divisão e sem separação” (Concilio de Calcedónia, 451), girarão daqui em diante, no Ocidente, à volta de questões tão modestas como a forma da tonsura e a data da festa da Páscoa. Entre os três doutores anteriores a 476 e o quarto, Gregório Magno, que a tradição coloca no mesmo plano, existe um abismo. Este último condena o estudo da literatura clássica, interpreta as Escrituras como um ramo de moralidades que é preciso descobrir sob o véu da alegoria e demonstra a doutrina através duma florescência de milagres em que Deus e o Diabo, igualmente humanizados, se afrontam. O ciclo fechou-se; razão e senso comum parecem ceder o passo à sensibilidade e a fé.

Mas teremos o direito de nos escandalizar? Homem de Estado, admi­nistrador, propagandista, Gregório I dirige-se às massas, deixando aos seus predecessores mais eruditos o cuidado de satisfazer os raros espíritos que os compreendem. Recomenda aos missionários que prestem atenção aos ritos e aos sentimentos dos pagãos, de modo a conduzi-las gradualmente à verdade; é o primeiro a chamar aos Lombardos «inomináveis» e o pri­meiro a estender-lhes os braços; resigna-se a que um imperador de talento lhe chame néscio e adula o seu ignóbil sucessor. E sempre e sem esforço, coloca-se ao nível das suas ovelhas mais ingênuas porque, a par de ser o herdeiro da Antiguidade como governador de Estado, é um homem do seu tempo no que respeita ao ensino da palavra de Deus. Tal a razão do seu imenso sucesso.

IMATURIDADE GERMÂNICA

Os círculos dirigentes laicos dos tempos bárbaros, entre os séculos VI e IX, eram, tanto quanto os círculos religiosos, ingênuos e dominados pelas emoções. Mas o que pode ser considerado, sob certos aspectos, como uma virtude para os homens da Igreja, raramente o é para os homens de Estado. O cognome de "pio" ou "clemente", atribuído pelas crônicas da Idade Média a alguns soberanos, designa geralmente um néscio ou um fraco. A natu­reza essencialmente militar da autoridade exigia que os chefes se inspiras­sem, não no cordeiro, mas no lobo ou na raposa.

O soberano

Com efeito, o ideal clássico do imperador magistrado, exercendo o imperium exclusivamente por delegação do povo e para satisfazer aspirações, expressas ou tácitas, da comunidade, era dema­siado abstrato para uma época grosseiramente realista e destituída de massas populares atuantes. A idéia do soberano detentor do mandato divino, familiar entre os povos orientais e já enxertada na tradição da Cidade-Estado pelos últimos imperadores romanos, mostrava-se mais acessível aos Germanos. As suas lendas ligavam por vezes as famílias reais aos deuses ou aos feiticeiros, a Igreja Católica pregava a estes bárbaros a missão sagrada da monarquia, Bizâncio sugeria-lhes o exemplo dum imperador coroado pelo patriarca (desde 457) e que se proclamava “igual aos Apóstolos”. Mas a coloração religiosa permanecia superficial. No fundo, o rei mantinha-se o que havia sido na época das migrações: o general do exército, o juiz das partilhas e da fruição das conquistas. Isto torna-lhe mais difícil preservar o poder se cessou a sua ação conquistadora e aumentar as suas rique­zas a fim de as redistribuir entre os que o seguem.

Em princípio, o rei detinha a autoridade por delegação, da mesma maneira que o magistrado e o vigário celeste. Tal como o magistrado corrupto e o vigário ímpio, o general incapaz perdia a coroa. Um intervalo de paz permitia, por vezes, às tribos confederadas que retomassem a sua autonomia: os Lombardos passaram sem rei durante dez anos; os Anglo-Saxões, se de onde em onde reconheceram um rei federal (Bretwalda), a maior parte do tempo contentaram-se com “reinos” tão pequenos como um ducado lombardo ou um condado franco, dado que os seus inimigos, os Celtas, estavam ainda mais parcelados. Por outro lado, o extraor­dinário êxito militar dos primeiros Merovíngios permitiu a Clóvis fundar uma dinastia, e aos seus sucessores repartir o reino como se se tratasse duma herança privada. A partir do século VII, as disputas e a incapacidade dos reis permitiram à aristocracia franca cercear o patrimônio real, fazendo­-se comprar por distribuições de terras em plena propriedade. Mas mais de um século decorreu até que prefeitos do palácio, aristocratas e inten­dentes da Coroa se atrevessem a ocupar o trono à sombra do qual tinham feito fortuna.

Em contrapartida, a aristocracia visigoda e lombarda resistiu com êxito aos esforços de vários reis enérgicos no sentido de estabelecerem dinastias próprias. Foi em vão que alguns deles tentaram consolidar o poder com arremedos do cerimonial bizantino: só à força havia respeito e ela embotava-se à menor sutileza. Nenhum dos reis relativamente civilizados da baixa época lombarda igualou o prestigio do primeiro conquistador, Alboino. Este, depois de ter esmagado os Gépidas na região danubiana, assassinado o rei e desposado a sua filha, viu-se forçado a abandonar aos Avaros o seu reino transalpino para conseguir um maior na Itália (568­-572). Teria talvez chegado a ser um outro Clóvis se não tivesse cometido o erro de, num momento de embriaguez, oferecer à mulher de beber pelo crânio do pai transformado em taça. Ela não apreciou a brincadeira e man­dou-o assassinar. Tal é a história que nos é contada, duzentos anos mais tarde, por Paulo Diácono, historiador piedoso, mas patriota: sem uma pala­vra de censura a respeito de Alboino, infamou a «leviana» que imolara o herói a rancores pessoais.

Fraqueza das instituições

Das capacidades do rei dependia a solidez do reino, porque as institui­ções estavam apodrecidas ou eram rudimentares. Não bastava ter conser­vado as peças do maquinismo e o pessoal romano; fora preciso reformá­-los para travar a sua dissolução. Bizâncio oferecia o exemplo de reforma moderada, mas as influências bizantinas mostraram-se demasiado tardias e demasiado superficiais para se implantarem vigorosamente, salvo em alguns sectores da administração lombarda (casas da moeda, policia e alfândegas) e, num grau menor, em outras administrações bárbaras.

Quanto às instituições germânicas, adaptadas a pequenos grupos em constante deambulação e ao combate, enfraqueceram com as tarefas mais pesadas que lhes impunha a fixação num território extenso. A assembléia popular foi-se reunindo cada vez mais raramente e perdeu a autoridade política, salvo em Espanha onde se achou reforçada pela estranha fusão com os concílios da Igreja. Os bandos de “companheiros” e de “fiéis” que rodeavam os chefes nas batalhas e nos banquetes mostraram mais perseve­rança à mesa do que no campo da honra. As organizações de tribo, de aldeia e de família perderam coesão, e os seus vínculos com o governo central debilitaram-se.

No entanto, as instituições germânicas sobreviveram melhor do que as romanas, porque melhor adaptadas à contração do Estado. A pouco e pouco este renunciou ao imposto direto, com grande alívio da popula­ção. Reconstruiu-se sobre o rendimento dum patrimônio público, cada vez mais estreito, e criou inúmeras peagens nas estradas quase desertadas pelo tráfego ou arruinadas por falta de conservação. Em contrapartida, o Estado deixava de prestar serviços, mesmo aqueles que poderiam ser rendáveis. A guerra, só a fazia com intermitência, e só muito irregularmente pres­tava uma justiça assente em multas.

Haveria, é claro, que matizar este quadro. Os reis lombardos soube­ram aumentar as terras da Coroa e os régulos ingleses estabelecer cadastros vigorosos. Em contrapartida, na França - e só ai - houve bispos que per­suadiam os reis a queimar os registros do fisco para salvarem a alma. Impos­tos sem a compensação de serviços pareciam-lhes puras extorsões. Mas a desordem e a regressão, se bem que não fossem uniformes, não deixaram de ser menos gerais.

Ruína da cultura

A cultura não escapou a esta decadência. À fonte artística da Ásia Central, tinham os Germanos ido buscar alguns motivos: entrelaçados geo­métricos, animais estilizados, predileção pelos vidrilhos, pelos esmaltes compartimentados e as pedras preciosas coloridas. Esta expressão de um espírito pouco inclinado a observar o real e o humano chegou a marcar as artes dos povos orientais muito civilizados (Chineses, Persas, Bizantinos) e conjugou-se facilmente com a arte dos Celtas, igualmente bárbara e ainda mais próxima do zoomorfismo. Se bem que pudesse atingir a beleza, nomea­damente na ourivesaria, faltavam-lhe, contudo as possibilidades infinitas de renovação, de aprofundamento e de requinte que oferecem os estilos mais intelectualizados.

As raras obras-primas germânicas são quase todas dos primeiros séculos ou devidas aos povos mais primitivos; o resto não passa de repeti­ção dum pequeno número de fórmulas, que uma ornamentação excessiva ou uma simplificação exagerada desfiguraram finalmente. Passemos em silêncio as raras tentativas de representar a figura humana. Houve acaso uma arquitetura germânica em madeira, digna desse nome? Nada chegou até nós e aquilo que conhecemos de séculos mais recentes não leva de modo algum a supor que ela se tenha desenvolvido paralelamente à arquitetura de pedra ou de tijolos que continuou sendo a especialidade dos vencidos.

É igualmente difícil pronunciarmo­-nos sobre as lendas épicas cujo eco nos foi transmitido pela tradição oral. Nos poemas da idade feudal que mais tarde as utilizaram, só a estrutura tem antiguidade garantida, e ela compõe-se em regra duma série bastante curta de façanhas atribuídas a um grande número de guerreiros de copadas genealogias. Só os Anglo-Saxões escreveram as suas lendas desde a época bárbara, misturando com as narrativas so­bre os seus próprios tempos, as recorda­ções da sua pré-história no continente europeu. Em tão vasta literatura há uma obra de valor: Beowulf. O verso não deleita o ouvido acostumado às harmonias clássicas; as aliterações formam um dese­nho que lembra os entrelaçados dos ilu­minadores, mas a luta do herói contra as vagas, os monstros marinhos e a cobardia dos homens reveste-se de sombria gran­deza. Esta é interrompida no final do poema por uma nota de bondade desen­corajada onde os críticos viram a mão de um homem da Igreja guiando a do bardo, como na Chanson de Roland. Ao lado desta poesia, os exercícios em latim de alguns reis e dignitários bárbaros fazem uma triste figura.

Pobreza de direito

De gustibus non est disputandum. É plenamente legítimo que alguns este­tas contemporâneos se extasiem perante a arte dos Bárbaros, com a con­dição de não lhe concederem profundidade de pensamento ou de inspira­ção, que lhe foi estranha. O mito do “bom selvagem” mostra-se difícil de morrer! Todavia, já não se confunde, como outrora, a anarquia ou a impotência do Estado bárbaro com o espírito de liberdade. Sucederá o mesmo quanto às suas formas jurídicas?

Nos numerosos textos que chegaram até nós, quase não se encon­tram esforço de síntese, definições teóricas, separação nítida entre direito dos particulares e direito da comunidade ou do Estado. O direito de obri­gações por assim dizer não existe: troca-se objeto por objeto, ou então, se o escambo não se pode fazer in loco, o devedor entrega ao credor um penhor, real ou simbólico. Os processos não se julgam em função dos fatos ou das provas sobre as quais o julgamento há-de ser proferido, mas segundo a cre­dibilidade geral do acusado, que se defende graças ao juramento e ao de seus íntimos, quando não apela para o juízo de Deus através do duelo ou dos ordálios. A pena raramente castiga a pessoa do culpado como viola­dor da segurança pública; consiste normalmente em multas, fixadas segundo uma tabela - tanto por um braço cortado, tanto por um dente partido ­e que devem ser pagas ao ofendido ou ao Estado, em geral sem atender às circunstâncias ou à vontade daquele que ofendeu.

É claro que se notam diferenças de código para código, sobretudo por influência do direito romano e da religião, fatores de ordem, de pie­dade e de clarividência. Mas uma tal influência nunca foi constante nem progressiva. Já no século V Godos e Burgúndios acolhiam o direito romano do tempo no seu direito nacional. Os Bárbaros dos dois séculos seguintes nada aproveitaram do monumento jurídico de Justiniano. Foi com dificuldade que a Igreja lhes ensinou alguns princípios do seu próprio direito e, a partir dele, do direito romano. Em última análise, a imaturidade dos Germanos mostrou-se menos nociva quando do choque inicial do que du­rante a longa inação que se seguiu. Os frutos estragaram-se antes de terem amadurecido.

DECREPITUDE ROMANA

“A Grécia conquistada conquistou o seu orgulhoso vencedor”: tantas vezes verificado, o adágio não se aplica muito bem aos primeiros séculos da Idade Média. É verdade que os Bárbaros adaptaram a religião dos Roma­nos vencidos, exatamente como os Romanos tinham adaptado a da Pales­tina submetida. Serviram-se em regra do latim como língua escrita. Apro­priaram-se de não poucas instituições e idéias greco-romanas, não sem trans­mitirem por sua vez algumas das suas às populações dominadas; e se não substituíram a manteiga pelo azeite, não tardaram a apreciar os méritos do vinho. Não obstante, a romanização da cultura germânica atrasou-se até a assimilação física das minorias conquistadoras pela massa romana, gera­dora do primeiro renascimento neolatino. Foram precisos aos Francos pelo menos quatrocentos anos para se tornarem franceses; mais tarde cem anos haviam de bastar aos Normandos, cuja origem não era menos germânica. Isto levar-nos-ia a pensar que a Alta Idade Média se estiolou numa dupla inércia: se os alunos eram refratários, aos professores faltava zelo.

Um historiador da economia e da sociedade hesita em dar opinião sobre problemas que historiadores da arte, da literatura e das idéias domi­nam com a sua erudição e as suas preferências - estas últimas, natural­mente, influenciadas pelas flutuações do gosto contemporâneo. Não será melhor consultá-los a eles? Dir-nos-ão, sem dúvida, que as idéias da época bárbara, mesmo entre os “Romanos”, foram desprovidas de originalidade; que a literatura latina, depois de ter produzido até meados do século VI certas obras de mérito, algumas mesmo notáveis, se afundou por muito tempo; que a arte, em contrapartida, conseguiu vencer uma grande crise para atingir novas alturas, muito afastadas dos cumes da arte clássica, mas de singular beleza, pelo menos nas regiões acessíveis às influências bizantinas. Nomes de autores que hoje só eruditos lêem, mas que durante muito tempo foram célebres - Orósio, Boécio, Fortunato - ocorrem-nos à memória. Mais familiares, as imagens dos mosaicos de Ravenna e de Roma, dos frescos de Castelseprio, da ourivesaria, das miniaturas e dos esmaltes, reunidas em centenas de coleções, enchem-nos de encanto as recordações. Sem nos determos nos pormenores, assinalemos alguns dados essenciais que os monumentos artísticos e as obras literárias ofere­cem para interpretar a sociedade que os produziu.

Arte rígida, arte anônima

O que nos impressiona em primeiro lugar é a dissolução gradual da personalidade. A figura humana não se elimina como na arte bárbara, mas a atenção desvia-se cada vez mais dela para se consagrar ao vestuário e às insígnias do poder e do oficio. O retrato individualizado e realista con­verte-se numa efígie estereotipada, de olhos esbugalhados para o vazio, de traços simplificados, de gestos contidos, sempre vista de frente. O mesmo sucede nas letras, onde a biografia não é abandonada, mas se confina, sobre­tudo às vidas estereotipadas de santos, verdadeiras máquinas de fazer mila­gres, desprovidos das dúvidas, das imperfeições e das tonalidades que caracterizam qualquer criatura de carne e osso. No século V já, a história não procurava outra explicação para os reveses do Império Romano para além da cólera dos deuses abandonados ou do descontentamento do Deus novo. Com Gregório de Tours, converte-se numa amálgama de anedotas comuns, de pecados e de intervenções divinas anunciadas por aparições de meteoros, tudo justaposto com a mesma despreocupação de perspectiva que vemos nos monumentos figurados do tempo.

A história desce mais baixo ainda na coleção de crônicas conhecida pelo nome errôneo de “Fredegário”; os seus próprios compiladores, aliás, deram-se conta desta mediocridade. Quando um deles se queixa de que “o mundo envelhece, o gume da sabedoria embota-se, ninguém é igual aos oradores do passado nem ousa pretender sê-lo”, só lhe podemos é dar razão. Regressão da cultura e da técnica? Sem dúvida alguma: já no século IV, quando Constantino “o Grande” quis decorar o seu arco de triunfo com a delicadeza da arte que lhe parecia ser a época da perfeição, mandou arran­car medalhões ao arco de Adriano. Quanto ao resto, teve de se contentar com uma decoração mais rude, que, aliás, nos agrada da mesma forma. Mais irremediável ainda do que a crise técnica (que podia resolver-se com uma mudança de fórmula) é a crise do homem: o abaixamento da força e da dignidade individuais.

Como é que a personalidade humana teria podido inspirar aos artistas da Alta Idade Média o interesse ou a confiança de que gozava nas antigas cidades romanas? Os cida­dãos tinham-se visto privados de iniciativa própria pelo poder imperial; depois, quando este se desmoronou, caíram na insegurança. Os Bárbaros calcaram-nos aos pés, enquanto por seu lado o cristianismo os exortava à humildade e lhes lembrava a iminência do Juízo Final. Roídos pela miséria, dizimavam-nos as epidemias. Para sobreviver, a arte tornou-se anônima e coletiva.

O seu triunfo mais esplendoroso encontra-se no canto litúrgico. Tal como o cris­tianismo, fora importado do Oriente para o Ocidente muito antes de findo o Império. Mas foi somente na obscuridade da era bárbara que tomaram em definitivo forma as salmodias severas e solenes, os diálogos entre o narrador e o coro, o canto alternado dos grupos corais que se respondem na antífona, os hinos em que as inflexões e o ritmo populares substituem a prosódia quantitativa da Antiguidade. Passando em silêncio os nomes dos compositores, a tradição exalta dois organizadores: Ambrósio, amigo e anta­gonista de Teodósio “o Grande”, no canto que ressoa ainda nas igrejas da diocese de Milão, e Gregório I, Magno, no canto que domina todo o resto do mundo católico. É provável que os respectivos méritos estejam engrandecidos pela ignorância de inú­meros colaboradores e continuadores; porém, quanto ao fundo, a tradição parece incon­testável.

Arte envolta em símbolos

Não é possível exagerar o poder sugestivo da linguagem, ao, mesmo tempo abstrata e direta, da música sobre os corações simples: Ario, no dizer dos inimigos, arrastou para a heresia almas ingênua ensinan­do-lhes melodias tiradas dos cantos de soldados e de marinheiros. Mas a música representou bem o domínio único da abstração. No geral, a era bárbara viu as idéias abstratas concretizarem-se em símbolos materiais e as explicações teóricas enrouparam-se nos véus da alegoria.

Por certo que não há aqui novidade. Se a arte clássica glorificava os seus ideais sob os traços humanos dos deuses, a arte orientalizante do Baixo Império envolvia-os já num simbolismo animal, vegetal ou inanimado, cada vez mais vicejante e emaranhado. A alegoria ocupara sempre um lugar importante no arsenal da literatura, tanto greco-romana como hebraica; mas a era bárbara distingue-se pela exaltação da alegoria e pela preponde­rância do símbolo. Não basta que o culto hebreu, sem imagens, ceda lugar ao antropomorfismo tradicional; é preciso ainda que o Filho do Homem seja representado como pavão, peixe, cordeiro ou monograma. Não basta que a alegoria escore e complete o raciocínio; sufoca-o também.

Podemos ainda sorrir quando um Africano do V século, Marciano Capella, ima­gina um Casamento da Filologia e de Mercúrio, a guisa de título e prelúdio dum tratado sobre as sete disciplinas que formarão a base do ensino medieval. Mas já nos alarmamos quando um francês do século VII, que pretende chamar-se Vergílio Maron, decompõe o latim numa série de línguas herméticas e aconselha a escrevê-lo em forma de enigmas figurados, para afastar os profanos. De igual modo, na Filosofia personificada que consola Boécio na prisão, nos princípios do século VI, ainda ecoa algo do pensamento antigo; mas já cem anos mais tarde, Isidoro de Sevilha irá buscar sobretudo os seus erros aos autores antigos que guarnecem as quinze secções da sua biblioteca. A sua enciclopédia, cuja fama duradoura contribuiu poderosamente para baixar o nível intelectual da Idade Média, esforça-se por explicar “tudo o que é preciso conhecer”, a partir da etimologia: declara que formiga (formica) vem de “levar migalhas” (feret micas), e que noite (nox) vem de “tornar nocivo” (a nocendo), porque faz mal aos olhos...

Contudo, note-se uma diferença importante entre estes dois escritores do século VII, Isidoro e Vergílio. O último agarra-se ao latim como a um título de nobreza. Era um desses romanos cultos que afetavam o mesmo desprezo, fosse pelos bárbaros mal-cheirosos e vestidos de peles, fosse pelos rústicos atolados na ignorância, na superstição e no servilismo. Abrigados atrás das defesas duma retórica caduca, de temas frustes e de linguagem arcaica - linguagem que se tornava cada vez mais incompreensível, não só para os ocupantes, mas também para a maioria dos vencidos - estes romanos eram destroços condenados a desaparecer. Dentro do mesmo espírito, no século VI o historiador da Reconquista bizantina, Procópio, insistia em chamar Italianos apenas aos grandes proprietários e em ignorar os autóctones mais pobres e os seus patrões ostrogodos. Isto ajuda-nos a compreender os motivos por que não persistiram na Itália as vitórias de Justiniano.

Não sejamos, todavia excessivamente severos para com estes teimosos defensores do passado: apesar de tudo, o latim era a única língua que o escol de todo o Ocidente ainda compreendia. Mesmo um Gregório I, que se gabava de ter “desprezado a arte do discurso inculcada pelas regras do ensino mundano”, via-se forçado a empregar o latim para se fazer enten­der pelos quadros eclesiásticos. Recomendava, é certo, que a religião falasse aos iletrados na língua das imagens – o que prova não ter muita confiança na instrução latina que, por ordem dos concilias, os padres deviam minis­trar às crianças das paróquias.

Isidoro e o princípio da nova Espanha

Isidoro (aprox. 560-637) escrevia também em latim, língua dos seus antepassados, mas nem por isso deixou de celebrar a rendição das derra­deiras fortalezas bizantinas ao seu rei: “Finalmente, a raça valente dos Godos... arrancou-te, Espanha, aos Romanos... hoje o soldado romano é servidor dos Godos”. Melhor poderia dizer que era já Espanhol? A eru­dição que ostenta nem sempre é mais segura do que a de Vergílio, o gra­mática, embora seja menos caduca; muitas vezes, pertence ao domínio eterno do folclore- o mundo de Esopo e do Romance da Raposa. O processus de involução aproximava-se do fim; no fundo do abismo, a decadência romana iria em breve juntar-se à imaturidade germânica. A medida que as idéias se embrumavam na alegoria, que a arte se imobilizava no sím­bolo, que a língua se maculava de vulgarismo e que a clareza do direito romano se perdia nos usos do direito popular, mais compatível com os costumes bárbaros, aproximava-se o dia em que vencedores e vencidos, poderosos e pobres, mutuamente se haviam de compreender.

Uns cinqüenta anos depois da morte de Isidoro, era a Espanha que parecia preceder os outros Estados bárbaros no caminho dessa metamor­fose. As suas leis abastardadas aplicavam-se tanto aos Visigodos como aos Romanos. A sua assembléia de nobres e de prelados funcionava como um parlamento embrionário. Certas instituições feudais parece terem aí encontrado o berço. Um dos seus reis, Vamba, julgou mesmo possível estabelecer o recenseamento militar universal - pedra de toque da uni­ficação nacional - e submeter-lhe até os eclesiásticos e parte dos escravos. E certo que fracassou.

A Espanha achava-se dilacerada, tanto pelo desacordo profundo entre o rei e os grandes senhores, como pelo seu acordo específico em dois pon­tos: perseguir os Judeus (isto é, o núcleo da burguesia) e opor-se à liber­tação das classes servis. Quando os Árabes a invadiram, em 711, bastou uma batalha para que o reino se desmoronasse. Outros reinos tomaram então a dianteira, mas a Europa nova não tinha possibilidade de se edi­ficar enquanto os próprios fundamentos da sociedade não fossem reno­vados e consolidados.

AS INCÓGNITAS

É sempre difícil ao historiador compreender o que se passa por baixo das camadas superiores da população e fora dos centros urbanos; porque os camponeses são uma gente lenta e silenciosa, e o seu sulco, tão profundo quão obscuro, só à escala de séculos é que modifica sensivelmente a paisagem. Os raros escritores da era bárbara não se debruçam sobre a vida quotidiana. E a custo que às vezes nos informam das bruscas calami­dades que vêm transformar em desespero a miséria apática das multidões anônimas.

Vejam-se três exemplos tomados ao acaso: “Quando Chilperico encontrou a morte... os de Orléans e os de Blese, reunidos, caíram sobre as gentes de Châteaudun e massa­craram-nas de improviso; incendiaram as casas, as provisões e tudo o que lhes era difí­cil transportar; apoderaram-se dos rebanhos e pilharam tudo o que puderam levar. Mas durante a retirada, os habitantes de Châteaudun e de Chartres... fizeram-lhes, sofrer o mesmo tratamento que tinham recebido” (Gregório de Tours). “A Córsega está tão oprimida pela tirania dos exactores e pelo peso das exacções que os habitantes só a custo lhes podem prover, vendendo os seus próprios filhos. É por isso que são obrigados a deixar a república [o território bizantino] e a fugir para junto dos inomináveis Lombar­dos. Que teriam eles a recear demais grave ou demais cruel por parte dos Bárbaros?” (Gregório I). Depois de três anos de seca, “uma terrível fome espalhou-se pelo povo e destruiu-o... Diz-se que era freqüente grupos de quarenta e cinqüenta pessoas, esgo­tadas pela fome, encaminharem-se para o abismo ou para o mar, e aí se precipitarem todas ao mesmo tempo, de mãos dadas” (Beda).

Nível de vida miserável

É claro que não devemos imaginar as condições normais da vida a partir destas catástrofes. Aliás, as desordens locais reduziam as possibi­lidades de guerras generalizadas. A enormidade do sacrifício exigido pelos impostos resultava numa fuga regular perante os encargos mais pesados. A mortalidade suscitada por uma fome eliminava os excedentes de popu­lação e tornava menos vulneráveis os sobreviventes. Mas se é verdade que cada mal traz consigo o seu próprio remédio, esse remédio, durante a era bárbara, traduz-se sempre por uma amputação.

Documentos legislativos, arqueológicos ou lingüísticos, tudo enfim que nos ajuda a descobrir qualquer coisa na neblina dessa época nos leva a concluir que as grandes personagens temporais e espirituais só vestígios conservam do antigo luxo e que a massa foi obrigada pouco a pouco a renunciar a todo o conforto material. E preciso que a Itália lombarda esteja bem pobre para que o furto de quatro cachos de uvas retenha a atenção do legislador; é preciso que o trem de vida dos Anglo-Saxões tenha bai­xado muito para que a palavra lord (originàriamente “guarda do pão”) se imponha como a mais usada entre os trinta e seis sinônimos que expri­mem, no Beowulf, a idéia de “chefe” ou de “senhor”; é preciso que as com­pras dos pobres tenham diminuído muito para que a moeda de bronze, instrumento habitual das transações miúdas durante o Império, cesse de ser cunhada no Ocidente. Em contrapartida, a moeda de ouro continua a circular para as trocas internacionais e o entesouramento dos ricos; con­quista mesmo regiões que a não tinham conhecido antes da era bárbara, como a Escandinávia ou a Irlanda. É, sem dúvida, um sintoma de pro­gresso dessas regiões, mas, sobretudo do nivelamento gradual da Europa inteira numa economia que faz da moeda o depósito da riqueza mais do que o instrumento quotidiano do consumo.

População rarefeita

Como vimos, profunda e prolongada crise demográfica acompanhou esta contração econômica. Essa crise, se não apagou o contraste entre o mundo mediterrâneo, sedentário e relativamente compacto; e o mundo nórdico, de população dispersa e flutuante, tornou-o, contudo menos nítido.

É verdade que, em vastas extensões da Europa setentrional e oriental, a emigração dos Germanos e seus aliados agravou a regressão demográ­fica. No entanto, o vazio atraiu novas tribos nômades: Eslavos, Baltas, Avaros, Búlgaros... Eram porventura menos numerosos e mais primitivos do que os antigos ocupantes? Talvez, mas a sua intervenção não conseguiu alterar sensivelmente uma paisagem que nunca os homens tinham remo­delado à sua semelhança.

Finalmente, foi o antigo território romano que sofreu a transformação mais profunda, ainda que as suas vicissitudes não sejam mais do que a conclusão de tendências já pronunciadas muito antes da queda do Império. Havia muito que os grandes latifundiários desertavam os centros urbanos para se instalarem nos seus solares rústicos (villae, os futuros “castelos”). Por seu turno, os camponeses abandonavam as aldeias devassadas, bus­cando o abrigo dos grandes domínios. Florestas, pântanos e charnecas invadiam as terras abandonadas. Esta evolução, que tendia a destruir o quadriculado uniforme das culturas mediterrâneas, foi acelerada pela influên­cia dos hábitos rurais dos Bárbaros e da regressão demográfica. Quase por toda a parte se foi desfiando a rede das cidades e baralhando o xadrez dos campos cultivados; e entre as aglomerações alastravam grandes espaços desabitados.

Presenças romanas na geografia agrária e urbana

Todavia, o cunho da romanidade clássica era tão profundo que seria preciso um esforço muito decidido para o aniquilar. Ninguém o desejava. E certo que os Bárbaros não se inclinavam para a civilização das cidades: a tendência que tinham para a agricultura e para a caça, a antipatia que professavam pelo acanhado da rua e do campo fechado são disso teste­munho. Mas alguns tomaram gosto pela vida urbana, sobretudo entre os Lombardos. Outros fundaram aldeias de pequenos proprietários, a ima­gem das do Norte primitivo. Por outro lado, a inércia das tradições agrícolas mediterrâneas demorou o progresso inevitável do grande domínio e impediu muitas vezes os camponeses de aproveitarem o despovoamento para arredon­dar os seus campos.

Ainda hoje se encontra, aqui e além, o quadriculado regular dos agrônomos roma­nos, desenhando os limites imu­táveis que contiveram inúmeras gerações de camponeses. E é com espanto que se reconhece também, no coração de várias cidades modernas, que a Idade Média despovoou e reconstruiu alternadamente, o quadriculado mais cerrado dos urbanistas romanos. As cidades são sempre menos conservado­ras do que o campo e foram atingidas mais duramente. Mas a Igreja não se podia desinte­ressar delas, porque nas cidades colocara o eixo das dioceses episcopais. Fez mais: exatamente como a colonização romana quando se apoiara sobre os municípios, a propa­gação da fé implicou a fundação de novas dioceses, cuja sede central se tornou a origem de uma cidade localizada em territórios que nunca as haviam conhecido. Tam­bém o comércio, embora enfraquecido, agüentou vários núcleos urbanos e criou muitas vezes outros novos. Apesar da sua decadência física e moral, as cidades da era bárbara continuaram, portanto a desempenhar um papel não de desprezar.

Revolução sem abalos: chegada da servidão

Tenhamos cuidado em não menosprezar estas sobrevivências que transmitiram à Europa medieval fagulhas da grande luz clássica. Mas a época bárbara conta mais por aquilo que transformou do que por aquilo que conservou. Se nenhuma das transformações veio embelezar a face do mundo, mais do que uma preparou o terreno para dias melhores. Aquela que toca de perto o maior número – o desenvolvimento da servidão – realizou-se quase sem abalos, por uma miríade de fraquezas ou de iniciativas pri­vadas, sancionadas de tempos a tempos por uma medida legislativa. Como a maior parte das revoluções da Alta Idade Média, esboçou-se muito antes do fim do Império e só atingiu o termo na época dos Carolíngios; no entanto o seu progresso, quase ignorado pelas fontes, preenche a história das mul­tidões desconhecidas do período bárbaro. Pouco a pouco, os homens livres das classes inferiores e a maioria dos escravos fundiram-se numa classe nova: os servos.

Se só ao de leve mencionamos os escravos da Roma antiga é que a historiografia quase não se ocupa dos animais domésticos. Ora, leis e costumes da Antiguidade classificavam os escravos com o gado. Este prin­cípio não era invalidado nem sequer minorado pelo fato de algumas almas meigas se afeiçoarem por um “bicho” favorito ou de almas nobres se devo­tarem a proteger os animais falantes contra a crueldade dos donos. A natureza oferecia, contudo aos escravos um remédio inacessível ao cão de luxo ou ao cavalo de corrida; podiam ser libertos e reivindicar a qualidade de homens, de cidadãos, “porque, segundo o direito natural, todos os homens são iguais”. O direito civil clássico, com o seu espírito lúcido, não admite quaisquer condições intermédias entre escravidão e liberdade, nem tonali­dades no seio destas categorias. Mas já o direito da Roma decadente dis­tingue vários subgrupos, tais como os “poderosos” e os “humildes” entre os cidadãos, os “idôneos” e os “rústicos” entre os escravos. O direito dos Bárbaros e o da Igreja viriam multiplicar estes escalões; só o mais alto assegurava a totalidade dos privilégios; o mais baixo impunha a servidão total, enquanto os outros percorriam todos os graus imagináveis de semi­liberdade e de semi-servidão. Por último, destes limbos do pensamento jurídico saiu a figura do servo, adscrito ao solo ou ligado ao seu senhor por obrigações indignas de um homem livre, mas livre (ou quase) nas rela­ções com terceiros.

Esta evolução legal não deve talvez muito às transformações do pensamento reli­gioso e político com as quais se tem querido muitas vezes ligá-la. Não há dúvida de que a Igreja veio insistir nas afirmações dos filósofos pagãos quanto à igualdade natural de todos os homens, mas não sonhou, mais do que eles, em deitar por terra a instituição imperfeita que parecia indispensável neste mundo imperfeito. Por um lado, recomenda que não se maltratem os escravos e louva os fiéis que, levados por uma caridade excepcional ou pelo desprezo das riquezas, vão ao ponto de libertá-los. Mas, por outro lado, opôs-se muitas vezes a que eclesiásticos utópicos ou pródigos comprometessem a estabilidade econômica de uma casa religiosa, emancipando os seus escravos. Aliás, à defesa, por razões religiosas, da igualdade humana contra o sistema medieval de escra­vidão e servidão não poderíamos pedir eficácia maior do que viriam a ter os protestos contra o racismo moderno, quaisquer que fossem a sinceridade e o poder de convencer dos seus paladinos. Quanto aos Bárbaros, se julgaram vantajoso deixar uma vaga semi­-liberdade, compatível com a imprecisão dos seus costumes, às nações vencidas que seria pouco prático reduzir à escravidão coletiva, não foi certamente por respeito da igualdade natural dos homens. Todos os povos bárbaros possuíam já escravos antes das migrações. Continuaram a recrutá-las depois da conquista e pelos mesmos meios que Roma: nascimento, guerra, tráfico, condenações penais, dívidas, compra de filhos aos pais e, às vezes, consenso voluntário.

Avanço dos escravos, recuo dos homens livres

Somente - e aí reside a explicação fundamental da evolução jurí­dica - a crise demográfica atingiu os não-livres ainda mais duramente do que os outros. Como já se observou o rebanho humano é o mais deli­cado, o que se reproduz mais dificilmente. Desde o primeiro século do Império que se levantavam queixas quanto à sua insuficiência; apesar de subidas temporárias, o declínio numérico dos escravos tornou-se cada vez mais grave durante a decadência romana e a era bárbara. Um rebanho que diminui deve ser poupado. Foi preciso melhorar o tratamento do escravo, conceder-lhe uma quase capacidade jurídica, encorajá-lo a constituir famí­lia fornecendo-lhe uma casa rústica (casa) e assegurando-lhe a perpetuidade da gleba que cultivava. Se era artífice, fixava-se-lhe o salário e conferia-se-lhe proteção legal bem definida. Eram apenas expedientes de criadores de gado ameaçados nos seus bens, mas as “bestas” aproveitaram-nos, com grande vantagem para aquilo a que chamamos civilização.

Se os ganhos dos escravos poderiam levar a crer num certo progresso dos sentimentos humanitários, para nos desenganar bastaria que nos debruçássemos sobre a sorte dos homens livres. Com exceção da classe dominante e de uma classe média cada vez mais exígua, foram escorre­gando, de degrau em degrau, até ao ponto em que o camponês (colonus) se tornou igual ao escravo provido de casa (servus casatus), e o nascimento livre nada acrescentou às vantagens do artífice.

Na raiz destes males, como na da fortuna dos escravos, encontramos a crise demográfica. Vimos que, quando o Império teve de exigir sacrifí­cios crescentes em impostos e em corvéias a uma população decrescente, aplicou aos corpos de ofícios, às comunidades aldeãs e a outros agrupa­mentos, o princípio da responsabilidade solidária. Os vivos e os que podiam pagar ficaram com o fardo de se desobrigar em vez dos que desapareciam e dos insolventes. O trabalho deixou de ser uma profissão livremente esco­lhida para se converter em officium, em cargo público irrevogável. Quem não queria carregar com o fardo tinha a possibilidade de se “encomendar” a um poderoso, isto é, de lhe subordinar a liberdade (a plena propriedade dos bens e o direito de trabalhar para outros além dele) a troco da transferência das responsabilidades.

Mas seria esta verdadeiramente uma salvação? O poderoso, premido pelo fisco e ainda mais pela falta de mão-de-obra, só restituía aos encomenda­dos bens e iniciativa em troca de obrigações pouco menos pesadas do que aquelas a que fugiam.

A era bárbara prosseguiu nesta evolução. Vimos que o Estado se tor­nou menos exigente, mas mais fraco, em proveito exclusivo dos poderosos. Já não bastava ser rico para permanecer independente; era preciso estar bem armado. A maioria dos homens livres que não se tinham ainda “encomendado” viram-se entregues à arbitrariedade de um senhor. A pouco e pouco, mesmo a recordação da antiga liberdade se perdeu: os corpos de oficias e as comunidades aldeãs converteram-se em simples equipes servas, e as leis puniram como “sediciosas” as raras tentativas dos desclassificados livres para forçar a mão aos senhores. Seja dito que esses entes semi-livres, à maneira dos semi-escravos, encontraram certa proteção no fato de a rari­dade da mão-de-obra obrigar todo o administrador cuidadoso a tratá-los bem.

Falência ou promessa?

Seguramente que a era bárbara não foi no todo e em toda a parte Império das trevas. Basta que nos situemos no ponto de vista da Alema­nha, em vez de conservar os olhos fixos no mundo greco-romano, para que a relação entre Antiguidade e Alta Idade Média se ponha ao contrário.

Para os Germanos, os primeiros séculos da Idade Média marcaram a rup­tura das barreiras que, durante a Antiguidade, os tinham mantido à mar­gem dos grandes focos da civilização mediterrânea e da religião cristã, e haviam retardado os seus primeiros passos para uma vida política estável e organizada. Os Romanos, esses, só aprenderam dos Germanos técnicas secundárias como o uso dos esquis e o fabrico do feltro. Contudo, entra­ram em contacto com uma sociedade que, vivendo sob outro clima e nou­tro n1vel intelectual, tinha encontrado soluções diferentes para certos pro­blemas comuns. Algumas dessas soluções continham gérmenes que, embora não pudessem produzir grande coisa na Europa estéril da era bárbara, haviam de frutificar na aurora européia da Baixa Idade Média. Disso falaremos a seu tempo.

Em suma, as invasões deram o golpe de misericórdia a uma cultura que se petrificara depois de haver atingido o apogeu, e que parecia conde­nada a morrer. Pensa-se nesses cruéis bombardeamentos da nossa época que, destruindo velhos e abalados edifícios, tornaram possível a reconstrução de um bairro segundo critérios mais modernos. Mas se nos lembrarmos de que a reconstrução, depois da avalanche dos Bárbaros, se fez esperar quatro ou cinco séculos, hesitaremos em conceder a honra aos responsáveis pela destruição.

A voz de Pangloss[1] sopra-nos ao ouvido que, se a civilização antiga não tivesse sido expulsa do seu belo castelo a grandes pontapés, a civiliza­ção moderna não teria podido florescer. Que se teria passado, na verdade, se o castelo não tivesse sido abandonado? Para esboçar uma resposta, volte­mo-nos para a ala que não mudou de proprietário – o Império Bizantino.



Comentário sobre o texto, por Mayte Vieira

De uma forma detalhada, pontual e com linguagem simples, Robert S. Lopez, apresenta o mapeamento do nascimento da Europa. Com suas origens na decadência de Roma, período da Antiguidade Tardia, que descreve ponto a ponto, com cada uma de suas mudanças e suas conseqüências no mundo e na sociedade romana.

Segundo o autor, estas modificações não ocorrem somente em Roma, às margens do mar Mediterrâneo, mas também em toda a Asia. Ele traça um paralelo entre Roma e China, buscando apresentar as semelhanças entre as duas civilizações neste mesmo período. Ambas lutam contra invasões bárbaras externas, mudanças de costumes, mudanças religiosas, mudanças que alteram todo o seu quadro social e cultural.

Quanto ao declínio e a “queda” do Império Romano, são analisadas todos os fatos que levaram, em conjunto, a ruína de todo o sistema. As influências bárbaras nas fronteiras, a crise das cidades, as tensões novas geradas com o cristianismo, o absolutismo e ao mesmo tempo, a fraqueza dos imperadores, as altas taxações de impostos, a agricultura arcaica somente para subsistência, o preconceito cultural com o comércio e os trabalhos manuais, as tensões internas causadas com as pressões externas das invasões bárbaras, as mudanças impostas pelos novos governantes bárbaros, a perda da identidade cultural e social romana, que passou a uma mescla com a germânica.

Um quadro sombrio de todas as modificações que, juntas – o autor nos mostra que não foram problemas isolados, mas toda uma associação deles que colaborou para a decadência romana – modificaram toda uma civilização e prepararam o caminho para o nascimento da Europa e do sistema feudal.

[1] O preceptor de Candide, no romance de Voltaire, ensina que "as coisas não podem ser diferentes do que são: como tudo é feito para um fim, tudo existe neces­sàriamente para o melhor fim.” Através do seu otimismo que nenhum desastre des­mente (tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis) é a filosofia de Leibniz que o pensador francês pretende atingir. (V. M. G.)


Por LOPEZ, R. O Nascimento da Europa. Lisboa: Cosmos, 1979.


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